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A proteção jurídica do meio ambiente no Brasil e os desafios à repressão do tráfico de animais silvestres.

Uma análise à luz do art. 29 da Lei de Crimes Ambientais

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3 O DIREITO AMBIENTAL SOB UM NOVO PARADIGMA: A LEI DE CRIMES AMBIENTAIS E A NECESSIDADE DE RESPONSABILIDADE AMBIENTAL

O presente capítulo abordará a maior amplitude dada à proteção do meio ambiente após a disciplina do mesmo, em capítulo próprio, no dispositivo do art. 225 da Constituição Federal de 1988, trazendo à pauta a sistematização dos crimes ambientais e suas punições e das infrações administrativas pela Lei dos Crimes Ambientais. Diante dessa tutela inovadora, o que antes se encontrava disperso em legislações esparsas pertinentes à proteção do meio ambiente, agora pode ser melhor definido e tutelado por um regime próprio, qual seja, o vigente a partir da Lei 9.605/98. Nesse sentido, tratar-se-á, de forma concisa, sobre a tentativa de consolidação de um Direito Penal do Ambiente por meio da Lei acima mencionada, abordando pontos relacionados à necessidade ou não de tutela penal do meio ambiente. Em seguida, serão explicitados alguns apontamentos que se julga relevantes a respeito das tutelas penal e administrativa na Lei de Crimes Ambientais, abordando a aproximação dada a esses dois âmbitos até então tratados como distintos e distantes entre si, sem prejuízo à menção das sanções por crimes contra o meio ambiente na legislação. Finalmente, é posta em análise a tutela da fauna silvestre, no art. 29 da Lei supracitada, expondo o tipo penal em espécie e o seu bem jurídico tutelado.

3.1 A Lei de Crimes Ambientais e a Tentativa de Consolidação do Direito Penal do Ambiente

O reconhecimento do direito ao meio ambiente como um direito fundamental da pessoa humana constitui um divisor de águas para a sociedade contemporânea na medida em que impulsiona, mesmo que de forma lenta e gradual, a busca de soluções para os efeitos nocivos decorrentes da relação entre homem e natureza. Apesar da problemática ambiental não ser atual - mas algo que sempre existiu entre nós -, essa elucidação dos riscos ambientais e mudança do pensamento da sociedade o são, motivo que justifica a especial necessidade e obrigação de tutelar e preservar esse direito sabidamente coletivo, visto que contempla toda a vida, seja ela humana, animal ou vegetal.

A reação ao conjunto reiterado de ações e omissões humanas que degradam o meio ambiente de forma descontrolada e utilizam seus recursos continuamente (resultando na perda da qualidade de vida) torna essencial a existência de uma segurança jurídica ambiental. Tal segurança, no entanto, depende de uma regular e eficaz aplicação das normas e princípios, o que será concretizado apenas com uma atuação preventiva de proteção jurídica do meio ambiente, pautada no conhecimento das problemáticas ambientais (RAMOS, 2005).

Mais além do expresso reconhecimento do meio ambiente como extensão do direito à vida, ou seja, um direito de todos, para Prado (2005, p. 80, grifo nosso) o §3º do art. 225[5] traz consigo um mandato expresso de criminalização ao esclarecer qualquer dúvida ora existente acerca da responsabilidade penal dos praticantes de condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas.

Não se pode perder de vista que, mais uma vez, à época da promulgação da Constituição Federal de 1988, a disciplina jurídica do meio ambiente, no que toca aos sistemas penal e administrativo, estava em crise de sistematização – situação contrária à do âmbito civil -, no sentido de não haver uma codificação ordenada e sistematizada das infrações de caráter ambiental. Assim, a grande quantidade de leis esparsas - tais como no Código Penal, na Lei de Contravenções Penais e no Código Florestal - e os incontáveis procedimentos para investigação das condutas lesivas ao meio ambiente evidenciavam a carência de uma legislação ambiental (RAMOS, 2005, p. 100).

Nesta vereda, com o objetivo de integração desses dois sistemas de responsabilidade foi promulgada a Lei nº 9605/98, também conhecida como Lei dos Crimes Ambientais. A mesma veio tratar especificamente sobre as sanções penais e administrativas resultantes de crimes e infrações ambientais. Seguindo a esteira de Machado (2015, p. 839), em suma, a Lei supracitada trouxe consigo a tentativa de superar a enorme omissão da Administração Pública na imposição de sanções administrativas, haja vista que o acolhimento da responsabilidade penal em matéria ambiental reflete de forma mais firme o caráter impositivo e o caráter intimidador pertinentes às sanções ambientais. Estes últimos configuram garantias funcionais dadas ao Poder Judiciário, aplicador da sanção penal, que muitas vezes o funcionário público ou o empregado da Administração não possui ou deixou de ter.

Impende destacar, no entanto, que a abordagem do Direito Penal em matéria ambiental não foi ampla e pacificamente vista com bons olhos pelos penalistas e ambientalistas pátrios. Ao contrário, existem também entendimentos consolidados no sentido de considerar a tutela penal, com o advento da Lei 9.605/98, extremamente desproporcional, repressiva e incongruente, indo de encontro à suposta atuação preventiva e protecional do meio ambiente diante dos ilícitos cometidos.

Ratificando o acima exposto, Mendes (2000, p. 14) esclarece que dentre algumas das dificuldades que podem ser atribuídas ao Direto Penal do Ambiente está a preocupante tendência de expansão do direito penal, o qual “está agora sendo convertido a novas funções de pedagogia social”. A oposição a esta tutela penal se dá pelo fato simples e direto de que a única pedagogia repassada pelo direito penal à coletividade se resume àquela do castigo e imposição de penas, o que nem de perto deve ser considerada a melhor ou uma pedagogia em si mesma. Ainda seguindo a mesma linha de pensamento, o direito penal não deve ser utilizado como instrumento formador de uma nova mentalidade ecológica da sociedade, por não ser responsável por tal tarefa – e mesmo que o fosse, ainda assim seria ilegítima sua atuação apenas com intuitos de educação ambiental.

Nesse sentido, assevera Mendes (2000, p. 15):

Se todos sabemos que o direito penal constitui o mais severo instrumento de intrusão na esfera de liberdades do cidadão, por parte do Estado, não podemos a seguir admitir que se queira usar as sanções penais como se fossem uma simples alavanca anódina, a qual servisse para forçar as pessoas a mudarem de hábitos e a actuarem em conformidade com o interesse geral na prossecução do bem-estar coletivo, muito menos quando for possível alcançar os mesmos fins através de meios menos gravosos. Ao direito penal deve sempre competir, como sói dizer-se, uma função de ultima ratio.

Se por um lado Machado (2015, p. 839) considera a aceitação do Direito Penal como sendo deveras útil para a melhoria e recuperação do meio ambiente, pelo fato de a Lei nº 9605/98 possibilitar “impor um mínimo de corretivo, para que a nossa descendência possa encontrar um planeta habitável”; por outro, Júnior (2005, p. 80-81) aponta o comprometimento de quase toda a legislação penal ambiental por instrumentalizar o Direito Penal, ao afastá-lo dos pressupostos de dignidade e merecimento de pena das condutas ilícitas praticadas, e expandi-lo a um cunho meramente simbólico.

A título de exemplo, Júnior (2005, p. 77) traz diversas considerações a respeito do fracasso da tutela penal na Lei de Crimes Ambientais, dentre elas a ausência de critérios na tipificação de crimes e na cominação de penas ou o tratamento benéfico e, por vezes, brando a comportamentos gravemente lesivos ao meio ambiente. Mais além, o autor critica os excessos dos tipos penais e a imprecisão das normas incriminadoras causada pela frequente má redação do texto legal. Para fins de rápida ilustração, temos o art. 29, §3º da referida Lei, o qual conceitua fauna silvestre como “as espécies nativas, migratórias e quaisquer outras”, cabendo ao leitor supor que são as espécies já mencionadas e ainda mais qualquer outra restante; o art. 30, ao mencionar “exportar para o exterior” peles e couros; a pena desproporcional de seis meses a um ano de detenção quando da morte de animal silvestre comparada com a comercialização de sua pele ou couro, cuja pena vai de um a três anos (ou seja, à conduta de matar animal silvestre se impõe uma pena mais branda).

Nesta vereda, também ratifica Prado (2005, p. 175-176), ao mencionar a Lei de Crimes Ambientais como uma lei de natureza híbrida, em que se misturam temas diferentes, tais como, matéria penal, administrativa e internacional, resultando em avanços poucos significativos. Isso porque a mesma vai de encontro aos princípios penais da intervenção mínima e da insignificância ao criminalizar condutas que, à percepção do autor, deveriam ser meramente infrações administrativas ou, quando muito, contravenções penais.

As críticas culminam em outros pontos, tais como: a absurda previsão culposa para comportamentos irrelevantes em crime, como se pode perceber do art. 49 que descreve como crime “destruir, danificar, lesar ou maltratar plantas de ornamentação de logradouros públicos ou em propriedade privada alheia” – tornando crime o simples tropeçar e pisar em planta de um vizinho -. Diante de tantos erros e incongruências na Lei, dentre os quais apenas uma ínfima parcela foi aqui mencionada, há que se falar em uma profunda insegurança e consequente necessidade de reconstrução da legislação penal ambiental no país (JÚNIOR, 1998).[6]

Percebe-se que com essa nova dimensão dada à tutela penal, parece se tornar tendência a manifestação do chamado direito penal simbólico. Em que pese a concepção de Ramos (2005), ao reconhecer a função simbólica do Direito Penal Ambiental por ser este um instrumento utilizado apenas em caráter excepcional e de forma secundária na luta contra a degradação do meio ambiente, em sentido antagônico argumenta Mendes (2000, p. 32-33) ao tratar esta manifestação do Direito Penal como notoriamente revestida de valores e conotações ideológicas que retiram do mesmo as consequências práticas efetivas. Mais ainda, a inutilidade de todo o direito penal simbólico é justificada pelo autor diante de falha daquele “na prossecução dos fins de prevenção geral” – a saber, tanto negativa como positiva.

Sem desmerecer as distintas concepções evidenciadas, as mudanças trazidas pela Lei de Crimes Ambientais não se prenderam apenas a retrocessos, mas também confirmaram um primeiro passo para a consolidação de uma legislação ambiental eficiente (como será observado mais à frente).

Sob uma perspectiva ampla, antes da tentativa de aproximar/integrar os dois âmbitos do Direito Ambiental sancionador – podendo ser chamado assim por não ter a Lei tratado exclusivamente dos crimes, mas também de infrações administrativas e suas respectivas sanções – houve alguns “fracassos” legislativos na seara ambiental, dentre eles o projeto para elaboração de um Código Nacional de Meio Ambiente ou o projeto de lei que tinha por objetivo introduzir um título específico no Código Penal dedicado aos crimes ambientais, além das idas e vindas de correção de erros e revisão de excessos do legislador no tratamento das condutas lesivas - este último tanto antes como no momento da edição da Lei ora analisada (RAMOS, 2005, p. 102).

Nesse sentido, com fulcro no comando constitucional, a Lei nº 9605/98 foi estruturada da seguinte maneira: I. Disposições Gerais; II. Da aplicação da pena; III. Da apreensão do produto e do instrumento de infração administrativa ou de crime; IV. Da ação e do processo penal; V. Dos crimes contra o meio ambiente; VI. Da infração administrativa; VII. Da cooperação internacional para a preservação do meio ambiente; VIII. Disposições finais. Além disso, em seu contexto existem diversas condutas típicas, tais como os crimes contra a fauna, contra a flora, crime de poluição, crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural, entre outros que recebem tratamento específico (LEI 9.605, 1998).

Para melhor compreensão das mudanças trazidas pela Lei da Natureza, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, autarquia que executa ações de competência federal para proteger o meio ambiente e assegurar a sustentabilidade no uso dos recursos naturais, publicou cartilha informativa (não mais disponível no site do órgão) onde são apontadas algumas diferenças significativas estabelecidas após a adoção da Lei nº 9.605/98.

Impende destacar algumas delas: as penas têm uniformização e as infrações são claramente definidas; define a responsabilidade da pessoa jurídica e permite a responsabilização também da pessoa física autora ou co-autora da infração; a punibilidade é extinta com a apresentação de laudo que comprove a recuperação do dano ambiental; as penas alternativas ou multa podem ser aplicadas imediatamente a partir da constatação do dano ambiental; é possível substituir penas de prisão até 4 anos por penas alternativas; matar animais para saciar a fome do agente ou de sua família descriminaliza o abate; maus-tratos contra animais domésticos, domesticados, nativos ou exóticos passa a ser crime (antes era contravenção); disposições claras relativas a experiências realizadas com animais; disposição clara contra a prática de soltura de balões; dentre outras (IBAMA apud RAMOS et al, 2005, p. 105-106).

À vista do exposto, não se pode olvidar dos inúmeros pontos merecedores de urgente revisão na tutela penal do meio ambiente - percebe-se que a maior parte das falhas deve-se à criminalização de condutas que não deveriam passar de meras infrações, à redução significativa da pena privativa de liberdade de condutas visivelmente lesivas, à insuficiência de determinadas sanções, dentre outras -, mas conclui-se ser evidente o passo dado no sentido de concretizar o princípio constitucional da prevenção à evidência do Direito Penal e a utilização deste último como mais um instrumento para a proteção do meio ambiente, logo após o advento da Lei de Crimes Ambientais.

3.2 Breves Apontamentos a Respeito das Tutelas Penal e Administrativa na Lei de Crimes Ambientais

Como se pôde perceber em linhas anteriores, o §3º do art. 225 da nossa Constituição Federal criou o sustentáculo necessário para o alcance de medidas mais rigorosas e eficazes com relação ao Direito do Ambiente. Conforme dispõe o artigo, as infrações estão sujeitas a uma tríplice responsabilização, independentes entre si – quais sejam, a civil, a administrativa e a criminal.

Em suma, na esfera civil a função primordial é a imposição de respeito ao patrimônio alheio a partir de uma sanção de natureza compensatória, mediante reparação do dano, além de garantir o direito de segurança à coletividade. Na esfera administrativa cabe ao Poder Público, dotado de poderes administrativos[7], a sujeição dos agentes às tarefas administrativas a ele inerentes. No que toca ao âmbito penal, este configura o último recurso dos três existentes para coibir as condutas consideradas ilícitas e lesivas, aplicando as penas adequadas (BRAGA, 2011, p. 11).

Apesar de a Lei 9.605/98 trazer em seu corpo diversas normas penais em branco (como no art. 29, §4º, I, VI; art. 33, parágrafo único, III; art. 34, parágrafo único, I e II, arts. 38 e 39, dentre outros), ainda não existe na doutrina entendimento pacífico sobre a possibilidade de adoção de normas penais em branco nos crimes ambientais devido à insegurança causada ao outorgar poderes ao administrador para criação de tipos penais -alusão ao princípio da legalidade (SIRVINSKAS, 2004, p. 41). Em sentido contrário, Costa Neto (2003, p. 312) refuta tal entendimento ao elucidar o caráter multifário das condutas violadoras do meio ambiente, motivo pelo qual não deve ser descartada a interação entre o direito penal e o direito administrativo e o consequente emprego de normas penais em branco.

Aproveita-se o ensejo para pôr em relevo que a grande maioria da doutrina brasileira, seja penalista, administrativista e até mesmo ambientalista, trata as responsabilidades penal e administrativa como absolutamente distintas. Tal fato justifica-se devido ao “grau de amplitude em que é admitida a incidência dos postulados do Direito Penal sobre o Direito Administrativo sancionador” (COSTA NETO et al, 2001, apud RAMOS, 2005, p. 109) Em outras palavras, existe uma certa influência em relevar as regras e princípios específicos do Direito Administrativo, tendo em vista que a culpabilidade exigível no âmbito penal não é a mesma da exigida naquele.

É nesse sentido que preconiza Ramos (2005, p. 110) ao sustentar:

Uma primeira peculiaridade se encontraria no distinto conhecimento que os cidadãos têm dos ilícitos. Enquanto que os penais, por sua brevidade e por afetar valores essenciais à Comunidade, devem ser conhecidos por todos e o infrator tem consciência normalmente de sua falta, não ocorre o mesmo com o repertório dos ilícitos administrativos que vêm definidos com caráter muito mais genérico nas leis e que admitem a possibilidade de desenvolvimento regulamentar.

Interessante notar que a Lei de Crimes Ambientais propõe exatamente o oposto ao supramencionado, pois na tentativa de reduzir a distância existente entre os âmbitos penal e administrativo, aquela trabalha com ambos ligados e influenciando um ao outro na estrutura das normas.

Corroborando esse entendimento, Prado (2005, p. 99) é enfático ao defender a tutela penal como “relativamente dependente da normativa de cunho administrativo”. Para ele, a lesão à norma administrativa integra o tipo de injusto apenas como um de seus elementos, posto que não se trata de proteger o mero ato de desobediência administrativa, mas deve-se levar primordialmente em conta as efetivas incidências ecológicas do delito. Tal ordem relativa não impede a tutela penal direta e independente, nos casos das ações de maior gravidade.

O Direito Penal Ambiental resulta dessa perspectiva de estar a par das exigências atuais da sociedade, impondo um maior rigor na proteção do meio ambiente diante das constantes falhas e omissões por parte das medidas civis e administrativas que vêm sendo tomadas.

A Lei de Crimes Ambientais alcançou outro alicerce necessário para uma maior eficiência do Poder Público na seara ambiental: o da dupla responsabilidade no âmbito penal – a responsabilidade da pessoa física e a responsabilidade da pessoa jurídica. Ressalte-se que, apesar de ser tema de forte divergência - por existir rígida resistência de penalistas mais ortodoxos que não admitem a responsabilidade penal da pessoa jurídica por ser incompatível com o sistema penal codificado atualmente – este tipo de responsabilidade penal encontra fundamento no art. 225, §3º da Constituição Federal.[8]

Ainda diante da vontade expressa do legislador, Jaguaribe (2016, p. 33-34) evidencia que parcela notória da doutrina opõe-se a essa previsão, com base em determinados argumentos: ofensa aos princípios da pessoalidade (art. 5º, XLV, CF), individualização da pena (art. 5º, XLVI, CF) e proporcionalidade da pena (art. 5º, XLVII, CF); a punição deve ser em relação à pessoa física do dirigente; falta de capacidade de figurar em ação no sentido penal estrito (consciência e vontade), capacidade de culpabilidade (que se funda em fato alheio, isto é, de seus dirigentes) e capacidade de pena (art. 5º, XLV, CF), dentre outros;

Dessa forma, baseando-se na previsão constitucional explícita, Sirvinskas (2004, p. 41) reafirma a importância da evolução e adaptação da ciência penal aos novos conceitos da sociedade, explicitando que “a lei é estática; e o meio ambiente é dinâmico. Se se pretende proteger o meio ambiente é necessário adotar medidas eficazes e rápidas para se evitar o dano irreversível”. O autor consolida, então, seu pensamento a partir da teoria da realidade, cuja defesa central está no fato de que a pessoa jurídica pode praticar delitos, pois sua vontade se expressa pela soma das vontades dos seus sócios e dirigentes – pessoa aqui não é somente o homem, mas sim todos os entes possuidores de existência real, o que afasta as possíveis ofensas aos princípios da legalidade, da culpabilidade, da pessoalidade, dentre outros. É necessário, no entanto, que a infração tenha sido cometida (SIRVINSKAS, 2004, p. 59-60, grifo nosso).

Nesse mesmo sentido, a responsabilização penal das pessoas jurídicas revelou um reflexo da atuação do Direito Penal Ambiental em prol do interesse público – como um instrumento acessório do regime administrativo sancionador do Poder Público -, já que a simples imposição de multas ou obrigações de indenizar não tutelava de forma eficaz o bem jurídico ambiental. Além disso, a dupla imputação ou o concurso necessário entre pessoas física e jurídica como condição para aplicação da sanção penal às pessoas jurídicas também estabelece aquele reflexo (RAMOS, 2005, p. 125).

Indo de encontro a essa linha de pensamento, Paulo de Sousa Mendes (2000, p. 26-29), depõe contra a fixação da responsabilidade criminal das pessoas jurídicas ao expor as dificuldades para englobar a criminalidade da empresa pelo fato de que qualquer infração cometida a partir de um grupo de pessoas organizado por meio da divisão de trabalho envolve problemas de imputação jurídico-penal – no sentido de haver uma separação na empresa entre ação e responsabilidade. Com efeito, o autor esclarece:

A própria ação proibida é levada a cabo, frequentemente, por um trabalhador subordinado, que não é verdadeiramente responsável pelo facto ou que não merece assumir o monopólio desta responsabilidade. Por outro lado, não é possível, muitas vezes, apontar para quaisquer superiores hierárquicos definidos, por detrás daquele que realiza, por si mesmo, a acção proibida, que tenham ordenado, efetivamente, a prática do facto. [...] Precisamente, quanto mais grandiosos forem os estabelecimentos industriais, tanto maiores poderão ser os riscos advenientes da respectiva atividade; e, no entanto, menores serão as hipóteses de identificar as cabeças responsáveis. Muitos casos haverá então em que se pode ser forçado a concluir que falta, inapelável e paradoxalmente, quem possa ser apontado como responsável pela prática do facto ilícito (MENDES, 2000, p. 27).

É oportuno salientar que há dissenso na doutrina pátria quanto ao tipo de responsabilidade pelos danos ambientais que deve ser imputada. Apesar de prevalecer o entendimento de que não é preciso a configuração de dolo ou culpa do agente para aplicação de sanções administrativas, Mukai (2007, p. 64-65) abraçou a responsabilidade objetiva do risco, em que admite-se as excludentes de culpa da vítima, da força maior e do caso fortuito, baseando-se nos termos do art. 14, §1º da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente[9] – afastando, portanto, a responsabilidade que inadmite excludentes nos danos ambientais. Em contrapartida, Machado (2015, p. 841), aponta a clara diferença, dada pelo legislador no art. 225, §3º da Constituição Federal, entre reparar os danos causados ao meio ambiente e sancionar penal e administrativamente condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Aqui, apesar de o objetivo final de reparação do dano ser o mesmo entre os três procedimentos, as técnicas empregadas são diferentes. Segundo sua concepção a reparação de natureza civil, por exemplo, independe de culpa do autor da ação ou omissão; já a cominação de sanção penal ou administrativa torna obrigatória a demonstração de culpa.

A Lei nº 9.605/98 contém tipos penais punidos a título de dolo e culpa e o legislador admite, em determinados tipos penais, responsabilização já no momento em que incide o resultado previsto na descrição da norma, criando figuras típicas de infrações administrativas objetivas e com tipicidade mais aberta (manutenção da autonomia dos princípios relativos ao Direito Administrativo sancionador). Sem prejuízo dessa admissão, também estão expressas infrações administrativas subjetivas, onde se faz necessária prévia advertência e culpa ou dolo do agente referente apenas às irregularidades sanáveis – nos casos em que o dano ainda não se consumiu (KRELL, 2012, p. 25).

O Decreto nº 6.514/08 que regulamentou a Lei nº 9.605/98 previu as mesmas penas abordadas no Direito Penal - privativas de liberdade, restritivas de direito e a multa, aplicáveis de forma isolada, cumulativa ou alternativa - como sanções penais para os delitos ambientais e dividiu os crimes contra o meio ambiente em cinco grupos: I – Infrações contra a fauna; II – Infrações contra a flora; III – Infrações de poluição e outras infrações administrativas típicas ambientais; IV – Infrações contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural; V – Infrações contra a administração ambiental (BRASIL, Decreto nº 6.514, 2008). Além disso, especificou as sanções impostas às pessoas físicas como sendo a multa, a pena privativa de liberdade e a restritiva de direito. Na redação de seu art. 8º, a Lei nº 9.605/98 traz que as penas restritivas de direito para as pessoas físicas são: prestação de serviços à comunidade; interdição temporária de direitos; suspensão parcial ou total de atividades; prestação pecuniária e recolhimento domiciliar; em relação às pessoas jurídicas, segundo art. 22 da mesma Lei, as penas são: I - suspensão parcial ou total de atividades; interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade; proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações (BRASIL, Lei 9.605, 1998).

No tocante à esfera administrativa, as infrações cometidas contra o meio ambiente também estão divididas em categorias ao longo dos arts. 24 a 93 e fazem parte de um procedimento administrativo próprio, conforme traz o art. 70, §4º da Lei 9.605/98 ao expor que “as infrações ambientais são apuradas em processo administrativo próprio, assegurado o direito de ampla defesa e o contraditório”. As mesmas podem ser punidas, observando o art. 72, incisos I a XI, com as seguintes sanções: a advertência; as multas simples e diária; a apreensão dos animais, produtos e subprodutos da fauna e da flora, bem como quaisquer instrumentos utilizados na infração; a destruição ou inutilização de produto; a suspensão de venda ou fabricação de produto, o embargo de obra ou atividade; a demolição de obra; a suspensão parcial ou total de atividades e a restritiva de direitos. (BRASIL, Lei 9.605, 1998).

Cumpre salientar que a entrada em vigor da Lei de Crimes Ambientais teve como parâmetro a proteção do principal bem jurídico nos crimes ambientais, sendo este o meio ambiente em todo o seu conjunto e abrangência. É nesse sentido que analisa-se a proteção à fauna silvestre, pondo em evidência o tipo penal em espécie tutelado no art. 29 da mesma Lei.

3.3 A Tutela da Fauna Silvestre no Tipo Penal do art. 29 – Lei de Crimes e Infrações Administrativas Ambientais

Os crimes contra a fauna estão disciplinados em nove artigos no capítulo V, seção I da Lei em comento. A previsão dos tipos penais para as condutas consideradas crimes contra fauna inicia no art. 29 da Lei em comento, parcialmente transcrito abaixo:

Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida: Pena - detenção de 6(seis) meses a 1(um) ano de detenção, e multa.

§ 1º Incorre nas mesmas penas: I - quem impede a procriação da fauna, sem licença, autorização ou em desacordo com a obtida; II - quem modifica, danifica, destrói ninho, abrigo ou criadouro natural; III - quem vende, expõe à venda, exporta ou adquire, guarda, tem em cativeiro ou depósito, utiliza ou transporta ovos, larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos e objetos dela oriundos, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente.

§ 2º No caso de guarda doméstica de espécie silvestre não considerada ameaçada de extinção, pode o juiz, considerando as circunstâncias, deixar de aplicar a pena.

§ 3° São espécimes da fauna silvestre todos aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras.

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O bem jurídico protegido é o meio ambiente, em especial a fauna silvestre representada por quaisquer espécies, aquáticas ou terrestres, e em qualquer fase de desenvolvimento. Os animais silvestres, de acordo com Sirvinskas (2004, p. 122) pertencem ao Estado e não configuram propriedade da União, cabendo a esta agir apenas como gestora do bem que pertence à coletividade. Prado (2005, p. 230) acrescenta que “a biodiversidade e a natureza são os objetos da proteção legal”.

Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo de um crime ambiental, seja a punição direcionada a pessoas físicas ou jurídicas, havendo a previsão, inclusive, “da possibilidade de desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, objetivando atingir a pessoa humana que efetivamente causou a lesão” (CAMPELLO et al, 2015, p. 215). No art. 29, de forma específica, o sujeito ativo é qualquer pessoa (crime comum), física ou jurídica, que não possua a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente para as condutas presentes no caput e parágrafo 1º. Nesse âmbito, Sirvinskas (2004, p. 123) aponta que o sujeito passivo é não apenas a coletividade, mas também a União Federal, nos termos do art. 1º da Lei 5.197/67.

O artigo 29 estabelece comportamentos cuja ilicitude dependerá ausência de permissão, licença ou autorização (caput e §1º, incisos I e III), bem como comportamentos que mantém a ilicitude ainda que se porte permissão, licença ou autorização (§1º, inciso II). O inciso II desse artigo, como descrito acima, faz incorrer na mesma pena do caput “quem modifica, danifica, destrói ninho, abrigo ou criadouro natural”, já que estes são integralmente protegidos na seara penal (MACHADO, 2015, p. 961).

Conforme caput do artigo em questão, o agente pratica crime se matar utilizando-se de qualquer instrumento ou meio disponível e se perseguir, seguindo a trilha de animais para matar, caçar ou mesmo apanhar – ainda que seu objetivo final não seja concretizado. É necessário observar que a utilização da fauna silvestre para fins de propaganda comercial também configura o crime, cabendo ao agente infrator a prova de porte de permissão, licença ou autorização. O mesmo ocorre com as ações previstas no §1º, III – é válido observar que a exportação da fauna silvestre, esteja ela viva ou morta, está abrangida por este artigo (MACHADO, 2015, p. 961).

O objeto material das condutas são todos os espécimes da fauna silvestre, próprios de uma determinada região (nativos) ou em passagem provisória por determinado local (em rota migratória). A redação do texto foi criticada no tocante à utilização da palavra “espécimes”, no plural, visto que deixa aberta a interpretação no sentido de não ser configurado o crime quando houver lesão provocada em um único animal da fauna silvestre (PRADO, 2005, p. 235). Cumpre evidenciar algumas incongruências quanto à redação do tipo penal, tornando-a confusa ao leitor, dentre elas: o caput limita as espécimes da fauna silvestre às nativas ou em rota migratória em contraponto ao §3º, o qual acrescenta a esse rol “quaisquer outras espécies, aquáticas ou terrestres” e abrangendo todo e qualquer animal a este artigo; o §6º estipula expressamente a não aplicação das disposições do artigo aos atos de pesca, ao passo que o §3º abrange as espécies aquáticas no rol de proteção (SIRVINSKAS, 2004, p. 123).

Admite-se a tentativa e a consumação se dá com a prática de qualquer das condutas tipificadas no tipo penal. Da mesma forma, admite-se a suspensão condicional do processo por ter a pena privativa de liberdade não ultrapassado o limite máximo de três anos, conforme disposto no art. 16 da Lei. Sirvinskas (2004, p. 127) esclarece que encerram normas penais em branco a lista de espécies raras ou consideradas ameaçadas de extinção (§2º e §4º, I), o período proibido à caça (§4º, II) e os métodos ou instrumentos capazes de provocar destruição em massa (§4º, VI).

Conforme preconiza Tedardi (2009, p. 45-46), em virtude do caráter subsidiário da lei penal comum, as causas excludentes de culpabilidade nos crimes ambientais são as mesmas encontradas no Código Penal pátrio, não sendo imputado crime ao agente quando: em estado de necessidade; em legítima defesa; em estrito cumprimento de dever legal e ou no exercício regular de direito.

Importa salientar as hipóteses em que não haverá crime contra a fauna, configurando excludentes de ilicitude previstas no art. 37 da Lei de Crimes Ambientais: quando o abate de animal for realizado em estado de necessidade, para saciar a fome do agente ou de sua família; para proteger lavouras, pomares e rebanhos da ação predatória ou destruidora de animais, desde que legal e expressamente autorizado pela autoridade competente; por ser nocivo o animal, desde que assim caracterizado pelo órgão competente (BRASIL, Lei 9.605, 1998).

A Lei de Crimes Ambientais, em seu art. 14, traz as circunstâncias que atenuam a pena em todos os delitos ambientais, inclusive nos crimes contra a fauna previstos no art. 29: baixo grau de instrução ou escolaridade do agente; arrependimento do infrator, manifestado pela espontânea reparação do dano, ou limitação significativa da degradação ambiental causada; comunicação prévia pelo agente do perigo iminente de degradação ambiental; colaboração com os agentes encarregados da vigilância e do controle ambiental. Da mesma forma, o art. 15 estipula as circunstâncias que agravam a pena, aqui também abrangendo os crimes contra a fauna: I - reincidência nos crimes de natureza ambiental; II - ter o agente cometido a infração: para obter vantagem pecuniária; coagindo outrem para a execução material da infração; afetando ou expondo a perigo, de maneira grave, a saúde pública ou o meio ambiente; concorrendo para danos à propriedade alheia; atingindo áreas de unidades de conservação ou áreas sujeitas, por ato do Poder Público, a regime especial de uso; atingindo áreas urbanas ou quaisquer assentamentos humanos; em período de defeso à fauna; em domingos ou feriados; à noite; em épocas de seca ou inundações; no interior do espaço territorial especialmente protegido; com o emprego de métodos cruéis para abate ou captura de animais; mediante fraude ou abuso de confiança; mediante abuso do direito de licença, permissão ou autorização ambiental; no interesse de pessoa jurídica mantida, total ou parcialmente, por verbas públicas ou beneficiada por incentivos fiscais; atingindo espécies ameaçadas, listadas em relatórios oficiais das autoridades competentes; facilitada por funcionário público no exercício de suas funções (BRASIL, Lei 9.605, 1998).

Anteriormente ao advento da Lei nº 9605/98 a competência para o processo e julgamento das condutas praticadas contra a fauna era da Justiça Federal, com base no art. 109, VI da Constituição Federal.[10] Todavia, por nada dispor a Lei em comento a respeito do assunto, entende-se ser de “competência da Justiça Federal os ilícitos cometidos em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, restando o processo e julgamento das demais infrações penais a cargo da Justiça Estadual” (PRADO, 2005, p. 240).

À vista do exposto, o art. 29, mais especificamente em seu §1º, inciso III intentou coibir uma das práticas criminais mais devastadoras contra a biodiversidade animal, qual seja, o comércio ilícito ou tráfico de animais silvestres.

Não há, formalmente falando, um crime intitulado “tráfico de animais” dentre as normas ambientais penais presentes no capítulo V. Em verdade, o tráfico de animais configura um conjunto de ações, que praticadas por si só, constituem crime (POLÍCIA MILITAR AMBIENTAL, 2006).

Impende destacar que há um projeto de lei (PL 347/03) sujeito à apreciação do Plenário na Câmara dos Deputados, de autoria da Comissão Parlamentar de Inquérito Destinada a Investigar o Tráfico Ilegal de Animais e Plantas Silvestres da Fauna e da Flora Brasileiras – CPITRAFI (que será mencionada no decorrer do trabalho), cujo objetivo central é tornar o comércio ilegal de animais silvestres um crime qualificado. Se aprovado, o projeto de lei irá alterar o art. 29 da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98), modificando a pena de detenção para reclusão de dois a cinco anos, e multa. A pena imposta também poderá ser aumentada em 50% caso os animais traficados forem raros ou considerados em extinção, além de outras condições (BRASIL, 2017). No entanto, o tipo penal ainda incidirá apenas sobre as espécimes comercializadas em grande quantidade, permanecendo aqui a crítica no sentido de não ser configurado o crime quando houver lesão a somente uma espécime da fauna silvestre, mas apenas na hipótese de lesão a vários exemplares da mesma.

Conforme relatório da Polícia Militar Ambiental do Estado de São Paulo (2006, p. 3-4), a expressão “tráfico de animais” geralmente está vinculada ao transporte e manutenção em cativeiro, sendo ambas ilegais na ausência de autorização da autoridade competente. Soma-se a tal associação ao tráfico os maus-tratos contra os animais, “eis que os animais são transportados de forma velada, para não atrair a atenção dos agentes fiscalizadores. Em decorrência disso, o transporte é feito em locais inadequados e escondidos [...]”. A análise desse crime específico, seus aspectos e particularidades, caberão ao capítulo seguinte.

4.

O presente capítulo tem por objetivo central demonstrar como a exploração desordenada da fauna incide fatalmente contra a manutenção da biodiversidade do planeta, dando ênfase à importância desse recurso ambiental por ser também um dos principais responsáveis pelo equilíbrio ecológico do meio ambiente. Para tanto, inicialmente será abordada a atual situação do tráfico de animais silvestres no Brasil, uma das principais atividades que assola a riqueza faunística nacional, de modo a apontar suas características substanciais. Na sequência, tratar-se-á também a respeito dos riscos e consequências advindos do tráfico de animais silvestres não apenas para a biodiversidade, mas também para a economia nacional e saúde pública no país. Finalmente, serão abordados os principais obstáculos para a repressão do delito em questão, especialmente diante da ineficácia do art. 29 da Lei de Crimes Ambientais. Além disso, serão pontuadas possíveis soluções para o seu combate e consequente percepção das graves sequelas, em escala global, ocasionadas pelo comércio desenfreado de nossas espécies silvestres. Cumpre esclarecer que as informações contidas ao longo do capítulo foram, quase em sua totalidade, retiradas do I Relatório Nacional sobre Gestão e Uso Sustentável da Fauna Silvestre, disponibilizado em abril de 2016 e elaborado pela Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (RENCTAS) – sendo esta também responsável pela publicação do I Relatório Nacional Sobre o Tráfico de Animais Silvestres, elaborado em 2001 - por ser a ferramenta atual mais completa em gestão e conservação da fauna do Brasil e do exterior.

Segundo o Ministério do Meio Ambiente (MMA), o Brasil ocupa quase metade da América do Sul, sendo o país com a maior diversidade de espécies no mundo espalhadas nos seis biomas terrestres e nos três grandes ecossistemas marinhos. Esta abundante variedade de vida abriga mais de 20% do total de espécies do planeta, encontradas em terra e na água e, apesar de serem mais de 103.870 espécies animais e 43.020 espécies vegetais conhecidas no país, 11.612 é o alarmante número atual de espécies (animais e vegetais) ameaçadas de extinção.

Em 2014, o governo federal anunciou o resultado da maior avaliação da fauna já feita com base na análise de 12.256 espécies da fauna brasileira, o que é um avanço em sua amplitude, tendo em vista que a lista anterior feita no ano de 2003 avaliou apenas 816 espécies. Apesar de 170 delas terem saído da lista de espécies ameaçadas, o total nessa situação é de 1.173 divididas em três categorias de ameaça – Criticamente em Perigo (CR), Em Perigo (EN) e Vulnerável (VU) –. Esse levantamento apenas reafirma o quanto a ação humana tem gerado mudanças e impactos na vida e conservação das espécies silvestres (MMA, 2014).

Segundo a Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres – Renctas (2016, p. 430), organização não governamental, a utilização dos recursos silvestres é objeto do tráfico e movimentou o valor de US$ 124 bilhões no ano de 2016. Tal valor ultrapassa de forma surpreendente os dados de movimentação do comércio internacional conforme a CITES e o 1º Relatório Nacional sobre o Tráfico de Animais Silvestres, publicado em 2001 pela RECNTAS, que giravam em torno de US$ 10 a 20 milhões por ano. Além disso, o comércio ilícito de animais ocupa a posição de terceira maior atividade ilegal no campo mundial e perde apenas, em faturamento, para os tráficos de droga e armamentos (RENCTAS, 2016, p. 43). O caso da fauna silvestre brasileira também é alarmante, pois o Brasil participa com cerca de 5% a 15% do total mundial e essa prática delituosa opera surpreendentemente sem grandes problemas no país, normalmente em pontos tradicionais e conhecidos de venda ilegal de animais silvestres, tais como feiras livres em diversas cidades brasileiras (RENCTAS, 2016, p. 43).

Traficar animais silvestres consiste no ato de retirar animais do meio natural onde vivem, por meio de quaisquer condutas presentes no caput e §1º, III, do art. 29 da Lei de Crimes Ambientais, e comercializá-los clandestinamente com fins econômicos. O I Relatório Nacional sobre Gestão e Uso Sustentável da Fauna Silvestre (2016, p. 97) alerta para o fato de os danos irreparáveis à biodiversidade brasileira serem causados devido à retirada dos nossos ecossistemas, anualmente, de milhões de aves, peixes, insetos, répteis e mamíferos, os quais são comercializados ilegalmente no País e no exterior. Essa atividade tem como consequência direta a morte de diversos espécimes e é apontada como resultado da ausência de uma política efetiva de gestão da fauna por parte de seus mantenedores.

Fora do Brasil, o mercado de animais é surpreendentemente mais intenso, o que demonstra que quanto maior o volume de comércio das espécies utilizadas (sendo elas aves, mamíferos, répteis, anfíbios, peixes e corais), maior é a potência econômica desse setor. O relatório da Renctas (2016, p. 531-532) retrata o gigantismo desse segmento ao indicar que foram comercializados, a nível global, mais de 300 mil aves, mais de 1 milhão de répteis, mais de 13 mil mamíferos, mais de 40 mil anfíbios, mais de 250 mil de peixes, mais de 300 mil invertebrados e mais de 1,2 milhão de corais. Não são considerados aqui todos os números de espécimes, fazendo-se referência somente aos espécimes de espécies listadas nos Apêndices da CITES - – sendo excluídas as demais, que fazem parte da grande maioria do comércio internacional. Se, caso contrário, fossem considerados todos os espécimes, os números expressos triplicariam o volume de aves, mamíferos, répteis, anfíbios e peixes, excluindo somente os corais.

O comércio ilegal de animais silvestres pode ser praticado para atender aos colecionadores particulares e zoológicos, que se utilizam das espécies mais raras e ameaçadas de extinção; para atender à biopirataria, tendo em vista que os animais silvestres são muitas vezes utilizados por pesquisadores ilegais, por possuírem substâncias químicas que servem como base para a pesquisa e produção de medicamentos; para pet shop e fins domésticos; e para a obtenção de produtos oriundos de algumas espécies, como peles, penas, garras, couro e presas (ABDALLA, 2007, p. 178-181).

Para se ter uma ideia quanto às alterações de valores de tal comércio, temos o exemplo do status da espécie, haja vista que quanto mais rara e ameaçada a espécie está, mais cara ela fica. Existe uma diversidade de espécies brasileiras que figuram como alvo da biopirataria, estando entre os exemplos clássicos: a cobra Jararaca, cujo valor de um exemplar vivo pode chegar a US$ 1.000 no exterior, enquanto que o grama de seu veneno pode ser vendido por cerca de US$ 433; os sapos amazônicos, cujo valor por unidade pode variar de US$ 300 a US$ 1.500; as aranhas, com preços estimados entre US$ 150 e US$ 5.000; e os besouros, cujo valor por unidade varia de US$ 450 a US$ 8.000. Os valores alcançam maiores patamares, como o grama de substâncias extraídas da aranha-marrom, que chega a até US$ 24.570 e US$ 14.890 pela substância extraída do escorpião (RENCTAS, 2016, p. 87).

Fazendo uma análise dos dados da CITES, entre os anos de 2010-2014, as espécies de mamíferos mais exportadas pelo Brasil foram o sagui-de-tufos-brancos (Callithrix jacchus), o sagui-de-cara-branca (Callithrix geoffroyi) e o sagui-de-tufos-pretos (Callithrix penicillata); as espécies de aves mais exportadas foram o periquitão-maracanã (Aratinga leucophthalma), o lóris arco-íris (Trichoglossus haematodus), a arara-vermelha (Ara chloropterus), o papagaio anacã (Deroptyus accipitrinus), a ararajuba (Guaruba guarouba),o macuco (Tinamus solitarius), o tucano-toco (Ramphastos toco), a arara-canindé (Arara ararauna), o papagaio-da-serra (Amazona pretrei) e o papagaio-verdadeiro (Amazona aestiva); as espécies de répteis foram o teiú-gigante (Tupinambis merianae) e o jabuti-piranga (Chelonoidis carbonaria); a espécie de peixe mais exportada foi o cavalo-marinho (Hippocampus reidi); não há dados para anfíbios e invertebrados nesses anos.

Em nível de comercialização interna, a partir dos dados constantes no relatório da Renctas (2016, p. 482-488), conclui-se que as espécies nacionais mais utilizadas para o tráfico são as aves, seguidas dos répteis e mamíferos. Os papagaios são as aves mais comercializadas no país, seguidos dos periquitos, araras (que ficam em segundo plano por serem maiores, como a arara-macao) e tucanos, como o tucanuaçu e o tucano-de-bico-verde; entre os primatas merecem ser citados o mico-do-bambu, o macaco-aranha, o muriqui e os micos-leões; já entre os felinos devem ser citadas as jaguatiricas, os gatos-do-mato e maracajá; no caso dos répteis estão os jacarés, as tartarugas, os lagartos e as serpentes em sua totalidade. Podem ser citados outros animais que também figuram como alvo desse comércio ilícito, como as borboletas, peixes ornamentais, anfíbios e aranhas.

No tocante às estimativas numéricas do tráfico de animais silvestres, a maior apreensão de animais ocorreu na Região Nordeste, com 108.041 animais apreendidos, seguidos pela Região Norte, com 81.901 animais apreendidos; na Região Sudeste, com 33.725 animais apreendidos; na Região Centro-Oeste, com 28.312 animais apreendidos e na Região Sul com 11.993 animais apreendidos (ABDALLA, 2007, p. 190). Pode-se afirmar que no Brasil, segundo dados do I Relatório da Renctas (2016, p. 188) foram comercializados aproximadamente quatro milhões de animais silvestres, tendo o preço dos animais comercializados passado por diversas variações de acordo com a demanda e a necessidade do mercado consumidor.

Conclui-se que o fluxo do tráfico se dá normalmente no sentido da zona rural, onde ainda existem ambientes naturais, para os centros urbanos, e no sentido Nordeste-Sudeste para abastecer os mercados interno, onde há maior concentração da população e consumidores em geral, e externo (SOUZA, 2008, p. 16). No entanto, cumpre destacar que apesar do exorbitante número das comercializações, entre os anos de 1992 a 2000, foram apreendidos apenas 263.972 animais de acordo com dados do IBAMA constantes no relatório da Renctas (2016, p. 541), um número irrisório quando comparado aos milhões de animais retirados por ano ilegalmente do país.

Apesar de o crime em questão, nos casos de maior repercussão, ser articulado por uma equipe altamente profissional, os agentes envolvidos no processo de comercialização da fauna silvestre estão bem divididos, podendo ser classificados em quatro grupos: fornecedores - índios, lavradores e população rural – constituídos geralmente por populações humildes do interior, sem acesso à educação e à saúde e qualidade de vida muito baixa. Essas pessoas caçam para se alimentar, mas não só isso, pois acabaram descobrindo no comércio da fauna uma fonte de renda complementar; intermediários ou distribuidores - fazendeiros, motoristas de ônibus e caminhões, ambulantes, comerciantes[12], zoológicos e criadouros -, que exercem o comércio entre a zona rural e os centros urbanos. Por meio dos intermediários, os animais são passados a pequenos e médios traficantes, que, por sua vez, se encarregam de atuar com os grandes traficantes nacional e internacionalmente; consumidores, tais como zoológicos, circos, aquários laboratórios, colecionadores, turistas e população em geral (SOUZA, 2008, p. 20-21), grupo em que se destacam a considerável parte da população que alimenta o tráfico ilícito de animais, inconscientemente ou não, apenas pelo desejo de possuí-los como animais de estimação.

Cumpre destacar que uma nova modalidade de intermediação que surgiu e está evoluindo diariamente é o comércio ilegal de animais silvestres por meio da Internet. Tal modalidade revela-se mais fácil nas transações comerciais, além de mais rápida e segura, por ser a Internet uma ferramenta atual ilimitada que oferece certa possibilidade de anonimato aos usuários, o que dá margem para a prática de qualquer tipo de conduta, seja ela lícita ou não. De acordo com um dossiê elaborado pela Renctas em 1999, a atividade tornou-se muito mais fácil e segura por terem os traficantes substituído suas bancas de animais em feiras livres por mercadorias on-line com vendedores anônimos. Além disso, a Renctas estimou que o tráfico da fauna silvestre brasileira na Internet movimentava aproximadamente US$ 40 milhões, sendo contabilizados cerca de 5 mil anúncios, em sites nacionais ou internacionais, de compra, venda ou troca ilegal de animais silvestres brasileiros, como aves, répteis, anfíbios, peixes ornamentais e pequenos mamíferos (RENCTAS, 2016, p. 579).

Nas redes sociais é comum a presença de grupos específicos que atuam nessa atividade criminosa virtual, o que retrata fielmente a falência e imobilidade da ação fiscalizatória do Ibama. Os anúncios de compra e venda ilegal explicitam, sem delongas e sem preocupação com a aplicação da lei, a prática do crime em chats, bate-papos e listas de discussão (RENCTAS, 2016, p. 33).

O Brasil está na lista dos principais países fornecedores de animais silvestres, além do Peru, Argentina, Guiana, Venezuela, Paraguai, Bolívia, Colômbia, África do Sul, Zaire, Tanzânia, Kenya, Senegal, Camarões, Madagascar, Índia, Vietnã, Malásia, Indonésia, China e Rússia. Além disso, os principais consumidores da vida silvestre são os EUA (como o maior consumidor deles), Alemanha, Holanda, Bélgica, França, Inglaterra, Suíça, Grécia, Bulgária, Arábia Saudita e Japão. O nosso país detém animais contrabandeados, com documentação falsa e os exporta para países vizinhos, como Argentina, Bolívia, Guiana, Paraguai, Suriname e Uruguai, além de comercializar nas fronteiras dos estados da região amazônica, principalmente as divisas com as Guianas, Venezuela e Colômbia. No tocante ao comércio interno, o principal destino dado aos animais que são objeto de comercialização são os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, onde são vendidos em feiras livres e depois exportados dessas regiões para países da Europa, Ásia e América do Norte. A maioria desses animais é proveniente das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, sendo a via terrestre a principal via de escoamento deles, por meio das rodovias, em caminhões, ônibus ou carros particulares – os meios fluviais são mais utilizados na região norte. Infelizmente, algumas cidades brasileiras se destacam como redes do tráfico de animais, podendo citar: Milagres, Feira de Santana, Vitória da Conquista, Curaçá, Cipó, localizadas na Bahia; Belém (PA); Cuiabá (MT); Recife (PE); Almenara (MG); Santarém (PA); Manaus (AM); Rio Branco (AC); Porto Velho (RO); Bonfim (RR); Uruguaiana (RS); e Foz do Iguaçu, no Paraná (ABDALLA, 2007, p. 182-183). 

Ratificando o acima exposto, Padrone (2004, p. 11) cita a cidade de Belém, no Estado do Pará, e o Estado do Rio de Janeiro como um dos maiores entrepostos do comércio da fauna silvestre brasileira. A primeira, por estar próxima à floresta amazônica e sua cultura regional, onde são encontradas mais de 10 feiras populares abertas e de comércio ilícito livre – a Feira do Ver-o-Peso merece destaque, por onde são repassadas grandes encomendas; o segundo, onde ocorrem cerca de 100 feiras livres, merecendo destaque a Feira de Duque de Caxias, considerada a maior e mais famosa feira do país que continua sendo realizada, apesar de ter sido fechada décadas atrás.

Durante o transporte, a fauna silvestre é submetida a situações de estresse e práticas de crueldade, sendo muitas vezes torturada para driblar a fiscalização, motivo pelo qual cerca de 90% dos animais apreendidos morrem devido aos inúmeros maus-tratos. Os animais são transportados em condições precárias, com pouco espaço e na ausência de elementos básicos para sobrevivência, como água e alimentos. Por vezes são colocados em malas com fundo falso, caixas de papelão, pacotes de jornais, dentro dos compartimentos de carga de ônibus e caminhões, porta-malas de automóveis e até mesmo na própria roupa do traficante. Quando o destino não é a morte imediata acabam sendo drogados com a administração de calmantes, imobilizados, forçados a ingerir bebida alcóolica ou submetidos à prática de mutilações, tanto para se parecerem com outras espécies mais valiosas como para desviar atenção dos fiscalizadores e curiosos. É comum, por exemplo, os animais terem olhos furados e ficarem cegos ou terem asas amarradas, dentes arrancados e ossos quebrados (MAGALHÃES, 2002, p. 22-25).

Padrone (2004, p. 12-13) aponta que tal comércio ilícito se mostrou um novo ramo de negócios por ser uma atividade altamente lucrativa, haja vista que os animais passaram a ser utilizados como simples mercadorias desmerecedoras de qualquer tratamento respeitoso, sejam nas técnicas utilizadas na captura, no transporte ou no seu manejo de maneira geral. Prova disso é que nas apreensões feitas pelos órgãos de fiscalização nas feiras livres sempre são encontrados animais mortos, por não terem resistido aos maus-tratos durante o comércio ou por serem descartados pelos próprios vendedores (como forma dos mesmos se livrarem rapidamente diante da chegada da fiscalização). Estima-se que de cada 10 animais capturados para o comércio, apenas um consegue sobreviver diante das péssimas condições de tratamento e transporte.

Conforme explicitado pelo relatório Renctas (2016, p. 257-258) a Instrução Normativa nº 179/2008, que define as diretrizes e procedimentos para destinação dos animais da fauna silvestre nativa e exótica apreendidos, resgatados ou entregues espontaneamente às autoridades competentes, prevê em seu capítulo II, artigo 3º os destinos dos espécimes da fauna silvestre, sendo eles: retorno imediato à natureza; cativeiro; programas de soltura (reintrodução, revigoramento ou experimentação); instituições de pesquisa ou didáticas. O Centro de Triagem de Animais Silvestres (CETAS), o Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (CRAS), as Áreas de Soltura e Monitoramento de Fauna (ASMF), criadouros científicos, Termo de Guarda Voluntária Gratuito e zoológicos também são categorias diferentes de uso e manejo da fauna silvestre em cativeiro em território brasileiro, presentes na Instrução Normativa n° 169, de 2008, decretada pelo IBAMA.

 Nesse contexto, para que seja realizada a soltura adequada do animal e sua correta reintrodução no habitat de origem, uma série de critérios deve ser observada antes deste procedimento, apesar de pouco respeitada e fiscalizada pelos órgãos fiscalizadores. São eles: a) a espécie que alcançar a capacidade para ser reintroduzida em seu ambiente natural deve possuir autossuficiência populacional dentro do cativeiro (conhecer a espécie a que o animal pertence); b) o ecossistema original não pode estar degradado (conhecer o lugar de origem) e o animal tem de estar efetivamente apto para ser reintroduzido (animais com muito tempo no cativeiro não são apropriados para essa etapa); c) o monitoramento e os estudos pós-soltura também devem ser realizados (RENCTAS, 2016, p. 387). Tudo isso para que não haja nenhum risco para o animal e o ecossistema como um todo.

À vista do exposto, o Brasil está hoje em uma situação preocupante no que tange à conservação da fauna. A caça ilegal e o tráfico de animais vêm culminando na extinção em massa das espécies nos ecossistemas naturais e os CETAS, CRAS e ASMF passam diariamente por dificuldades financeiras e estruturais, estando sobrecarregados de animais aguardando locais para a reintrodução ou soltura. Diante da ineficiência dos órgãos competentes e dos recursos restritos destinados para combater o comércio ilegal, faz-se necessária a adoção de uma nova postura de atuação frente a esse crime ambiental.

4.1 Características do Comércio Ilícito Nacional e Internacional da Fauna Silvestre.

A ação humana sempre causou consequências profundas nos ecossistemas que nos rodeiam, muitas delas podendo ser irreversíveis. No entanto, para que possa usufruir adequadamente de todas as riquezas geradas por um ecossistema, é necessário que a sociedade tenha conhecimento sobre a estrutura e organização das cadeias biológicas, de forma a se manter o equilíbrio natural. O impacto mais direto na caça de animais para comercialização é a diminuição da espécie capturada e, na mais severa das hipóteses, a extinção local da espécie na hipótese de quando a caça seja intensa e rotineira (MAGALHÃES, 2002, p. 29).

No entanto, ao contrário do que se pensa, essa situação pode atingir níveis alarmantes de dano ambiental, haja vista que o que pode parecer uma simples redução de determinada espécie é, na realidade, o primeiro passo para prejudicar não só a espécie atacada, mas todo o desempenho ecológico das outras espécies que dela dependem, direta ou indiretamente. Vemo-nos, pois, diante de um ciclo interminável - que afeta inclusive a nós mesmos -, no qual uma espécie depende da outra e cada uma, isoladamente, desempenha seu papel no habitat natural.

Conforme explicita Magalhães (2002, p. 30-31), caso a exploração ultrapasse a capacidade de reprodução dos animais ao longo do tempo, os mesmos irão aos poucos desaparecer. Exemplo disso foi a caça descontrolada ao jacaré Caiman sp na Amazônia Central, que resultou no desaparecimento de invertebrados que se alimentavam da matéria fecal desse jacaré, assim como de outros peixes que, por sua vez, se alimentavam desses invertebrados e tiveram o mesmo fim destes. Igualmente, a população habitante daquela região não saiu imune ao prejuízo, pois se utilizavam desses peixes para recurso alimentar. Importante salientar também que muitos animais caçados ilegalmente, como os macacos-barrigudos (Lagothrix lagotricha) e as cutias (Dasyprocta sp), se alimentam de frutos, sendo portanto dispersores de sementes. Os mesmos contribuem para a germinação de plantas e para a estrutura das espécies da flora na floresta.

É nesse sentido que preconiza Sampaio (2011, p. 4), ao tratar sobre exploração do patrimônio faunístico nacional:

As consequências da superexploração da caça podem se refletir na extinção de muitas espécies e no desequilíbrio dos processos ecológicos das florestas [...]. Mesmo quando uma floresta está intacta, ela pode ser destituída de espécies de animais valorizados pela exploração humana, resultando no desequilíbrio das funções e interações ecológicas e na eficiência dos serviços florestais [...]. Em longo prazo, estes efeitos podem resultar em um fenômeno conhecido como “floresta vazia”.

Outro ponto importante a ser tratado é a captura de animais silvestres para colocá-los em cativeiro, processo que leva à morte de inúmeras outras espécies e exclusão daquele animal capturado do processo de reprodução em seu habitat natural – sem possibilidade de deixar descendentes. Na maioria das vezes a complexa relação entre os animais e o meio físico ao qual pertencem é pouco compreendida ou é desconhecida pelos agentes infratores, motivo pelo qual ainda mais agravados o funcionamento e o equilíbrio dinâmico dos ecossistemas[13]. Basta que haja uma simples diminuição na abundância de espécies para que as consequências ecológicas comecem a aparecer (ABDALLA, 2007, p. 201-202).

Uma consequência ecológica do comércio ilegal de animais que merece destaque se reflete na situação de uma espécie retirada de seu habitat e reinserida em outro. Trata-se de espécies exóticas, ou seja, todas aquelas que estão fora de sua área natural onde surgiram e evoluíram, que se tornam invasoras devido à sua condição de domínio no novo ambiente em que se encontram. Embora não seja correto afirmar que toda espécie exótica é invasora, nos casos em que isso ocorre, esta última quando adaptada à vida fora de seu habitat acaba se tornando agressiva e dominando as espécies nativas, competindo por alimento, expulsando-as e controlando o ambiente. Dados apontam que a convivência com espécies invasoras resultou no desaparecimento de mais de um terço das espécies extintas nos últimos 400 anos e, atualmente, aquelas ainda são consideradas “a segunda grande causa de perda da biodiversidade biológica no planeta, sendo superada apenas para a perda de habitat causada pela interferência humana” (RENCTAS, 2016, p. 69-72).

Por outro lado, a dispersão dos animais por diferentes áreas como consequência da caça de animais silvestres não gera problemas apenas de origem ecológica, mas também causa impactos na saúde humana, tendo em vista que as doenças infecciosas são frequentemente vetorizadas por espécies exóticas, tais como aves, roedores e insetos. A baixa imunidade dos animais devido à situação de estresse a que são submetidos, causando o estímulo da proliferação de doenças, somada à ausência de controle sanitário no comércio ilegal dos animais torna comum a transmissão de enfermidades, tais como febre amarela, tuberculose, hepatite, salmonela, dentre outras, e o alcance delas em várias regiões (RENCTAS, 2016, p. 97).

A título de exemplo, em seu relatório sobre gestão da fauna silvestre a RENCTAS (2016, p. 97-98) trouxe um levantamento feito pelo Ministério da Saúde sobre os locais do Brasil com maior número de casos de febre amarela e as informações obtidas foram cruzadas com os mapas dos locais de maior incidência de tráfico de animais, demonstrando-se que as rotas de tráfico e os locais onde ocorreram os surtos de febre amarela são exatamente os mesmos. Além disso, demonstrou que os seres humanos não são os únicos alvos de contaminação por um animal oriundo do tráfico, mas as criações domésticas também o são (carne bovina e frango), situação esta que poderia levar a um embargo da exportação da carne brasileira, afetando a economia do país com um prejuízo de bilhões de reais.

Importante enfatizar que dos pouco mais de 1.400 patógenos (entre vírus, príons, bactérias, riquétsias, protozoários, fungos e helmintos) causadores de doenças em seres humanos, cerca de 60% são zoonóticos, ou seja, acometem seres humanos e animais, sendo um dos motivos pelo qual se observa atualmente o surgimento de uma nova doença humana a cada ano - dentre essas doenças, 81% são zoonoses que possuem animais silvestres como reservatórios. As consequências econômicas são um reflexo do desconhecimento do manejo adequado e fatores biológicos da fauna, o que acarreta em perdas econômicas gigantescas, como podemos perceber a partir do levantamento do Banco Mundial sobre a perda de cerca de US$ 220 bilhões apenas na primeira década deste século, em virtude da emergência das doenças Influenza A ou H1N1, Encefalopatia Espongiforme Bovina (também conhecida como doença da vaca louca), Influenza Aviária e Síndrome Respiratória Aguda Grave – SARS (RENCTAS, 2016, p. 128, grifo nosso).

Os riscos econômicos não param por aí: o relatório da RENCTAS (2016, p. 72-73) é conclusivo ao afirmar que, não raro, as espécies exóticas acabam por ocupar espaços destinados a atividades produtivas, a exemplo das áreas agrícolas ou pastagens, o que gera custos maiores para a produção diante da necessidade de combate. Os custos de uma invasão por espécies exóticas são bastante significativos, podendo a soma total de perdas de lavouras, pastos, florestas e os demais prejuízos sofridos serem estimadas em quase US$ 1,4 trilhão por ano em todo o mundo (o equivalente a mais de 5% da economia mundial) e, no Brasil, em US$ 49 bilhões por ano.

É inegável a relação direta entre o tráfico de animais silvestres, a saúde pública e os reflexos econômicos no país, traduzindo a necessidade urgente de uma nova postura com relação a essa prática delituosa.

4.3 Principais Obstáculos no Combate ao Tráfico Nacional de Animais Silvestres e Possíveis Soluções Apontadas pelo Relatório da Renctas e pela Comissão Parlamentar de Inquérito Destinada a Investigar O Tráfico Ilegal de Animais e Plantas Silvestres da Fauna e da Flora Brasileiras.

Como já visto em linhas anteriores, o Brasil é a nação que possui a maior diversidade de espécies do mundo espalhadas por entre seus biomas. No entanto, essa abundância de recursos naturais e de riqueza ecológica, em especial a fauna silvestre, está severamente ameaçada por uma desorganização estatal, principalmente no que tange à ausência de solidez de políticas públicas eficientes e objetivas para a conservação e manejo da fauna. A maior adversidade que deve ser enfrentada pela nação brasileira se resume na premente obrigação de encontrar o ponto de equilíbrio entre as necessidades econômicas e sociais do país e a conservação da biodiversidade brasileira. Nesse contexto de discussão sobre a utilização sustentável da biodiversidade merece destaque a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CBD), documento apresentado e aprovado durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada na cidade do Rio de Janeiro, em 1992, com o objetivo de assegurar a conservação e uso da biodiversidade de forma sustentável, por meio de análise das ações globais (MMA, 2000).

Abre-se um parêntese para ressaltar que a Convenção sobre a Diversidade Biológica foi reconhecida como um avanço significativo na discussão e regulamentação desse tema, instituindo novos conceitos sobre o uso sustentável e conservação dos bens ambientais, especialmente no que toca à distribuição equitativa de benefícios decorrentes da utilização dos recursos genéticos, conceitos estes apontados como objetivos da CDB em seu artigo 1º. Apesar de suas recomendações terem sido incorporadas pelo Brasil e, da mesma forma, os valores inerentes à biodiversidade (tais como o ecológico, o genético, o social, o educacional, o cultural, o estético e o científico) critica-se a CDB pela falta de grandes resultados decorrentes das suas propostas à sustentabilidade desde a sua entrada em vigor no Brasil (LERNER, 2008, p. 11-12).

O relatório da Renctas fez um levantamento sobre os principais pontos que dificultam o combate ao comércio ilícito de animais silvestres e apresentou algumas soluções. A legislação ambiental brasileira vigente foi apontada como uma das dificuldades no combate ao tráfico, tendo em vista que a ausência de sua clareza e objetividade ocasiona diversas contradições e disparidades na interpretação de conceitos essenciais para a sua aplicação, como é o exemplo da própria definição de “fauna silvestre”, presente no caput e no §3º do art. 29, da Lei de Crimes Ambientais. Tais conflitos de contradição nos textos legais repercutem diretamente na divergência interpretativa entre portarias e instruções normativas emitidas pelos órgãos ambientais competentes, como também em decisões judiciais que possuem pouco ou nenhum embasamento legal. Tais incompatibilidades não só resultam em uma grande insegurança jurídica, como também interferem nas atividades dos órgãos ambientais[14] em prol da gestão da fauna, gerando desentendimento entre eles (RENCTAS, 2016, p. 16).

Como já mencionado anteriormente, não é pacífico o entendimento na doutrina sobre a possibilidade de adoção de normas penais em branco nos crimes ambientais.Assim, se por um lado o fato de a Lei 9.605/98 trazer em seu corpo diversas normas penais em branco (como no art. 29, §4º, I, VI; art. 33, parágrafo único, III; art. 34, parágrafo único, I e II, arts. 38 e 39, dentre outros) que podem ser traduzidas pela dispersão de variados textos normativos divergentes entre si, por outro existem considerações que elucidam o caráter multifário das condutas violadoras do meio ambiente, afastando a ideia de insegurança jurídica e aproximando a de interação provocada pelas normas penais em branco. Resta aqui a necessidade de uniformização das normas jurídicas, de modo que haja a obrigação de observar a existência ou não do tratamento de um assunto por parte de outro órgão, antes que se queira produzir algo. Assim, poderiam ser eliminadas decisões judiciais imprevisíveis, bem como a sobreposição de interesses dos órgãos competentes, em prol da efetiva conservação e manejo da fauna.

A falta de articulação e cooperação entre os órgãos responsáveis pela gestão ambiental também configura uma dificuldade para a proteção da fauna silvestre nacional. Somam-se a isso o desconhecimento da lei e a falta de informação por parte da população das leis ambientais vigentes, o que pode ser justificado pelas faltas de rigidez na aplicação das mesmas e de cumprimento até mesmo por parte dos órgãos competentes, tais como o IBAMA, a Polícia Federal e outros órgãos federais. Mais além, a ação humana em atividades como desmatamento, construção de hidrelétricas, rodovias e demais obras de infraestrutura para a expansão urbana são citados como fatores da redução considerável das espécies da fauna, isso porque tais ações geram a perda do habitat natural dos animais. A biopirataria e os frequentes casos de coletas, pesquisas e apropriação dos nossos recursos naturais por instituições estrangeiras também são merecedores de atenção (RENCTAS, 2016, p. 17).

Nesse contexto, a falta de clareza e a divisão interminável de competências entre os órgãos impedem uma fiscalização ambiental que produza efeitos favoráveis à conservação da fauna silvestre. Tal divisão reflete apenas no fato de que a desorganização por parte dos órgãos ambientais não reside unicamente na falta de recursos humanos e financeiros – como há muito se propaga por meio de ações midiáticas –, mas é resultado, principalmente, da ausência de direção e competência gerencial. Temos como exemplo o IBAMA, principal instituição pública voltada para o controle e fiscalização ambiental da fauna silvestre, que é alvo constante de denúncias de corrupção e relatos de abuso de autoridade devido ao fato de seus servidores e gestores públicos concentrarem suas atividades de fiscalização no pequeno infrator, muitas vezes alvo de perseguição, enquanto que os crimes ambientais das grandes empresas e quadrilhas organizadas acabam saindo impunes (RENCTAS, 2016, p. 33).

Como soluções para alguns desses problemas, o relatório da Renctas (2016, p. 16-17) explicita a necessidade de maior divulgação da lei e sua aplicação mais severa, além da ampliação da fiscalização ambiental, de forma que órgãos como o IBAMA, a Polícia Federal e outros possam planejar ações integradas e desenvolver um trabalho de investigação apropriado. Esse trabalho deve ser feito de forma mais rigorosa sobre as atividades que incidem sobre o nosso patrimônio faunístico, valendo tanto para inibir o comércio ilegal nacional e internacional da fauna silvestre nacional, como também para inibir as ações humanas que destroem ilimitadamente os ecossistemas naturais. A agricultura enquanto atividade dependente dos recursos naturais e dos serviços ambientais para a sua sobrevivência foi destacada como influenciadora do equilíbrio ambiental.

É inegável a presença de várias leis de proteção à fauna silvestre, faltando a elas apenas a integração entre si e punições capazes de inibir a reincidência. Uma sugestão apontada seria o afastamento da punição do criminoso como objetivo principal da legislação ambiental, devendo ser priorizada a execução de uma política pública nacional de fauna ou uma Política de Estado de caráter amplo, de forma que tenhamos normas bem divididas que tipifiquem especificamente o crime de tráfico de animais silvestres, sua finalidade e a diferenciação entre o pequeno e o grande traficante (RENCTAS, 2016, p. 19-20).

Outra dificuldade analisada pela Renctas (2016, p. 59) foi a destinação dos animais apreendidos no combate ao tráfico ou ameaçados pelos impactos dos grandes empreendimentos, já que a maioria dos animais afetados é minimamente analisada nos Relatórios de Impacto Ambiental. Normalmente, após a obtenção da licença de operação a maioria das empresas deixa de lado as pesquisas de monitoramento de populações antes e depois do impacto real da construção. A consequência disso é o elevado índice de mortalidade dos animais, inclusive daqueles que, a princípio, não seriam afetados pelo empreendimento. Geralmente são feitas operações de resgate de um pequeno percentual das populações de animais, entretanto esse método se revela irrelevante e prejudicial por não haver preocupação com a destinação dos mesmos. Em suma, a maioria dos animais apreendidos é solta em áreas que não são previamente avaliadas (quando não são enviados a zoológicos, criadouros ou mortos) quanto à qualidade do habitat ou quanto à sua capacidade de carga, o que fatalmente causa forte impacto sobre as faunas local e regional.

Enquanto isso, os Centros de Triagem de Animais Silvestres (CETAS)[15], responsáveis por receber os espécimes apreendidos pelos órgãos de fiscalização, acabaram se transformando em verdadeiros depósitos de animais. Isso porque a destinação dos mesmos acaba encontrando empecilho nos procedimentos burocráticos do IBAMA, de forma que não conseguem cumprir com seu objetivo primordial de reabilitação e reintrodução desses animais. Para esse problema foram dadas como sugestões: a obtenção de recursos para a ampliação dos Centros de Triagem; o investimento em áreas de soltura que cumpram com as devidas exigências técnicas e sanitárias, além da presença de uma infraestrutura mínima e equipe capacitada para acompanhar as condições clínicas e comportamentais dos animais ameaçados; estudo do ambiente em que a espécie será reinserida, inclusive analisando os efeitos após a sua total reinserção no ambiente natural; o desenvolvimento de pesquisas científicas sobre as espécies, colaborando com o seu manejo (RENCTAS, 2016, p. 105-107).

Surge ainda outro problema elencado pela Renctas (2016, p. 370-376) em seu relatório: a falta de políticas e incentivos financeiros para os projetos de fauna silvestre in situ (no habitat) e ex situ (em cativeiro)[16], criadas pela Convenção de Diversidade Biológica (CDB) a partir de sua entrada em vigor no ano de 1993. No entanto, nenhuma das diretrizes apontadas pela CDB foi seguida e aplicada no caso concreto, o que paralelamente à exploração ilimitada dos nossos recursos naturais, à degradação ambiental e disseminação das espécies, retrata a falta de organização e de incentivos necessários para as pesquisas com foco na conservação. Dentre os principais empecilhos para o manejo in situ das espécies está a carência de recursos financeiros, já que inexiste incentivo governamental para captar recursos junto à iniciativa privada (a exemplo de descontos em tributos, como ocorrem com relaçãoà cultura e ao esporte, ou algum outro benefício) e nem para investimentos em programas de conservação ambientais. Caso finalmente exista um plano de ação destinado para a conservação da fauna, o mesmo esbarra na burocracia por parte dos órgãos públicos.

Como solução para a dificuldade acima exposta defende-se a promoção do método in situ, por ser a forma desejável para a manutenção da vida selvagem de uma nação. Para promover a conservação o animal deve ser mantido livre em seu ambiente, onde são realizados estudos ecológicos e influenciadores da reprodução. Esse seria o ponto inicial para os trabalhos de proteção das espécies. Caso não houvesse a possibilidade de preservação em vida livre, a conservação da fauna fica diretamente relacionada aos trabalhos de cativeiro, de forma que as espécies que precisassem de reabilitação em termos de quantidade de sua população podem ser reproduzidas com as devidas técnicas e logo reintroduzidas adequadamente na natureza. Dessa forma, o trabalho em vida livre é um complemento para as ações de cativeiro, devendo ambos ser desenvolvidos em harmonia, e isso inclui os animais apreendidos vítimas do tráfico nacional. Seriam conhecidos, assim, os riscos ecológicos pelos quais passamos, podendo ser minimizados a partir do estudo das espécies ameaçadas de extinção e a consequente tentativa de manter estável tal situação (RENCTAS, 2016, p. 375).

Finalmente, para minimizar os obstáculos como um todo, foi proposta no relatório em questão a criação e implantação de uma política nacional de gestão e uso sustentável da fauna silvestre e exótica, através da criação e implementação de um Código Nacional de Fauna Silvestre e Exótica, nos moldes dos demais códigos federais, como o da Criança e Adolescente ou o do Consumidor, e em conjunto com estímulos para as iniciativas individuais ou empresarias no setor de conservação da fauna (tais como a diminuição dos encargos tributários e a disponibilização de linhas de crédito). Sugere-se, então, uma completa reformulação da nossa Política Nacional de Fauna, prática que teria como resultado o fortalecimento das políticas públicas. Para que tal objetivo seja concretizado é preciso que exista “um arcabouço jurídico sólido, harmônico e que direcione a execução de políticas públicas de forma a verdadeiramente compatibilizar a atividade humana com a perpetuidade do meio ambiente”. Apenas assim existe uma chance de tantas diretrizes de conservação e sustentabilidade saírem do papel e serem aplicadas enquanto ainda há o que proteger (RENCTAS, 2016, p. 602-608).

A Comissão Parlamentar de Inquérito Destinada a Investigar O Tráfico Ilegal de Animais e Plantas Silvestres da Fauna e da Flora Brasileiras (CPITRAFI) foi uma comissão temporária, criada em setembro de 2002 e instalada em novembro do mesmo ano, proposta pelo Deputado Rubens Bueno e outros, que tomou como tarefa a apuração de irregularidades no tráfico de plantas e animais silvestres da flora e fauna brasileiras dentro do país e para o exterior. A CPITRAFI (2003, p. 3-10) teve como relator o Deputado Sarney Filho e contou com depoimentos e colaboração de diversas pessoas, dentre elas, dirigentes de organizações não-governamentais, delegados, professores, procuradores, servidores e presidente do IBAMA, superintendentes da Polícia Federal, juízes, biólogos, advogados, criadores de animais, médico veterinário, pescador, engenheiro agrônomo e até mesmo suspeitos de envolvimento com o comércio ilícito, dentre outros. Tudo isso com objetivo de investigar e analisar problemas que vão além de infrações penais e administrativas, lançando um olhar às questões de políticas públicas e legislação.

Assim como no trabalho da RENCTAS acima exposto, o relatório final da CPITRAFI enfatizou a necessidade de enfrentamento de determinados aspectos complexos relacionados ao tráfico e pontuou algumas recomendações que servem de subsídio para futuros trabalhos e ações no sentido de inibir tal prática. Segundo aquele relatório, vários depoimentos prestados apontaram para a premência de atuação governamental na solução dos problemas que se referem à estrutura social do tráfico, posto que os primeiros coletores de animais, que representam o ponto de partida para as diferentes redes de comercialização de animais, são em sua maioria pessoas extremamente pobres, as quais habitam em áreas onde se verificam graves problemas sociais. À outra vista, o uso de crianças na comercialização ilícita em feiras com o intuito de evitar prisões, a venda de animais pela Internet e a carência de locais bem estruturados para a destinação dos animais apreendidos também foram outros problemas apontados no trabalho (CPITRAFI, 2003, p. 109).

Além disso, o relatório da CPITRAFI (2003, p. 109-110) constatou a necessidade de uma série de ajustes na legislação federal existente. Isso porque a Lei de Crimes Ambientais, no que toca à fauna como bem jurídico tutelado, estimula a reincidência nas atividades ilícitas ao prever sanções leves que levam um número considerável de magistrados a embasarem-se no chamado princípio da insignificância ao proferir suas decisões. Deve-se mencionar que também não foi dado o rigor adequado para os agentes que comercializam as espécies mais raras, de alto valor e ameaçadas de extinção, bem como para os grandes traficantes de animais. Da mesma forma, a Lei nº 5.197/67 – Lei de Proteção à Fauna foi apontada como carecedora de aperfeiçoamento pela presença de comandos normativos desorganizados e que não obtiveram efeitos práticos e, principalmente, pela omissão quanto à regulação das normas referentes aos criadouros (restritos à apreciação do IBAMA).

Foram expostas, então, recomendações gerais na tentativa de inibir ou ao menos minimizar os efeitos do comércio ilegal interno e externo como um todo, sendo a seguir elencadas: as atividades de controle e fiscalização ambiental devem ser intensificadas e implementadas em parcerias, estando apoiadas por recursos de alta tecnologia e serviços de inteligência; é fundamental a implantação de serviços especializados de combate a crimes ambientais nas Polícias, Justiça Federal e Ministério Público; a estrutura do IBAMA deve ser levada em conta, em termos de reformas administrativas que priorizem a estruturação das carreiras, instalação de centros de formação e aperfeiçoamento de recursos humanos; deve ser obrigatória a existência de fiscalização ambiental nos principais portos e aeroportos do País, através de agências ambientais ou parcerias com as autoridades que atuam nesses locais; devem ser ampliados os programas referentes à educação ambiental nos ensinos formal e informal; é fundamental o aumento de recursos públicos destinados às atividades de controle e fiscalização ambiental e pesquisas referentes à diversidade biológica (CPITRAFI, 2003, p. 130-133).

Ademais, também foram pontuadas pela CPITRAFI (2003, p. 133-136) algumas recomendações específicas ao tráfico de animais silvestres, dentre elas: sugere-se o aperfeiçoamento da legislação federal por meio da correção dos problemas de contradição e incoerência do texto legal, além da separação das condutas previstas no art. 29 da Lei nº 9.605/98 em diferentes tipos penais. Traz-se aqui a urgência de tipificação do comércio ilícito de animais silvestres como um crime específico e isolado, prevendo penas severas aos infratores que se dedicam a essa atividade de forma interestadual ou internacional; os diferentes órgãos públicos (IBAMA, Secretaria da Receita Federal, Ministério da Saúde, Polícia Federal, entre outros) devem atuar conjuntamente no sentido de fortalecer o controle sobre a saída de animais silvestres do Brasil; devem ser instalados maiores e melhores Centros de Triagem, tanto estruturalmente como financeiramente, nas principais cidades do país; os entes federativos devem organizar e implantar programas de geração de renda alternativa para comunidades carentes envolvidas ou que possam se envolver no comércio ilegal de animais silvestres; quanto à implementação de campanhas educativas, sugere-se que o Ministério da Saúde implemente programas de conscientização e veicule informações sobre a capacidade que tal prática ilícita tem de disseminar doenças e trazer graves riscos à saúde da população; é importante também que o Ministério dos Transportes, em parceria com outros órgãos ambientais, como o Ministério do Meio Ambiente, atue em ações de sinalização educativa das estradas usadas como rotas do tráfico; além disso, é interessante que o Ministério do Turismo atue em programas direcionados à conscientização dos turistas;

Certamente o caminho mais seguro para o enfrentamento das adversidades resultantes da prática do tráfico de animais silvestres é o investimento em políticas públicas, de modo claro, objetivo e sólido, na medida em que não perde sua eficiência em detrimento de políticas partidárias, mudanças de governo ou pela simples convicção pessoal de um agente político. A busca por um modelo mais eficiente de gestão da fauna silvestre em prol da sustentabilidade e conservação da biodiversidade encontra sua maior ameaça na disputa de interesses pessoais e políticos, bem como na omissão dos órgãos e entes que não honram com sua competência de gerir e manter a fauna silvestre brasileira.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA, Mikaelle Kaline Santos. A proteção jurídica do meio ambiente no Brasil e os desafios à repressão do tráfico de animais silvestres.: Uma análise à luz do art. 29 da Lei de Crimes Ambientais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5844, 2 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73338. Acesso em: 19 abr. 2024.

Mais informações

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientadora: Profa. Me. Thaís Emília de Sousa Viegas.

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