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A proteção jurídica do meio ambiente no Brasil e os desafios à repressão do tráfico de animais silvestres.

Uma análise à luz do art. 29 da Lei de Crimes Ambientais

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O comércio de animais e seus subprodutos é um negócio ilegal que vai muito além da necessidade de sobrevivência humana, tendo em vista que reflete toda uma exploração econômica decorrente da ambição humana de lucro incessante.

RESUMO: O trabalho tem como tema a proteção jurídica da fauna e delimita-se, especificamente, ao comércio ilícito de animais silvestres no Brasil. Objetiva a análise do atual cenário de tal delito no Brasil, lançando um olhar à (in)observância da norma constante no art. 29 da Lei de Crimes Ambientais, dispositivo que traz uma variedade de condutas tipificadas como crime contra as espécimes de animais silvestres, e destacando os aspectos jurídicos, sociais e econômicos como uns dos principais fatores responsáveis pela prática do tráfico de animais silvestres. Além disso, a partir de pesquisa bibliográfica, pretende-se demonstrar a relação direta existente não só entre a prática do tráfico de animais e o processo de extinção das espécies, como também a sua relação com as consequências epidemiológicas e econômicas para a sociedade como um todo. Para tanto, foi estudada a doutrina sobre a matéria, de forma a considerar os principais pontos acerca da necessidade de proteção jurídica do meio ambiente no Brasil, especialmente no que toca à tutela constitucional da fauna silvestre. Da mesma forma, para o desenvolvimento do trabalho foram relatados dados de dois documentos oficiais referentes ao comércio ilegal de espécies. Ademais, a pesquisa pretende contribuir para o conhecimento geral do tráfico de animais silvestres, abordando as principais dificuldades quanto à manutenção do rigor no combate aos traficantes e fomentando a conscientização das pessoas com relação a essa temática.

Palavras-chave: Meio ambiente. Fauna silvestre. Tráfico de animais silvestres.

SUMÁRIO:1 INTRODUÇÃO. 2 A PROTEÇÃO JURÍDICA DO MEIO AMBIENTE NO BRASIL: UMA DISCUSSÃO A PARTIR DA TUTELA DA FAUNA.2.1 As Mudanças no Tratamento da Proteção ao Meio Ambiente no Brasil: Breve Esboço Histórico.2.2 O Meio Ambiente como Direito Fundamental na Constituição de 1988.2.3 Importância da Tutela Constitucional da Fauna à Luz do Direito Fundamental ao Meio Ambiente.3 O DIREITO AMBIENTAL SOB UM NOVO PARADIGMA: A LEI DE CRIMES AMBIENTAIS E A NECESSIDADE DE RESPONSABILIDADE AMBIENTAL.3.1 A Lei de Crimes Ambientais e a Tentativa de Consolidação do Direito Penal do Ambiente.3.2 Breves Apontamentos a Respeito das Tutelas Penal e Administrativa na Lei de Crimes Ambientais.3.3 A Tutela da Fauna Silvestre no Tipo Penal do art. 29 – Lei de Crimes e Infrações Administrativas Ambientais.4.1 Características do Comércio Ilícito Nacional e Internacional da Fauna Silvestre.4.3 Principais Obstáculos no Combate ao Tráfico Nacional de Animais Silvestres e Possíveis Soluções Apontadas pelo Relatório da Renctas e pela Comissão Parlamentar de Inquérito Destinada a Investigar O Tráfico Ilegal de Animais e Plantas Silvestres da Fauna e da Flora Brasileiras.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.


1 INTRODUÇÃO.

​Hodiernamente, a sobrevivência do planeta e suas riquezas ecossistêmicas são uma preocupação que vêm se tornando mais abrangente diante da notoriedade e percepção a olhos nus das consequências severas decorrentes da ação humana com relação à exploração desordenada dos recursos ambientais. Com a ajuda dos recursos tecnológicos e presença de diversos pesquisadores e estudiosos ambientais, tornou-se clara a nossa impotência diante da natureza, seja pelos fenômenos naturais devastadores ou pelas diversas ações humanas responsáveis pelo desequilíbrio ecológico do meio ambiente.

Dentre alguns dos alvos dessa exploração insustentável e desordenada dos bens ambientais está a fauna silvestre, motivo pelo qual a pesquisa tem como tema a proteção jurídica da fauna no Brasil e aborda, especificamente, a prática do tráfico de animais silvestres no país. Segundo dados da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (2016, p. 430), no ano de 2016, o comércio de animais movimentou cerca de US$ 124 bilhões em todo o mundo. Tal comércio também representa, ainda hoje, a terceira maior atividade ilegal, sendo superado apenas pelo tráfico de drogas e pelo tráfico de armas (RENCTAS, 2016, p. 43). Esse processo é movido por uma complexa atividade de contrabando, cujo desenvolvimento vai desde as populações mais carentes até os traficantes mais sofisticados nas metrópoles e no exterior.

Dessa forma, tal atividade ilícita enseja movimentação ilegal de dinheiro tanto no mercado interno como no externo, tornando-se altamente lucrativa e atraindo, consequentemente, mais e mais adeptos à sua prática. Diante disso, o número de animais atingidos por tal conduta vem aumentando perigosamente, sendo eles capturados no ambiente natural em que vivem para serem vendidos como mercadoria. As consequências são devastadoras para a biodiversidade animal, pois trazem à tona não só a prática de maus-tratos e exploração descontrolada de animais silvestres e exóticos, como também a aceleração do processo de extinção de diversas espécies.

Por estas razões, considera-se premente o reconhecimento da fauna silvestre como sendo de suma importância não só ecologicamente, pois atua numa relação de interdependência entre as espécies e o meio ambiente em que habita (sendo uma das principais responsáveis pelo equilíbrio ecológico do meio ambiente), como também para a sociedade como um todo, já que existem várias convenções na seara internacional objetivando a proteção da fauna. Dentre elas destaca-se a Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e Flora Selvagens em Perigo de Extinção (CITES), instrumento importante para a regulamentação do comércio internacional de espécies, sobretudo aquelas ameaçadas de extinção.

Nesse contexto, a realidade atual do tráfico da fauna silvestre será estudada a partir do seguinte questionamento: como vem atuando o poder público no sentido de promover a repressão do tráfico de animais silvestres no Brasil, em observância ao previsto no art. 29 da Lei nº 9.605/98? Partindo da aplicabilidade (ou não) de tal dispositivo legal no tocante à prática de maus-tratos e exploração descontrolada de animais silvestres, tem-se como objetivos específicos: a demonstração da necessidade de proteção do meio ambiente, especialmente da fauna silvestre; discorrer sobre a atuação estatal ou a ausência dela no combate ao tráfico de animais silvestres; abordar o cenário atual do comércio ilícito de animais silvestres no país, discorrendo a respeito das principais dificuldades e possíveis soluções para combatê-lo.

Inicialmente foi feito um estudo sobre as mudanças quanto à proteção do meio ambiente no Brasil, abordando desde as diferentes fases para a consolidação de uma proteção jurídica do meio ambiente no país até a tutela constitucional da fauna silvestre a partir da consideração do mesmo como direito fundamental na Constituição Federal de 1988. Em seguida, foi abordada a maior abrangência dada à proteção ambiental através da sistematização dos crimes e infrações administrativas ambientais a partir da Lei 9.605/98, lançando um olhar à tentativa de consolidação de um Direito Penal do Ambiente por meio da Lei acima mencionada e à real necessidade ou não de uma tutela penal ambiental. Também foi discriminada a tutela da fauna silvestre presente no art. 29 da Lei de Crimes Ambientais, posto que não há previsão de um tipo penal específico para punir o tráfico de animais silvestres por parte da legislação.

Na sequência, foram analisados dois importantes documentos oficiais referentes ao tráfico de animais silvestres: o I Relatório Nacional sobre Gestão e Uso Sustentável da Fauna Silvestre, elaborado pela Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (RENCTAS) e o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar o Tráfico Ilegal de Animais e Plantas Silvestres da Fauna e Flora Brasileira – CPITRAFI. No primeiro, serão apontados os principais dados e características do tráfico de animais silvestres no Brasil, além de outros pontos relevantes; no segundo, foram apontadas as principais dificuldades no combate ao tráfico e explicitadas algumas possíveis soluções.

O trabalho realizado possui naturezas exploratória e descritiva, tendo em vista que, no primeiro caso, busca-se uma maior compreensão do assunto estudado por meio de levantamento de pesquisa bibliográfica (tais como livros, artigos e teses publicadas) e, no segundo caso, tem-se como objetivo a descrição dos fatos encontrados, buscando conhecer em que consiste o objeto de estudo, como ocorre e com qual intensidade. Além disso, predomina na pesquisa o método de abordagem quantitativo, já que também são descritos dados mensurados de forma numérica, a partir de recursos estatísticos presentes na bibliografia pesquisada. Para realização dessa pesquisa utilizou-se de dados secundários, pois já foram objeto de estudo e análise em diversas fontes.

Levando em conta o fato de o Brasil ocupar uma posição notória na contribuição para essa atividade ilícita considera-se, de início, a existência de desrespeito notório ao art. 29 da Lei nº 9.605/98. Assim, pretende-se analisar a extensão dessa prática ilegal no Brasil, e de forma mais específica, explanar possíveis medidas para que o poder público possa promover a repressão do delito em questão no país.


2 A PROTEÇÃO JURÍDICA DO MEIO AMBIENTE NO BRASIL: UMA DISCUSSÃO A PARTIR DA TUTELA DA FAUNA

O presente capítulo objetiva analisar a importância da tutela da fauna silvestre sob a ótica da efetivação do direito ao meio ambiente como um direito fundamental de terceira dimensão. Após o novo status conferido pela Constituição de 1988 ao meio ambiente, reconhecendo-o como bem de uso comum do povo e fundamental para as presentes e futuras gerações, julga-se importante analisar os fundamentos para a defesa dos bens ambientais, em particular a fauna silvestre. Para tanto, primeiramente faz-se um breve levantamento sobre as mudanças gradativas no tratamento à proteção do meio ambiente, a partir da análise das normas constitucionais brasileiras. Em seguida, o trabalho aborda o marco da proteção do ambiente como um direito e dever fundamental na Constituição de 1988, relacionando tal tratamento com a última parte estudada no capítulo, onde se procura estabelecer a fundamentalidade da tutela constitucional dos animais irracionais, também merecedores de um direito fundamental de proteção pelo simples dever de respeito a todas as formas de vida.

Não diferente de outros bens tutelados pela Constituição Federal de 1988, foi necessária a superação gradual de diferentes fases para a consolidação de uma proteção jurídica do meio ambiente no Brasil. O despertar da consciência ecológica, apesar de ensejar as discussões ambientais mais recentes em prol da proteção ao meio ambiente, não carrega desde sempre consigo essa bandeira protetiva, tendo em vista a predominância da visão antropocêntrica em tempos mais remotos.

Abre-se um parênteses para demonstrar que tal consciência ecológica apenas fora gradativamente despertada e, consequentemente, propícia para o surgimento e implementação de legislações ambientais em diversos países, com a expansão e o fortalecimento observados no direito internacional do meio ambiente. O direito internacional ambiental - que diz respeito à parte do direito internacional relativa a questões derivadas da ecologia, proteção do meio ambiente e da sustentabilidade - estimulou o desenvolvimento do saber jurídico nessa seara por meio da generalização das preocupações ambientais em um cenário de globalização desigual. As mudanças trazidas por esse ramo do direito também a partir de avanços conceituais e normativos presentes mais pelo último quarto do século XX podem ser denotadas pelas diversas negociações feitas que, progressivamente, transcendem os países a uma esfera multilateral e global de cooperação (FONSECA, 2007, p. 122-123).

Ainda nesse contexto que Fúlvio Eduardo Fonseca (2007, p. 123) explana a atuação do direito internacional do meio ambiente com relação ao despertar de um pensar verde como não sendo mais meramente reativa - abordando uma questão apenas em resposta à degradação ambiental, como no caso dos tratados adotados sobre poluição marinha -, mas sim proativa, tendo em vista as normas que se anteciparam à possibilidade de consequências severas pela ação antrópica, a exemplo do regime de mudanças climáticas. Ainda seguindo a percepção do autor supracitado, podem-se visualizar três fases na evolução do direito internacional do meio ambiente e a última delas coincide com a emergência de uma nova sociedade, que pode ser chamada de Sociedade da Informação ou Sociedade do Conhecimento devido à convergência entre telecomunicações, recursos multimídia e tecnologias da informação e comunicação importantes para a obtenção e produção de um novo tipo de capital: o capital intelectual ou também chamado o conhecimento como aplicação da informação. Finalmente, a sociedade da informação do século XXI, presente na fase contemporânea do direito internacional do meio ambiente, fundamenta-se cada vez mais em estudos científicos que enfatizam o modelo de desenvolvimento atual do planeta como principal causador das mudanças ambientais globais (FONSECA, 2007, p. 123-124)[1].

Voltando o olhar ao Brasil, aqui o meio ambiente só se tornou uma das preocupações centrais do homem na década de sessenta, dando ênfase especial às décadas de oitenta e noventa, quando se torna mais perceptível o desenvolvimento voltado à necessidade de proteção e conservação do meio ambiente – através, por exemplo, da utilização de medidas mais eficazes nesse sentido, como a edição de leis específicas (SIRVINSKAS, 2006, p. 20).

Havia, pois, uma escassez de normas de proteção ao meio ambiente até a promulgação da nossa Constituição de 1988, visto que, quando presentes, eram normas preocupadas em tutelar o meio ambiente apenas de forma pontual, desarmônica e fragmentada. Devido à ausência de reconhecimento do meio ambiente como um bem fundamental para as presentes e futuras gerações, não havia como distinguir um conjunto sistêmico de normas legais com o fim efetivo de preservação ambiental. (SOUZA, 2012, p. 4060-4061).

Tal deficiência legislativa é reflexo dos padrões fixos e rígidos de produção e consumo da sociedade, sob as óticas regional e global. Nesse sentido, Adriano Stanley Souza (2012, p. 4061) também encontra explicação no pensamento que dominava os séculos anteriores, em especial o século XIX, de que os desenvolvimentos econômico e material eram os valores primordiais da sociedade. Assim, ignoravam-se por completo as agressões causadas ao meio ambiente em virtude do processo industrial e o consequente desequilíbrio ecológico que este causava.

Dessa forma, o intenso processo de conscientização ecológica e educação ambiental, mais precisamente no século XX, por meio de discursos políticos, declarações, tratados e criação de organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), abriu espaço para a discussão da real necessidade de conciliação entre desenvolvimento econômico e social e a preservação do meio ambiente – destaca-se aqui o relatório publicado pelo Clube de Roma, em 1972, denominado “Os Limites do Crescimento”, onde foi demonstrada a finitude da natureza e, portanto, a necessidade de limite de uso aos seus recursos (MONTEIRO, 2011, p. 55).

Em âmbito nacional, as mudanças com relação à proteção jurídica do meio ambiente podem ser divididas em três períodos, conforme a concepção de Luís Paulo Sirvinskas (2006, p. 18): o primeiro período, que teve início com o descobrimento em 1500 e vai até a vinda da Família Real em 1808, foi caracterizado pela existência de normas isoladas de proteção apenas a recursos escassos na época (prevalecendo o interesse econômico), como o ouro e o pau-brasil; o segundo período, iniciado com a vinda da Família Real e se estendendo até a criação da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, em 1981, foi marcado pela exploração ilimitada dos recursos naturais. Ainda de acordo com Sirvinskas (2006, p. 18), nesse período surge a fase fragmentária, na qual o legislador busca proteger apenas de forma pontual determinadas categorias dos recursos, prevalecendo novamente apenas o interesse econômico; o terceiro período, cujo marco está na criação da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 6.938/81), que deu espaço à fase holística, marcada pela compreensão do meio ambiente como um todo, isto é, sistema ecológico integrado e merecedor de proteção integral.

Compartilhando de tal percepção, Ramón Martín Mateo (1991 apud SILVA, 2010, p. 34) afirma que o surgimento dessa consciência ambientalista deu margem ao desenvolvimento de legislação tutelar do meio ambiente em todos os países, mesmo que por vezes dispersas. Acrescenta ainda que podem ser detectadas três tipos de normas: aquelas caracterizadas como mero prolongamento ou adaptação das circunstâncias da legislação sanitária ou higienista do século passado, bem como das que protegiam a paisagem, a fauna e a flora; aquelas de cunho moderno e base ecológica, mesmo que voltadas para determinado setor, como ar ou água; e finalmente aquelas ambiciosas, apenas recolhendo em uma única normatividade as regras relacionadas ao meio ambiente.

Vale salientar que não há na Constituição brasileira de 1824 - a chamada Constituição do Império - nenhuma menção à proteção ambiental no geral e, muito menos, à proteção específica da fauna e da flora, fato este compatível com a visão antropocêntrica do período histórico e político daquela época. Além disso, por ser o Brasil ainda carente de uma identidade como nação independente, inexistia qualquer preocupação com o meio ambiente ou a busca de sua preservação. Em 24 de fevereiro de 1891 com o advento da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil – a primeira Constituição republicana brasileira - já pode ser notado o início de uma preocupação com a normatização constitucional no que se refere a determinados elementos da natureza, quais sejam, a proteção das terras e das minas. No entanto, não há que se falar em preocupação constitucional de proteção ambiental, posto que a Constituição de 1891, ao atribuir à União competência sobre assuntos referentes às minas e às terras, buscou somente uma forma de controle econômico de tais recursos naturais por meio da institucionalização da exploração do solo com aval estatal. Primava-se pela proteção dos interesses da burguesia e do próprio Estado (ALBUQUERQUE; MEDEIROS, 2013, p. 13).

De uma fase inicial marcada pela exploração desregrada dos recursos naturais e completa escassez de normas protetivas ao meio ambiente, passa-se à outra etapa de transição da legislação ambiental por meio da instituição do Código Civil de 1916, o qual ordenou as primeiras normas de proteção, porém com aplicação restrita – isso porque visavam, não a preservação do meio ambiente, mas sim solucionar questões, inclusive ambientais, por meio da proteção de direito privado, tal como o direito de vizinhança (SILVA, 2011, p. 35).

O art. 554 do mesmo Código Civil concedia ao proprietário ou inquilino de um prédio o direito de impedir que o mau uso da propriedade vizinha pudesse prejudicar a segurança, o sossego e a saúde dos que o habitavam. Esse dispositivo “serviu para fundamentar a ação cominatória visando a impedir a contaminação do meio ambiente por parte de indústrias” (SILVA, 2010, p. 35). Tem-se como exemplo, ainda, o art. 584 também do mesmo Código, que traz a proibição de construções capazes de poluir, ou inutilizar, para o uso ordinário, a água de poço ou fonte alheia, a elas preexistente. É a fase fragmentária já mencionada.

A matéria ambiental ganha destaque constitucional com a promulgação da Constituição Republicana de 1934, que trouxe consigo o desenvolvimento de legislação ambiental específica, mesmo que de forma circunstancial ou restrita, tais como o Código Florestal (Decreto 23.793, de 23 de janeiro de 1934) – substituído pelo novo Código Florestal vigente, pela Lei 12.651, de 25 de maio de 2012; e o Código de Águas (Decreto 24.643, de 10 de setembro de 1934), além de outras legislações infraconstitucionais destinadas a recursos que apenas eram protegidos por sua valoração econômica, como o Código de Pesca (Decreto-lei 794, de 10 de outubro de 1938) – substituído pelo Decreto-lei 221 de 28 de janeiro de 1967 (SILVA, 2010, p. 35-36).

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Com efeito, a partir da Constituição de 1934 – a “Constituição do Estado Novo” - evidencia-se uma abrangência da competência legislativa da União em face dos bens ambientais, haja vista que agora somam-se à proteção das minas e das terras presentes na Constituição de 1891 a proteção das águas, das florestas, da caça e da pesca. No entanto, tal abrangência feita pelo constituinte ainda foi marcada por um viés notadamente antropocêntrico, já que a preocupação com os bens ambientais justifica-se muito mais pelo interesse econômico do que pelo meio ambiente em si. Ainda assim, destacam-se na Carta de 1934 a referência à proteção ao meio ambiente cultural por meio da preservação das belezas naturais e os monumentos de valor histórico do país, bem como a precaução com o uso coletivo dos bens ambientais ao determinar a Carta que os lagos, as correntes, as ilhas e as margens de rios seriam de domínio público. Na mesma linha de pensamento, a relação de proteção com o meio ambiente estabelecida pela Constituição de 1937, pela Constituição de 1946 e pela Constituição de 1967, não se distingue muito daquela encontrada na Carta de 1934 já mencionada. Isso porque houve alterações pouco relevantes com relação ao conteúdo dos dispositivos relacionados aos bens ambientais, mantendo-se a preocupação com o domínio das águas e questões de competência legislativa de outros recursos naturais (ALBUQUERQUE; MEDEIROS, 2013, p. 13-16).

Na década de 1960, apesar de ainda não haver normas ambientais destinadas diretamente à preservação e conservação do meio ambiente, a legislação federal voltou-se para essa área com a criação do Decreto-lei 248, de 28 de fevereiro de 1967, que instituiu a Política Nacional de Saneamento Básico, que objetivava a aplicação de programa governamental nos setores de abastecimento de água e esgoto sanitários, além da criação do Conselho Nacional de Saneamento Básico. Este é também o período de vigência que se buscou mais diretamente a tutela do meio ambiente, por meio da prevenção da degradação e manutenção da qualidade do mesmo. Podem ser destacadas como normas legais com esse propósito a vigência do I e II Plano Nacional de Desenvolvimento; em 1965, com a instituição de um Código Florestal posterior ao de 1934, pela Lei 4.771/65; a Lei de Proteção à Fauna, nº 5.197/67; o Código de Pesca, pelo Decreto-lei 221/67, dentre outros (SILVA, 2010, p. 37).

Seguindo a etapa gradativa de tratamento da questão ambiental, ao meio ambiente foi atribuído grande destaque tanto nos meios científico, como social, jurídico e político, em meados da década de 1970, em virtude da realização da Conferência de Estocolmo de 1972. Contudo, mesmo com o nível de progresso recém-conquistado e o despertar da comunidade mundial frente às disparidades sociais, degradação e desastres ambientais a nível global, a conformidade de pensamentos no que toca à consciência ambiental ainda estaria longe de ser alcançada, em razão das discordâncias entre os países participantes (MONTEIRO, 2011, p. 53-54).

Nessa mesma linha de pensamento, Isabella Pearce Monteiro (2011, p. 56-57) aponta que apesar da divergência em diversos pontos, o documento final produzido pela Conferência, denominado Declaração das Nações Unidas em Meio Ambiente Humano ou apenas Declaração de Estocolmo, traz diversos princípios direcionados especificamente à preservação ambiental e ao desenvolvimento equitativo entre os países, contribuindo para uma maior proteção do meio ambiente em nossa Constituição Federal de 1988.

É importante destacar ainda a publicação da Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispôs sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, sendo uma das criações que objetiva uma unidade política (SILVA, 2011, p. 40), além do advento da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, que criou a ação civil pública, instrumento processual colocado à disposição do cidadão e do Ministério Público para propor ações em defesa do meio ambiente (SIRVINSKAS, 2006, p. 21).

A despeito da importância de tal evolução da normatividade jurídica do meio ambiente, mesmo que por vezes esparsa, foi com a promulgação da Constituição Federal de 1988 que se deu início ao maior salto legislativo no que toca à proteção em matéria ambiental, como bem afirma Alexandre de Moraes (2012, p. 880), podendo o final do século XX ser caracterizado o período de estopim da consciência ecológica em âmbito nacional. Apesar de ser inegável afirmar que a Constituição de 1988 foi a primeira a tratar deliberadamente sobre a questão ambiental, não se pode olvidar que a Carta de 1988 também é fruto da gradativa abordagem protecional ambiental nas Constituições brasileiras anteriores, mesmo que o tratamento tenha sido, por vezes, sob uma ótica econômica (ALBUQUERQUE; MEDEIROS, 2013, p. 16).

É possível admitir que até aqui o Brasil ainda não tinha visto uma Carta de Direitos efetivamente verde como é a Carta Fundamental de 1988, contudo não há como vendar os olhos para o avanço gradativo da proteção constitucional ao ambiente, mesmo que de início tenha sido, exclusivamente, sob o viés econômico. No concernente à superação de diferentes fases da proteção ambiental é inegável, após a análise das Cartas Constitucionais, que a referência ao tema na história constitucional brasileira foi modificada sobremaneira. Parte-se de um modelo constitucional que nada disciplinava acerca da proteção ambiental até alcançarmos nível de amparo e de conscientização de proteção do ambiente, regrado pela Constituição vigente. É notório assegurar, portanto, que a Constituição Federal de 1988 foi a primeira a proteger de forma deliberada a questão do ambiente.

Interessa salientar que pouco depois da promulgação da nossa Carta Constitucional de 1988, a qual reservou o capítulo VI, do Título VIII completo ao Meio Ambiente, o Brasil foi escolhido para sediar a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento no Rio de Janeiro, no ano de 1992, onde se procurou reafirmar os princípios presentes na Declaração de Estocolmo realizada em 1972 (SIRVINSKAS, 2006, p. 21).

 Inobstante o fato de tal tratamento constitucional não solucionar todos os problemas emergenciais relativos ao ecossistema ora bastante degradado, além de não se obter, no plano concreto, uma resposta à altura dos compromissos firmados em 1992, o despertar para a defesa do meio ambiente levou ao destaque da publicação da Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605 de 12 de fevereiro de 1998), a qual dispõe sobreas sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente e dá outras providências, como a responsabilidade penal das pessoas jurídicas – tema que será tratado no capítulo II do presente trabalho.

2.2 O Meio Ambiente como Direito Fundamental na Constituição de 1988

Não obstante a presença de várias normas de proteção aos recursos naturais, tais como o Código de Águas e o Código Florestal supracitados, nunca houve em nossas Constituições anteriores ou em legislação infraconstitucional a proteção do meio ambiente como um todo integrado, tal qual é concebido hoje. Se antes o que impulsionava a preocupação com os recursos naturais era unicamente as atividades econômicas que deles dependiam, hoje o que gira em torno de tal proteção é a classificação do meio ambiente como um bem, sendo este próprio objeto de direito (SOUZA, 2012, p. 4065-4066).

É nesse sentido que Édis Milaré (2013, p. 159-174) denomina a Constituição de 1988 como uma Carta verde, devido ao destaque dado à proteção do meio ambiente não só em dispositivos concentrados no Capítulo VI do Título VIII dirigido à Ordem Social, como também em diversos outros títulos e capítulos no decorrer do texto constitucional. Ao definir o meio ambiente como bem de uso comum do povo foi também reconhecida sua natureza de “direito público subjetivo”, de forma que o Estado agora possui verdadeiro dever constitucional, por meio de diversas obrigações de fazer, de defender e preservar o meio ambiente. Em outras palavras, o direito pode ser exigido e exercitado pelo cidadão, que deixou de ser mero titular passivo daquele, em face do próprio Poder Público.

Nesta feita, foi no caput do art. 225 da Carta Magna que o legislador constituinte consagrou um novo direito fundamental, qual seja, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, legitimando ao Poder Público e à coletividade o dever de intervenção em sua defesa e preservação daquele para as presentes e futuras gerações (BRASIL, 1988).

Importa esclarecer brevemente o que são esses direitos fundamentais e qual sua função a ser cumprida no ordenamento pátrio. Consoante o entendimento de Alexandre de Moraes (2012, p. 28) são aqueles direitos e garantias individuais inerentes aos cidadãos, os quais impõem diversas limitações ao poder delegado pelo povo aos seus representantes, e cumprem a função de direito de defesa dos cidadãos tanto na constituição de normas de competência negativa por parte do Poder Público, como na liberdade de exercício de tais direitos, de modo a evitar intervenções estatais que venham a lesar os mesmos.

Continua o autor ao apontar a subdivisão dos direitos e garantias fundamentais em cinco capítulos presentes na Constituição de 1988, em seu Título II, bem como sua classificação moderna pela doutrina em direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira gerações: direitos individuais e coletivos; direitos sociais; nacionalidade; direitos políticos; partidos políticos. Por ora, basta salientar que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é englobado por aqueles conhecidos como de terceira geração, não por sua menor importância constitucional, mas sim por corresponder a um direito de titularidade coletiva atribuído a toda comunidade tomando por base os princípios da solidariedade e fraternidade (MORAES, 2012, p. 29).

Nesse sentido, nas palavras de Érika Pinho Ramos (2005, p. 98) esse novo direito fundamental da pessoa humana acrescentado no caput do art. 225 configura uma extensão do próprio direito à vida, tendo em vista o seu expresso reconhecimento como direito de todos. É reconhecidamente direito humano em virtude de sua correspondência com o dever de “preservar o equilíbrio ecológico do meio ambiente como garantia de sobrevivência e perpetuação da espécie humana”.

Percebe-se, nesse contexto, que a fundamentalidade do direito ao meio ambiente reside na própria relação entre a necessidade de preservação do mesmo, conservando-lhe em uma qualidade satisfatória, e as condições mínimas de vida adequada tanto para as gerações presentes como para as futuras. Ausente o equilíbrio entre essa relação, não há que se falar nem mesmo em sobrevivência, diante da degradação de recursos naturais, tais como água e ar.

Corroborando tal pensamento, Emerson Bortolozi (2011, p. 41) torna indiscutível essa qualificação ao afirmar que “não basta sobreviver, deve-se sobreviver com qualidade e resguardar os bens ambientais para as futuras gerações. Com esse enfoque, o meio ambiente passou a ser tratado como um direito constitucional fundamental da pessoa humana”.

Assim dispõe o caput do art. 225 da atual Carta Constitucional:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (BRASIL, 1988, grifos nossos).

Cumpre destacar o reconhecimento do meio ambiente como um bem considerado em si mesmo, fator este que acentua ainda mais o novo status dado ao meio ambiente em nossa Constituição quando comparado às Constituições e normas de proteção anteriores. Não se trata mais de mera conservação de recursos aos quais era atribuído grande valor econômico – ignorando-se por completo as consequências devastadoras da exploração, além da finitude dos recursos -, mas sim de preocupação com a preservação imediata e futura de um bem agora jurídico, objeto de direito (SOUZA, 2012, p. 4065).

Nesse contexto, a expressão “bem de uso comum do povo” nas palavras de Alexandre de Moraes (2012, p. 880) suscita “a utilização de todos os meios legislativos, administrativos e judiciais necessários à sua efetiva proteção, que possui um regime jurídico especial que exorbita o Direito Comum”. Por ser de uso comum, além de acarretar em deveres ao Poder Público e à coletividade, a defesa e preservação do meio ambiente deve conciliar as noções de Direito Constitucional e Direito Internacional, de modo a dar ensejo a uma evolução também nas noções de interesse público e privado e direito de propriedade. Nesse sentido, Guido Fernando Silva Soares (2001 apud MORAES, 2012, p. 881) esclarece:

No fundo, o meio ambiente é um conceito que desconhece os fenômenos das fronteiras, realidades essas que foram determinadas por critérios históricos e políticos, e que se expressam em definições jurídicas de delimitações dos espaços do Universo, denominadas fronteiras. Na verdade, ventos e correntes marítimas não respeitam linhas divisórias fixadas em terra ou nos espaços aquáticos ou aéreos, por critérios humanos, nem as aves migratórias ou os habitantes dos mares e oceanos necessitam de passaportes para atravessar fronteiras [...].

Nesse diapasão, por se tratar de bem jurídico de uso comum do povo, autônomo e conferido a todos, o mesmo torna-se revestido de caráter difuso, devendo estar presente a exigibilidade de todos os comportamentos, sejam positivos ou negativos, daqueles a quem incumba o dever jurídico (Poder Público e coletividade) de proteção e preservação do bem supracitado (RAMOS, 2005, p. 98), observando as legislações constitucional e infraconstitucional e tratados internacionais.

Registre-se, também, que para possibilitar a ampla proteção do direito ao ambiente saudável, não foi poupada a utilização de instrumentos mais eficazes, bem como a previsão de diversas regras distribuídas em quatro grupos, previstas na Constituição Federal, e também elucidadas por Alexandre de Moraes (2012, p. 883), sendo a primeira delas a regra de garantia, que atribui a qualquer cidadão a legitimidade para propor ação popular que vise anular ato lesivo ao meio ambiente (art. 5º, LXXIII, CF).

Após, as regras de competência, por meio das quais a Constituição determina a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos (art. 23, III, CF); proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (inciso VI); preservar as florestas, a fauna e a flora (inciso VII). Determina também a competência legislativa concorrente entre União, Estados e Distrito Federal para legislar sobre florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição (art. 24, VI); proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico (inciso VII); responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (inciso VIII). Além disso, a Constituição prevê como função institucional do Ministério Público promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos - art. 129, III, CF (MORAES, 2012, p. 883).

Seguindo a ordem de divisão dos grupos, temos as regras gerais por meio das quais a Constituição prevê de forma difusa diversos comandos relacionados à preservação do meio ambiente, a título de exemplo os arts. 170, VI; 173, §5º; 174, §3º, 186, II; dentre outros, todos presentes na mesma Carta. Finalmente, seguem as regras específicas encontradas no Capítulo VI, especificamente destinado ao meio ambiente (MORAES, 2012, p. 883).

Conforme preceitua Emerson Bortolozi (2011, p. 41), é inegável a mudança pelas quais passa a sociedade e a consequente incorporação de novos valores de acordo com a demanda histórica e necessidades daquela. Isso ocorre na medida em que surgem novos aspectos políticos, econômicos, ideológicos e ecológicos, os quais são reconhecidamente inafastáveis e polêmicos nas discussões que envolvem direitos fundamentais. Mesmo assim, o autor defende a necessidade de persecução de soluções justas e legítimas, em consonância com o disposto em nossa Constituição.

Presume-se que a predisposição moderna é a da preocupação com os interesses difusos, especialmente o meio ambiente, que por ser considerado bem de uso comum do povo e patrimônio comum de toda a humanidade, a ele devem ser direcionadas todas as condutas de modo a efetivar a proteção integral do mesmo – o que inclui a garantia de conservação dos diversos recursos naturais, tais como a água, o ar, o solo, bem como a flora e fauna silvestres (MORAES, 2012, p. 880-881).

2.3 Importância da Tutela Constitucional da Fauna à Luz do Direito Fundamental ao Meio Ambiente

Por todo o exposto, conclui-se ser inegável a tutela dos animais no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro, figurando aqueles agora como bem jurídico, objeto de direito, previsto na Constituição de 1988 e englobados pelo meio ambiente ecologicamente equilibrado, tal qual disposto no caput do art. 225 da mesma Carta - esta última em seu art. 24, VI, inseriu a fauna na competência concorrente da União e dos Estados para legislar -, de onde podemos retirar:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Cumpre esclarecer que, a partir da redação do texto constitucional supramencionado, a delimitação de um novo direito de terceira geração ou de nova dimensão reflete uma norma de proteção ambiental que vai além da premente necessidade de defesa e preservação do meio ambiente na medida em que vincula as próprias necessidades básicas para existência humana. É nesse sentido que Letícia Albuquerque e Fernanda Medeiros (2013, p. 17) esclarecem a ação do constituinte ao incluir o meio ambiente, bem como todos os seus componentes, como um bem jurídico passível de tutela. Para as autoras trata-se de uma “nova dimensão do direito fundamental à vida e do próprio princípio da dignidade da pessoa humana”.

A Constituição Federal de 1988 é a primeira constituição brasileira a mencionar o termo “animais”, posto que nas constituições anteriores à de 1988 não havia sequer a proteção deliberada do meio ambiente como um todo (longe dos interesses de cunho econômico), quiçá a proteção específica dos bens que também contribuem para o equilíbrio ecológico, tais como a fauna e a flora. A palavra "animais" pode ser vista no art. 225, presente no Capítulo VI, Do Meio Ambiente e cuja redação trata do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo por ser essencial à sadia qualidade de vida do povo. Da mesma forma, o texto constitucional também fez menção ao termo “fauna” por três vezes ao se referir aos animais, sendo elas: uma no art. 225, § 1°, VII, quando obriga o Poder Público a “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”; no art. 23, VII, quando dispõe que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios “preservar as florestas, a fauna e a flora”; e no art. 24 VI, ao estabelecer como competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal legislar sobre “florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição”. (CARVALHO, 2015, p. 25-26).

Nesse contexto, o texto constitucional também retrata os animais no art. 225, § 1°, VII por meio do termo "espécies", ao vedar práticas que provoquem "a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade". A partir dessas considerações, podemos constatar que a nossa atual Carta Constitucional por vezes menciona, direta ou indiretamente, os animais. Isso é feito pelo constituinte seja através de termos como "fauna", "animais", "extinção de espécies", "vida", "qualidade de vida e meio ambiente", “crueldade”, dentre outros. A tarefa de defini-los, no entanto, ficou para o legislador infraconstitucional e a cargo da interpretação dos aplicadores do direito e da doutrina (CARVALHO, 2015, p. 27).

Para Paulo Affonso Leme Machado (2015, p. 946-949), tais preceitos nos levam a concluir que por figurar a fauna um bem de uso comum do povo, a mesma não constitui bem do domínio privado da Administração Pública ou bem patrimonial do qual a União possa se utilizar para praticar atos de comércio. Para o autor, é fácil concluir que o Estado não é dotado do poder de usar, gozar e dispor da fauna silvestre justamente por não ter pretendido submeter a fauna silvestre e seu habitat a um regime jurídico de Direito Privado. Nesta feita, “a própria Lei de Proteção à Fauna veda a caça profissional e proíbe o comércio de espécimes da fauna silvestre”, não havendo livre permissão para que a União possa vender, permutar ou explorar economicamente a fauna.

Partindo do entendimento de Machado (2015, p. 943-944), num sentido amplo, a fauna pode ser conceituada como o conjunto de espécies animais de determinado país ou região. A fauna silvestre, no entanto, engloba os animais da selva, os não domesticados e os bravios (sendo estes últimos aqueles que vagam livres e repelem o jugo humano, afastando-se aqui a braveza como sinônimo de ferocidade). Da mesma forma, pode-se enquadrar em tal conceito de fauna silvestre a fauna aquática, levando em conta que o art. 1º da Lei 5.197/67 também tutelou os animais que vivem naturalmente fora do cativeiro como elementos da fauna a ser protegida[2]. Enfatiza-se, assim, que fauna silvestre não se limita exclusivamente àquela encontrada na selva, mas sua indicação legal para diferenciação da fauna doméstica é a vida natural em liberdade ou fora do cativeiro.

No que toca ao estabelecimento do conceito de fauna, Luís Paulo Sirvinskas (2006, p. 274) entende ser a fauna silvestre “o conjunto de animais que vivem em determinada região. São os que têm seu habitat natural nas matas, nas florestas, nos rios e mares, animais estes que ficam, via de regra, afastados do convívio do meio ambiente humano”.

Nos dizeres de Edis Milaré (2013, p. 552-555) a fauna pode ser ordinariamente entendida como sendo o “conjunto de animais que vivem numa determinada região, ambiente ou período geológico”, sendo os animais silvestres aqueles “não domesticados, que vivem livres e independentes do convívio humano”. Compartilhando desse entendimento, José Afonso da Silva (2010, p. 195), afirma que a palavra “fauna” diz respeito ao “conjunto de todos os animais de uma região ou de um período geológico, abrangendo aí a fauna aquática, a fauna das árvores e do solo (insetos e microorganismos) e a fauna silvestre (animais de pelo e de pena)”.

De forma objetiva, percebe-se que os conceitos de fauna não divergem muito entre si, sendo o denominador comum apenas a necessidade de um conjunto de espécies animais isolados em determinado espaço territorial. Para Bortolozi (2011, p. 23), a obrigatoriedade da existência de um conjunto de animais em determinado local é decorrente do que preceitua a legislação brasileira no tocante à fauna silvestre para fins de proteção desses animais pela lei ambiental. A Lei de Proteção à Fauna (Lei n. 5.197/67) conceitua, em seu art. 1º, como os “os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais”.

A Lei de Crimes Ambientais (Lei n. 9.605/98), por sua vez, amplia este último conceito em seu artigo 29, §3º, classificando como espécimes da fauna silvestre “todos aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras”.

Como já dito anteriormente, indispensável é a existência de equilíbrio na relação indivíduo-natureza, no sentido de garantir a preservação dos recursos naturais finitos para que haja uma condição de vida adequada. Não seria diferente com a conservação da natureza estando incluída a fauna silvestre, posto que a conservação desta última traz também reflexos na conservação da própria vida humana (BORTOLOZI, 2011, p. 24).

Seguindo a concepção de Emerson Bortolozi (2011, p. 24-25) a importância da tutela integral da fauna reside em seu papel fundamental no equilíbrio dos ecossistemas em geral, pois destaca-se um elo vital de procriação entre os animais e a existência de diversas plantas. Corroborando tal pensamento, Luís Paulo Sirvinskas (2006, p. 273) explicita a indissociabilidade entre a fauna e flora, fator este que dá sustentação à diversidade biológica. A fauna deve ser preservada, não só por integrar o meio ambiente tutelado no art. 225 da Constituição Federal, mas também pela interação mútua entre fauna e flora, “de forma que uma não vive sem a outra, fazendo com que essa interação mantenha a integridade das espécies vegetais e animais”.

Além de fundamentais para o desenvolvimento das áreas naturais, bem como a diversidade ecológica, os animais, sejam eles da fauna silvestre brasileira, fauna silvestre exótica e fauna doméstica (distinção trazida pela legislação ambiental nacional), também contribuem indiretamente para os benefícios econômicos advindos da exploração do homem. Há que se falar, ainda, que desde os tempos primórdios até os dias atuais, ainda ocupa sua posição em termos de alimentação à raça humana, que ainda depende daquela para sua sobrevivência (BORTOLOZI, 2011, p. 24-25).

Ademais, Luís Paulo Sirvinskas (2006, p. 273) acrescenta que a quebra da cadeia alimentar e da consequente harmonia nos ecossistemas acarretará em um processo de extinção que não só afetará diretamente as espécies vegetais e animais, como também a própria raça humana.

Em que pese a importância da fauna já explicitada, cumpre destacar a finalidade cumprida pela mesma quando da sua correta utilização. Nesse sentido, Emerson Bortolozi (2011, p. 30-34) traz de forma esclarecedora a divisão das funções da fauna em quatro grandes grupos: a função ecológica, que cumpre seu papel no equilíbrio natural dos ecossistemas, podendo sofrer influências positivas ou negativas e está disposta no art. 225, §1º, VII da Constituição Federal, onde há vedação de “práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”; a função científica, disposta na lei reguladora do uso científico de animais (Lei nº 11.794/98), está caracterizada pela pesquisa em animais vivos para fins didáticos e científicos; a função recreativa, sendo esta atribuída ao lazer expresso como direito na Constituição de 1988, em observância, obviamente, à Lei de Proteção à Fauna, além de sempre decorrer de autorização do Poder Público para tanto, mesmo que se trate de propriedade particular – aqui existem uma série de proibições que afastam os interesses individuais, tais como a proibição da caça recreativa e quaisquer atividades que acarretem em crueldade contra animais domésticos; por fim, a função cultural, a qual também é atribuída à garantia constitucional do pleno exercício dos direitos culturais, bem como do incentivo à valorização e difusão das manifestações culturais, sejam elas populares, indígenas ou afro-brasileiras, de acordo com o art. 215 e parágrafos seguintes da Constituição Federal.  No entanto, as ressalvas a serem feitas na utilização da fauna para esse fim dizem respeito à diferenciação entre as atividades essencialmente culturais e aquelas mascaradas de aspecto cultural, mas que se utilizam de crueldade contra os animais (BORTOLOZI, 2011, p. 31-32).

É certo que o nosso ordenamento jurídico-constitucional veda qualquer prática que submeta o animal à crueldade. No entanto, muito embora ainda existam atitudes extremamente conservadoras em nosso sistema brasileiro tanto por parte de tutores de animais, como por parte de decisões dos tribunais enraizadas em tradições nacionais, algumas decisões já refletem as leves mudanças sociais nos modos de agir e de pensar no tocante à proteção animal sob a ótica constitucional (ALBUQUERQUE; MEDEIROS, 2013, p. 22).

Nesse contexto, cumpre destacar um caso típico que encontra amparo no Supremo Tribunal Federal: é o caso da Farra do Boi, de 1997, quando associações de proteção animal foram a juízo demonstrar que a festa vinha sendo mascarada de cunho tradicional, mas que na verdade era um exemplo de maus-tratos contra os animais, fato este que afastava por completo a questão cultural e dava ensejo ao pedido de que a festa deveria acabar por definitivo. Embora tenha sido rejeitada em primeira instância, já em fase recursal no Supremo Tribunal Federal, foi decidido que a Farra do Boi configurava um espetáculo de extrema crueldade e que, por vezes, resultava na morte dos animais durante a realização das festas, devendo aquela ser banida. Dessa forma, além de encontrar amparo na redação do art. 225, §1º, VII da Constituição, a Farra do Boi também já foi julgada inconstitucional pelo STF em Recurso Extraordinário n. 153.531-8/SC (ALBUQUERQUE; MEDEIROS, 2013, p. 23).

Essa nova maneira de pensar o direito à vida, não mais sob uma visão legalista e antropocêntrica, mas sim como inerente a todos os seres vivos mantenedores do equilíbrio natural do qual dependemos, pode ser sentida nas seguintes palavras do voto do Ministro Francisco Rezek (RECURSO EXTRAORDINÁRIO 153.531-8/SC):

Não posso ver como juridicamente correta a ideia de que em prática dessa natureza a Constituição não é alvejada. Não há aqui uma manifestação cultural com abusos avulsos; há prática abertamente violenta e cruel para com animais e a Constituição não deseja isso. (...) Bem disse o advogado da tribuna: manifestações culturais são as práticas existentes em outras partes do país, que também envolvem bois submetidos à farra do público, mas de pano, de madeira, de “papier maché”; não seres vivos dotados de sensibilidade e preservados pela Constituição da República contra esse gênero de comportamento.

Nesse diapasão, o Plenário do Supremo Tribunal Federal também julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4983/CE, em outubro de 2016, ao julgar pedido formulado pelo Procurador-Geral da República para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 15.299/2013, do Estado do Ceará, a qual regulamentava a vaquejada como atividade desportiva e cultural no mesmo. Em uma votação acirrada entre os ministros, vale dizer, por 6 votos a 5, foi acompanhado o voto do relator Ministro Marco Aurélio que considerou inconstitucional a Lei supramencionada por haver “crueldade intrínseca” e intolerável aplicada aos animais na vaquejada (AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.983 CEARÁ). Eis um trecho do relatório:

A par de questões morais relacionadas ao entretenimento às custas do sofrimento dos animais, bem mais sérias se comparadas às que envolvem experiências científicas e médicas, a crueldade intrínseca à vaquejada não permite a prevalência do valor cultural como resultado desejado pelo sistema de direitos fundamentais da Carta de 1988. O sentido da expressão “crueldade” constante da parte final do inciso VII do § 1º do artigo 225 do Diploma Maior alcança, sem sombra de dúvida, a tortura e os maus-tratos infringidos aos bovinos durante a prática impugnada, revelando-se intolerável, a mais não poder, a conduta humana autorizada pela norma estadual atacada. No âmbito de composição dos interesses fundamentais envolvidos neste processo, há de sobressair a pretensão de proteção ao meio ambiente.

No mesmo sentido, Paulo Affonso Leme Machado (2015, p. 963) traz o art. 32 da Lei 9.605/1988 como fundamento para punir qualquer ato de crueldade praticado em caráter folclórico ou até histórico, figurando como polo passivo não só quem os pratica, mas também os que os incitam, de qualquer forma, em coautoria. Ainda assim, também são condutas que tipificam o crime mencionado: a utilização de qualquer instrumento nos animais, durante a realização de festas ou dos chamados rodeios ou vaquejadas; o emprego do sedém – aparelho com tiras e faixas de couro, fortemente amarrado na virilha do animal, com finalidade de comprimir seus órgãos genitais; além de todas as atividades que fizerem os animais se enfrentarem em luta ou disputa até a morte, tais como as brigas de galo[3]. Tais condutas são todas consideradas atos de crueldade contra animais e devem incidir no art. 32 da Lei 9.605/1988.

Ademais, as normas constitucionais gerais e aquelas específicas dispostas no art. 225 possuem eficácia limitada, sendo caracterizadas como direitos fundamentais de terceira dimensão, além de depender de legislação infraconstitucional para sua efetivação e realização. No que tange à efetivação do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a positivação das normas de proteção à fauna silvestre para a concretização de tal direito fundamental pode ser consubstanciada, a título de exemplo, na Lei de Proteção à Fauna e na Lei de Crimes Ambientais (BORTOLOZI, 2011, p. 103-104) – sendo dada especial atenção a esta última no decorrer do trabalho.

Vale ressaltar que a tutela jurídica da fauna silvestre não somente é imprescindível para a manutenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, tido com bem jurídico em si mesmo, mas também para a relação mútua existente entre indivíduo e natureza, posto que sem a preservação de um não haverá perpetuação de espécie do outro. É inegável a qualificação do meio ambiente e de tudo que o engloba como objeto de direito, extensão do direito fundamental à vida, dependendo esta diretamente do equilíbrio também exercido pelas espécies animais.

Com vistas ao comércio da fauna silvestre, no âmbito internacional A Assembleia Geral da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Seus Recursos (UICN), hoje intitulada União Mundial para a Natureza, aprovou uma resolução no ano de 1963 chamando atenção para a urgência da criação de uma convenção internacional que objetivasse regulamentar a exportação, trânsito e importação de espécies silvestres raras ou ameaçadas e seus derivados (como peles, por exemplo). A Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e Flora Selvagens em Perigo de Extinção (Convention on International Trade in Endangered Species of Wild Fauna and Flora – CITES) entrou em vigor no dia 1º de julho de 1975 para impedir o aumento da ameaça de extinção das espécies de animais selvagens e plantas diante do comércio internacional, sendo atualmente considerada um dos maiores acordos ambientais multilaterais em atuação, além de possuir a adesão de 175 países (GOMES; OLIVEIRA, 2012, p. 37).

Destaca-se que a CITES organiza seu funcionamento a partir de um sistema de licenças de importação e exportação, além de acordos de diferentes graus de proteção para mais de 34.000 espécies. Desenvolve também programas no âmbito da Convenção que servem como indicadores úteis para a realização de análises da atuação dos membros no tocante às políticas públicas de combate ao tráfico de animais - mais tarde, os indicadores ainda servirão para medir o estado de conservação das espécies -. Por meio da aprovação do Decreto Legislativo nº 54, de 24 de junho de 1975, e promulgação pelo Decreto nº 76.623, de 17 de novembro de 1975, o Brasil tornou-se signatário da CITES nesse mesmo ano. O Decreto nº 3.607/2000, que dispõe sobre a implementação da CITES no Brasil, denota a importância da observância das disposições da Convenção, além de designar o Ibama como autoridade administrativa e científica da Convenção (GOMES; OLIVEIRA, 2012, p. 37-39). Percebe-se, portanto, que a convenção em questão atua por meio de diversos mecanismos de funcionamento e constitui um instrumento fundamental para o controle do comércio internacional das espécies da fauna selvagem ameaçadas de extinção.

Em contrapartida, sob uma perspectiva crítica à implementação da CITES, Tiago Souza Martins (2007, grifo nosso) explana diversas falhas na implementação da Convenção, no sentido de demonstrar que a maioria esmagadora das obrigações previstas no texto da CITES não passam de letra morta. Isso porque muitos dos mecanismos julgados erroneamente adequados para a proteção da fauna selvagem, da maneira como foram descritos, não têm a finalidade esperada de conservar as espécies e protegê-las de ameaças à sua existência. Pelo contrário, objetivam unicamente a manutenção do comércio internacional das espécies listadas em seus Anexos, assim como dos produtos que delas derivam.

Dentre tantas falhas e contradições, algumas podem ser reconhecidas de prontidão no decorrer do texto da Convenção, tais como: o fato de os Estados contratantes, os quais assinam e ratificam a CITES, reconhecerem que a fauna selvagem constitui em suas numerosas, belas e variadas formas um elemento insubstituível dos sistemas naturais apenas quando se trata do seu conjunto, deixando de abordar e excluir do comércio uma única espécie da fauna que possa se encontrar ameaçada de extinção; o fato de não haver total proibição para comercialização das espécies ameaçadas de extinção que são ou possam ser afetadas pelo comércio, presentes no Anexo I da CITES, mas sim existir uma série de regulamentações e autorizações somente em circunstâncias excepcionais para o comércio das mesmas. Além de ser um conceito vago, não há qualquer menção sobre quais seriam tais circunstâncias, o que limita o alcance do tratado e dá margem para diversas interpretações voltadas para o interesse econômico das partes[4]; o fato de o país que deseja importar animais sem licença por parte do país exportador poder facilmente encontrar outro Estado fornecedor que não possua tal exigência; o fato de a exportação e importação de espécimes de espécies presentes nos Anexos I e II da CITES poderem ocorrer independentemente da apresentação de licenças caso os animais tenham sido criados em cativeiro, ficando a critério da Autoridade Administrativa do país; dentre outros (MARTINS, 2007, p. 68-69 e p. 130-131).

Segundo o autor, combater a exploração excessiva da fauna selvagem pelo comércio internacional não é uma prioridade dos países signatários da CITES justamente pelo fato de esses Estados estarem plenamente conscientes do crescente valor, ao ponto de vista estético, científico, cultural, recreativo e econômico, da fauna e flora selvagens ao assinarem o acordo internacional. Dentre todos os valores mencionados, aquele que está no centro das atenções é o valor econômico, já que a CITES garante a disponibilidade desses bens relevantes para o comércio internacional. Importa ainda mencionar que, diante do atual estado de degradação da fauna selvagem e da ausência de políticas públicas efetivas, faz-se necessário responsabilizar diversos Estados por omissão, inclusive o Brasil (MARTINS, 2007, p. 70-72).

Por fim, o grande desafio enfrentado atualmente é reconhecer que, para além dos interesses do homem, os animais também são detentores da vida e possuem suas próprias necessidades de sobrevivência. Respeitar o espaço de cada ser, seja racional ou irracional, é também abarcar o disposto no texto constitucional do art. 225 e contribuir para a promoção da própria dignidade da pessoa humana. Ocorre que, mesmo diante da adoção de tantas medidas nacionais e internacionais que não passaram do papel, não houve sucesso no cenário atual de práticas ilícitas causadoras da extinção das espécies silvestres. Exemplo disso é o tráfico de animais silvestres há muito praticado no Brasil, o qual será objetivo central do presente trabalho.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA, Mikaelle Kaline Santos. A proteção jurídica do meio ambiente no Brasil e os desafios à repressão do tráfico de animais silvestres.: Uma análise à luz do art. 29 da Lei de Crimes Ambientais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5844, 2 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73338. Acesso em: 24 abr. 2024.

Mais informações

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientadora: Profa. Me. Thaís Emília de Sousa Viegas.

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