Capa da publicação O filho adotivo no homicídio funcional: legalidade X igualdade
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A situação jurídica do filho adotivo no homicídio funcional:

um estudo da divergência entre o princípio da legalidade e o princípio da igualdade

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Reflexões sobre o homicídio funcional. É legítima a interpretação de que o filho adotivo não integra o rol dos sujeitos passivos? O equívoco na norma gera conflito entre dois princípios: o princípio da legalidade e o princípio da igualdade. Entenda como isso vem se resolvendo.

Resumo: O Brasil é refém do medo e da violência. A atual realidade do país causa insegurança, inclusive, aos agentes de segurança. A atividade policial, por exemplo, oferece perigo incontestável. Responsáveis por proteger a população, os agentes se expõem a uma série de perigos no exercício de sua função. A insegurança não atinge somente os próprios agentes, visto que, em razão de seu emprego, sofrem ameaças também em relação a seus cônjuges e parentes. Esse crime específico é tipificado como homicídio qualificado, disposto no artigo 121, § 2º, inciso VII, do Código Penal, e recebe o nome de homicídio funcional. No entanto, ao trazer a expressão “seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau”, o inciso exclui o filho adotivo e cria uma grande divergência entre dois princípios no que tange aos direitos destes, o princípio da legalidade e o princípio da igualdade, sendo um assunto de grande importância quando trazido para a realidade vivida pela sociedade atualmente, o qual será discutido na presente pesquisa.

Palavras-chave: Direito Penal. Homicídio Funcional. Agentes de segurança. Filho adotivo. Princípio da legalidade. Princípio da igualdade.

Sumário: Introdução. 1. O crime de homicídio. 1.1. Homicídio Funcional. 1.2. Índices de homicídio funcional. 2. Os dois focos de conflito no homicídio funcional: princípio da legalidade e princípio da igualdade. 2.1. Princípio da Legalidade. 2.2. Princípio da Igualdade. 3. Entendimento Divergentes. Conclusão. Referências bibliográficas.


INTRODUÇÃO

Este artigo aborda o homicídio praticado contra filhos adotivos de autoridades ou agentes descritos nos artigos 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública.

É notória a importância dos princípios no ordenamento jurídico, visto que parte deles são utilizados na resolução de diversos conflitos presenciados no dia a dia dos operadores do Direito. Não é por outra razão, senão a importância dos princípios, que o presente tema apresenta divergência entre dois deles: o princípio da legalidade e o princípio da igualdade.

A discordância entre os princípios decorre da escolha, pelo legislador, dos sujeitos passivos do crime de homicídio funcional, desde que reconhecida a qualificadora prevista no artigo 121, § 2º, inciso VII, do Código Penal, que determinou que apenas os parentes consanguíneos seriam possíveis vítimas deste tipo de homicídio.

Como consequência dessa decisão, os filhos adotivos foram excluídos do polo passivo do crime, configurando ofensa ao princípio da igualdade entre os filhos, previsto no artigo 227, §6° da Constituição Federal. Em contrapartida, é aplicada ao Direito Penal a vedação de analogias em normas, visto que estas devem ser precisas e exatas de forma que exponham exatamente a vontade que culminou sua criação, em consonância com o princípio da legalidade.

Isso posto, é necessário que se discorra sobre o homicídio, mais especificamente a respeito de sua qualificadora funcional, bem como que se exponha os princípios da legalidade e da igualdade, para que, então, buscando os melhores entendimentos doutrinários, a resposta para o problema de pesquisa seja fundamentada de forma correta e suficiente para exaurir a questão.


1 O CRIME DE HOMICÍDIO

Os crimes contra a vida são divididos em dois grupos: os crimes de dano e os crimes de perigo. O homicídio é um crime de dano e está previsto no artigo 121 do Código Penal, a representar a eliminação da vida de um ser humano praticada por outro.

São três as suas modalidades: homicídio simples, que possui os elementos específicos do delito (artigo 121, caput); homicídio privilegiado, ao qual é acrescentada alguma circunstância que implica em diminuição da pena (artigo 121, §1°) e; homicídio qualificado, ao qual é agregada alguma circunstância que acarreta em aumento da pena (art. 121, §2°).

Ademais, existem dois tipos de homicídio: o homicídio culposo, que se caracteriza quando alguém mata outrem sem intenção, seja por negligência, imprudência ou imperícia e; homicídio doloso, cujo ato de matar é realizado de forma intencional.

O homicídio culposo é julgado pelo juízo comum. Em contrapartida, a Constituição Federal atribuiu, dentre outros crimes, ao homicídio doloso, a competência para julgamento ao Tribunal do Júri, conforme o disposto no artigo 5°, XXXVIII, d:

XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. (BRASIL, 1940, p. 10)

O homicídio funcional, objeto de estudo da pesquisa, não admite a modalidade culposa, tendo em vista que se trata de um crime qualificado e, naturalmente, praticado de forma intencional (doloso).

1.1 Homicídio Funcional

O homicídio funcional surgiu a partir da Lei n° 13.142, de 6 de julho de 2015, que alterou o artigo 121 do Código Penal, ao acrescentar em seu parágrafo 2º mais uma circunstância qualificadora do crime de homicídio, nas formas tentada ou consumada. A partir daí, surgiu o inciso VII, principal foco da presente pesquisa:

Art. 121. Matar alguém:

Homicídio qualificado

§ 2° Se o homicídio é cometido:

VII – contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição. (BRASIL, 1940, s/p) Grifo nosso.

De acordo com Capez (2017, p. 90), para que se caracterize o homicídio funcional, necessária a ocorrência de dois requisitos: 1) a vítima precisa ser autoridade ou agente descrito nos artigos 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública; 2) precisa estar no exercício da função ou ser morto em decorrência dela. Se vier a matar um policial sem conhecer essa circunstância, não responderá criminalmente pela qualificadora do inciso VII.

Dessa forma, resta configurado o crime quando praticado contra as autoridades ou os agentes descritos no artigo 142 da Constituição Federal: agentes das Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica; e contra os agentes descritos no artigo 144 da Constituição federal: agentes da polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícias civis, polícias militares e corpos de bombeiros militares, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública.

Quanto ao sujeito passivo do homicídio funcional, há divergência de entendimentos a respeito da abrangência da palavra “autoridade”. Francisco Dirceu Barros assevera que:

[...] podem ser agentes passivos do homicídio funcional, os Ministros do STF, membros dos Tribunais Superiores, Desembargadores dos Tribunais de Justiça, Magistrados federais e estaduais, membros do Ministério Público da União e Membros dos Ministérios Públicos dos Estados quando formem vítimas no exercício da função ou em decorrência dela, e seus respectivos cônjuges, companheiros ou parentes consanguíneos até terceiro grau, em razão da motivação funcional do crime. (BARROS, 2015, s/p)

Por outro lado, Rogério Greco afirma que:

[...] os arts. 142 e 144 da CF não fazem menção ou mesmo não nos permitem ampliar seu espectro de abrangência, a fim de entendermos que outras autoridades (juízes, promotores de justiça etc.), estejam por eles englobados. Isso porque estão inseridos em capítulos específicos da Constituição Federal, vale dizer, Capítulo II (das Forças Armadas) e Capítulo III (Da Segurança Pública), referentes ao Título V (Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas).

Dessa forma, só estão abrangidos pelo inc. VII do § 2.º do art. 121 do CP, aqueles que exerçam uma função policial lato sensu, e integrantes do sistema prisional, e não as demais autoridades, mesmo que ligadas de alguma forma à Justiça Penal. (GRECO, 2017, p. 05)

Ademais, importante salientar que são sujeitos passivos do crime, da mesma maneira, o cônjuge, companheiro ou parentes consanguíneos até terceiro grau – ascendentes (pais, avós e bisavós); descendentes (filhos, netos e bisnetos) e colaterais até o 3º grau (irmãos, tios e sobrinhos) – dessas autoridades ou agentes, em razão de seus cargos e funções.

A respeito do tema, aduz Damásio Evangelista Jesus:

É necessário que a vítima, no momento do crime, esteja no exercício da função ou o fato tenha sido cometido em decorrência dela ou em razão dessa condição. Exs.: 1º - matar policial da ativa por ter sido prejudicado por ele. 2º – matar policial reformado ou da reserva em decorrência do anterior exercício da função (CF, art.142, § 3o, I). Cremos que no caso de morte do cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo de agente público já reformado ou aposentado incide a qualificadora em face da circunstância “em razão dessa condição” (parte final do inciso VII). Acreditamos também que incide a qualificadora quando o crime é cometido, depois da morte do agente público, contra cônjuge ou parente dele em razão do anterior exercício da função. Essas circunstâncias devem ser abrangidas pelo conhecimento do autor (JESUS, 2015, s/p).

Quanto ao sujeito ativo deste homicídio, pode ser qualquer pessoa, homem ou mulher, independentemente de qualquer qualidade ou condição especial, tratando-se, por conseguinte, de crime comum.

Dito isso, cumpre ressaltar que o surgimento do homicídio funcional alterou também a Lei n° 8.072/1990, Lei dos Crimes Hediondos, sendo necessário acrescentá-lo, visto que todos os homicídios qualificados são considerados hediondos, que, por sua vez, são aqueles crimes mais graves, os de maior reprovação tanto pelo Estado quanto pela sociedade.

A Lei n° 13.142/2015 criou também o crime de lesão corporal funcional, previsto no artigo 129, §12 do Código Penal. Da mesma forma, o crime é considerado hediondo, nos termos da Lei n 8.072/1990. Embora seja um assunto relevante para a sociedade, a pesquisa se aterá apenas as situações jurídicas advindas do próprio homicídio funcional.

A lei que instituiu o crime de homicídio funcional entrou em vigor em 07 de julho de 2015. Segundo Jesus (2015, s/p) a lei “por ser mais gravosa, é irretroativa, de acordo com os arts. 5º, XL, da Constituição Federal (CF) e 2º, parágrafo único, do CP (novatio legis in pejus), não se aplicando a fatos cometidos antes de 7.7.2015”.

Significa dizer que uma nova lei, quando mais grave que a anterior, não pode retroagir para prejudicar o agente do crime, visto que, no Direito Penal, uma lei só retroage quando for benéfica ao réu (novatio legis in mellius).

A respeito da natureza jurídica do tipo, para Jesus (2015, s/p), o homicídio funcional se trata de uma circunstância de natureza subjetiva, ou seja, “no exercício da função”, “em decorrência dela” ou “em razão dessa condição” (CP, art. 121, § 2o, VII), não se relacionando com o meio ou modo de execução do fato, casos nos quais seria objetiva. As qualificadoras subjetivas são aquelas relacionadas com a motivação do crime, enquanto as objetivas são relacionadas à forma de executá-lo.

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Como mencionado anteriormente, o homicídio funcional é um crime hediondo. De acordo com a Lei n° 8.072/1990 (BRASIL, 1990, s/p), sua hediondez acarreta algumas consequências ao agente que pratica esse crime, quais sejam: (i) as penas serão cumpridas inicialmente em regime fechado; (ii) a progressão de regime dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente; (iii) os apenados são insuscetíveis de anistia, graça, indulto e fiança; (iv) possibilidade de decretação da prisão preventiva e; (v) possibilidade de decretação da prisão temporária.

Destarte, ao observar essas premissas, resta compreendida a gravidade das consequências para quem pratica o crime de homicídio funcional. No entanto, surge um conflito diante dessa situação: o artigo 121, § 2°, inciso VII ao trazer a expressão “seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau”, exclui os parentes não consanguíneos e fomenta a discriminação entre filho biológico e filho adotivo. Isso ocorre uma vez que, se o crime for praticado contra o primeiro, é configurado homicídio qualificado e hediondo, e, se praticado contra o último, resta caracterizado homicídio simples. (grifo nosso)

Nessa perspectiva, emerge uma grande divergência entre dois princípios no que tange aos direitos do filho por adoção, a serem estudados a seguir.

1.2 Índices de homicídio funcional

De acordo com a Agência Brasil (2018, s/p), de janeiro a julho de 2018, 74 agentes de segurança já tinham morrido no estado do Rio de Janeiro. Foram assassinados 60 policiais militares, cinco policiais civis, três agentes penitenciários, três militares do Exército, um guarda municipal, um policial federal e o sargento da Marinha.

Segundo matéria publicada na Tribuna do Ceará (2018, s/p), com base nos dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre 2016 e 2017, 51 agentes de segurança foram assassinados em no estado do Ceará.

As principais vítimas são os policiais militares, que correspondem a 94% dos homicídios. Em nível nacional, Ceará ocupou o terceiro lugar, em 2016, e o quarto, em 2017, ficando atrás de cidades da região Sudeste e Norte do País.

Segundo a pesquisa do Fórum, quase 80% dos agentes foram assassinados nos momentos de lazer, correspondendo a um número de 40 mortes. Os PMs foram as principais vítimas com 37 assassinatos, enquanto policiais civis somam em três casos.

Já os números de assassinatos de policiais durante o serviço são bem menores comparado aos casos de mortes nos momentos de folga. De acordo com os dados, 11 homicídios foram registrados. Todas as vítimas eram militares. O ano com o maior número de registro de casos foi 2016, com nove, enquanto, em 2017, foram contabilizados dois homicídios.

Ademais, de acordo com matéria publicada no G1 Rio de Janeiro (2017, s/p), a partir das estatísticas da Polícia Militar do Rio de Janeiro, em média, um policial morreu a cada 64 horas no Rio desde 1995, somando 3.087 vítimas durante este período. A taxa de mortalidade entre 1995 e 2016, segundo a PM, é maior do que a de soldados americanos na Segunda Guerra Mundial.

Nos últimos 22 anos, 3,52% dos 90 mil integrantes do efetivo da PM do Rio morreram. Durante os três anos e meio da participação americana na guerra, 405 mil soldados americanos morreram, o equivalente a 2,52% da tropa, composta por mais de 16 milhões de soldados.

É nas folgas que os policiais são mais vítimas de mortes violentas. Das 3.087 mortes ocorridas desde 1995, 2.465 ocorreram durante a folga dos agentes, ou seja, 80% dos casos. No período, o número de policiais mortos em serviço foi de 598.

Se o problema já é antigo, o aumento entre 2015 e 2016 chama a atenção. Em 2015 foram 91 mortes, entre mortos em serviço e de folga. Já em 2016, o número chegou a 146, ou 60% mais que no ano anterior.

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Sobre os autores
Igor de Andrade Barbosa

Mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento pelo Programa de Mestrado em Direito da Universidade Candido Mendes - UCAM. Especialista em Direito nas Relações de Consumo - UCAM. Especialista em Direito da Concorrência e Propriedade Industrial- UCAM. Diretor e Membro do Conselho Editorial da Revista Tribuna da Advocacia da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil do Tocantins. Professor e orientador da graduação (bacharelado) do curso de Direito da Universidade Candido Mendes - Ipanema (licenciado). Professor da graduação e da pós-graduação do curso de Direito da Faculdade Católica do Tocantins UBEC.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBOSA, Igor Andrade ; PEIXOTO, Ana Raquel Mattos Sabóia. A situação jurídica do filho adotivo no homicídio funcional:: um estudo da divergência entre o princípio da legalidade e o princípio da igualdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6176, 29 mai. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73573. Acesso em: 25 abr. 2024.

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