INTRODUÇÃO
A história do ordenamento constitucional brasileiro fornece base para o estudo do instituto da Representação Interventiva e da sua importância para a manutenção da ordem legal e manutenção dos preceitos da Federação. Assim, a medida toma caráter de suma importância necessitando uma reflexão sobre seus pressupostos, natureza, objeto, finalidades e consequências.
Uma noção primordial para o entendimento da intervenção federal é o fato desta ser uma medida de caráter excepcional, sendo, portanto, os princípios federativos em sua integralidade a regra.
Ademais, ao se analisar a questão faz se mister a abordagem do controle de constitucionalidade pois o instituto de análise do presente estudo trata-se de uma espécie do controle de constitucionalidade concentrado.
A reflexão a respeito da Intervenção Federal de nº 114, objeto principal do presente trabalho, arguida em face da inobservância pelo Estado-membro de um dos princípios constitucionais sensíveis previstos no artigo 34 da Constituição Federal configura-se como necessidade pertinente e de elevada contribuição acerca do posicionamento jurisprudencial sobre o tema.
1 DA REPRESENTAÇÃO INTERVENTIVA, ADI INTERVENTIVA E INTERVENÇÃO FEDERAL
A representação interventiva é uma medida utilizada diante de algumas situações previamente dispostas no texto da Constituição Federal e seu início no ordenamento jurídico constitucional vem desde a Constituição de 1934 tendo sido apresentada como medida titular do Procurador Geral da República perante o Supremo Tribunal Federal para a devida efetividade. Ressalta-se ainda a supressão pela Constituição de 1937, tendo sido restabelecida pela Constituição de 1946 e tendo sua manutenção até os dias atuais.
À época de sua primeira manifestação no ordenamento jurídico brasileiro as possibilidades de impugnação eram em face dos princípios constitucionais previsto no artigo 7º, I, alíneas a a h. Com a emenda constitucional nº 16/65 houve a introdução de fato dos modelos de controle de constitucionalidade concentrado ampliando a representação para uma forma genérica de controle de constitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa federal ou estadual.
Para Guilherme Peña de Moraes(2015) a ação direta de constitucionalidade interventiva constitui-se em medida apta para a defesa de princípios previsto na Constituição:
dirigida à impugnação de ato dos poderes estaduais ou distritais que infrinja princípio constitucional sensível, de maneira a promover a sua declaração de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal e a requisitar a decretação de intervenção federal ao Presidente da República (MORAES, Guilherme Peña de. 2015, p. 258)
A constituição Federal de 1988 amplificou o rol de possibilidades do controle abstrato ou concentrado de constitucionalidade bem como o dos legitimados para sua propositura. Assim os legitimados para mover as ações do referido controle não se limitavam à figura do Procurador Geral da República.
Nesse contexto Uchôa (2017) ressalta que ainda que se trate de uma espécie do controle concentrado, a ADI interventiva diferencia-se das demais ações do mesmo molde, não podendo se afirmar em sua integralidade que ela se apresenta como parte do controle abstrato e objetivo:
A dificuldade em classificá-la como espécie de controle abstrato ou concreto decorre do fato de que a ADI interventiva pode ser deflagrada contra atos – comissivos ou omissivos- cujos efeitos sejam concretos ou abstratos e gerais. Portanto, o controle é exercido tanto sobre condutas específicas, como contra atos de natureza normativa, desde que se viole os princípios constitucionais sensíveis. A doutrina diverge quanto à classificação entre controle objetivo ou subjetivo, sendo esta última a corrente majoritária (UCHÔA, Rostônio, 2017, p.218)
Nesse sentido, Gilmar Mendes (1990) defende que a ADI Interventiva não se trata de um processo objetivo, ocorrendo na verdade a judicialização de um conflito federativo relacionado à observância dos deveres jurídicos especiais que foram impostos ao Estado-membro pelo ordenamento federal. Ademais o reflexo do direito de ação em tela é representado pelo Procurador Geral da República como autoria e como réu o Estado federado, caso se atribua a este uma ofensa ao princípio constitucional da União.
A ADI interventiva possui ainda uma dupla faceta quanto sua finalidade: jurídica e política. A finalidade jurídica é percebida pela pretensão de declarar como inconstitucional a conduta do Ente posto em questão. É política, pois encontra-se como pressuposto para que haja a intervenção federal e o restabelecimento da ordem constitucional (UCHÔA, 2017)
Os princípios constitucionais sensíveis elencados no artigo 34, inciso VII da CF/88 fornecem o parâmetro de constitucionalidade utilizado para ensejo da ADI Interventiva, quais sejam:
Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático; b) direitos da pessoa humana; c) autonomia municipal; d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta. e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.
A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 36, inciso III, resta clara ainda a dependência de provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de representação do Procurador-Geral da República, na hipótese do art. 34, VII, e no caso de recusa à execução de lei federal para a decretação da intervenção. De acordo com o § 3º do citado artigo o decreto limitar-se-á a suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade.
A legitimidade ativa para que seja proposta a ADI Interventiva, portanto, segundo os ditames constitucionais é exclusivamente reservada ao Procurador-Geral da República, que por discricionariedade política ao tomar conhecimento da violação de princípios constitucionais sensíveis ajuizará ou não a Ação. O legitimado passivo será o Estado ou o Distrito Federal que violar um dos tais princípios. Caso trate-se de Intervenção Estadual em um município a legitimidade ativa corresponde ao Procurador-Geral de Justiça do Estado em face do Município buscando assegurar os princípios sensíveis disposto na respectiva Constituição Estadual, perante o Tribunal de Justiça do Estado (UCHÔA, 2017)
Como assevera Akewaga (2013) a intervenção federal é, em verdade, uma intromissão autorizada constitucionalmente como forma de limitar temporariamente a autonomia concedida ao estado e do município, possuindo, portanto, um caráter político-punitivo:
A intervenção possui caráter político-punitivo, pois limita temporariamente a autonomia do estado e do município, diferente do controle de inconstitucionalidade, que não mantém tal característica punitiva. Logo, a intervenção será sempre a intromissão constitucionalmente autorizada da pessoa política maior sobre a menor, por sua vez não pode a União intervir nos municípios. (AKEGAWA, Alice Aparecida Dias, 2013, p.4, grifo nosso)
Assim, ainda que seja espécie do controle concentrado de constitucionalidade a ADI Interventiva difere da ADI, de modo que o seu provimento é indispensável para a decretação da intervenção federal.
Uma significativa característica da referida ação é seu caráter conflituoso. Nela estão presentes o contraditório e lide na busca da resolução de grave conflito federativo. Desse modo a intervenção federal consiste em um fator de conservação do federalismo político brasileiro.
2 DA INTERVENÇÃO FEDERAL Nº 114/ MATO GROSSO
Caracterizada a Intervenção Federal, parte-se para a análise, principal a qual se incumbe o presente trabalho, do julgamento da Intervenção Federal 114/MT perante a Suprema Corte Brasileira.
O Procurador-Geral da República ajuizou em 1991 representação para decretação dos efeitos de intervenção federal, com fundamento nos artigos 34, VII, b e artigo 36, III da Constituição Federal de 1988, em face do Estado do Mato Grosso. O caso refere-se ao fato de que no ano de 1990, no município de Matuã no Mato Grosso três presos sofreram lesões corporais e vindo ao óbito em praça pública por populares do município, não restando suficiente a proteção policial a priori ofertada.
Ocorreu segundo o Procurador-Geral da República, uma verdadeira barbárie que refletiam a escassez ao respeito à vida humana além da inexistência de condições mínimas na manutenção e segurança ao direito essencial da pessoa humana que é a vida. Houve ainda um grave comprometimento da ordem pública sendo indispensável, pelas conjuturas político-administrativas do local, a intervenção para que se pudesse assegurar a vida e outros direitos da pessoa humana.
Ainda que admitida a representação, reconhecendo que os fatos ocorridos foram deploráveis e digno de repúdio, o Supremo Tribunal Federal julgou-a improcedente:
Embora o STF tenha considerado admissível a representação interventiva contra ato concreto ou omissão administrativa do Estado- membro, cuidou de estabelecer que tal ação judicial não há de ser aceita para questionar fatos isolados, episódios, que não sejam aptos a indicar uma sistemática violação dos direitos da pessoa humana. Enfatizou-se que a orientação contrária poderia afetar gravemente o próprio princípio federativo (BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira; 2012, p. 1798)
Seria necessário, portanto a demonstração de uma degradação geral do sistema, não sendo passível de decretação da intervenção federal por ato isolado e excepcional que não seria por si capaz de atestar uma permanente omissão e violação por parte do Estado da defesa dos direitos da pessoa humana.
Importante ressaltar algumas das posições dos ministros frente o caso. Destaca-se as posições do Min. Moreira Alves e Min.Celso de Mello, ambos não conheceram se quer o pedido, diferentemente dos demais que, embora entendido positivamente pela admissibilidade da Ação não a julgaram improcedente.
Como salienta Filipe Carvalho Medeiros (2017) é intrigante a posição do Supremo Tribunal Federal de que ainda presente a violação dos direitos da pessoa humana, a não persistência do fato e o entendimento do fato como acontecimento isolado bastaram para que não se requisitasse a intervenção, demonstrando assim uma ótica da intervenção federal como um instituto ultima ratio do sistema federativo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante das exposições, percebe que através da história do ordenamento jurídico constitucional brasileiro o instituto da intervenção atravessou diversas nuances. Iniciando timidamente na Constituição de 1934, passando por uma supressão no contexto do período de ditadura militar do país em 1937 e tendo sua manutenção restabelecida até os tempos atuais pela Constituição de 1946.
A Constituição de 1988 consagra o controle concentrado a qual pertence ampliando tanto seus legitimados quanto outra gama de remédios constitucionais. A ADI interventiva é, pois, medida excepcional e que possui sua utilização taxativamente prevista constitucionalmente. Constitui-se acima de tudo, uma interferência na autonomia dos Estado-membros permitida pela Constituição Federal e que não macula os princípios do federalismo brasileiro, ao contrário, visa sua proteção e manutenção.
A posição conferida ao Procurador-Geral da República é ímpar e de extrema importância, sendo este o único legitimado para a propositura. O Supremo Tribunal Federal possui o poder de apreciar e declarar a inconstitucionalidade posta em questão.
Pela análise essencial da qual se incumbiu este trabalho, nota-se através do emblemático julgamento da Intervenção Federal 114/MT que, embora presentes a violação aos princípios constitucionais sensíveis, ensejadores e passíveis do juízo de admissibilidade pelo referido órgão, é ainda necessário que os descumprimentos constitucionais arguidos sejam de cunho sistemático e não apenas acontecimentos isolados.
Assim, resta clarificada a posição significativa do instituto da Intervenção Federal, em especial no julgado analisado, na manutenção do federalismo político brasileiro bem como uma medida de efetivação do próprio Estado Democrático de Direito, na sua finalidade intrínseca de proteção e respeito aos direitos da pessoa humana.
REFERÊNCIAS
Akegawa, Alice Aparecida Dias. A intervenção federal em face da Constituição Brasileira de 1988 e a figura do interventor. Revista da Faculdade de Direito de Uberlândia. V41 nº2, 205-225. 2013
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulga em 5 de outubro de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm> Acesso em: 08 set. de 2018.
BRASIL. Superior Tribunal Federal. IF-114. Requerente: Procurador-Geral da República. Requerido: Estado do Mato Grosso. Relator: Min. Néri Da Silveira. Brasília, 13 de março de 1991. Publicado sob o DJ nº 36154-27-09-1996. Ementário nº 01843-01. Disponível em: <https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/752133/intervencao-federal-if-114-mt/inteiro-teor-100468324?ref=juris-tabs#>. Acesso em: 07 set. de 2018.
MEDEIROS, Filipe Carvalho. UM ESTUDO PANORÂMICO DO INSTITUTO DA INTERVENÇÃO FEDERAL NO BRASIL. 2017. 62 p. Monografia (Graduação em Direito)- Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal Fluminense, Volta Redonda, 2017. Disponível em: <https://app.uff.br/riuff/bitstream/1/6254/1/Filipe%20Carvalho%20Medeiros%20-%20UM%20ESTUDO%20PANOR%C3%82MICO%20DO%20INSTITUTO%20DA%20INTERVEN%C3%87%C3%83O%20FEDERAL%20NO%20BRASIL.pdf>. Acesso em: 09 set. 2018.
Mendes, Gilmar Ferreira Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 7. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2012.
Moraes, Guilherme Pena de Curso de direito constitucional / Guilherme Pena de Moraes. - 7. ed. - São Paulo: Atlas, 2015
Uchôa, Rostônio. Curso de Direito Processual Constitucional. 3 ed, Rio de Janeiro; Lumen Juris, 2017