Foi noticiada a sanção da mais recente e nova Lei nº 13.827/2019, que em síntese além de reforçar que cabe ao Poder Judiciário, permite também que as Medidas Protetivas no âmbito da Lei Maria da Penha sejam aplicadas por Delegado de Polícia ou por policiais, com chancela “a posteriori” do Poder Judiciário.
O que afinal essa nova Lei nº 13.827/2019 traz de velharia e novidade para refletir no aspecto positivo e negativo?
A resposta é simples: vai depender da ótica de quem e como se visualiza a problemática, acerca dos velhos problemas conhecidos que assolam nossas mulheres e com os problemas triviais de pano de fundo – que são imensos.
Sob a ótica da proteção firmada pelo Brasil perante a comunidade internacional, sem sombras de dúvidas, é um grande avanço e permitirá maior segurança a mulher, se realmente as medidas protetivas forem eficazes para evitar novas agressões com evoluções.
Quando o texto faz alusão que qualquer “policial”, em caso de não se ter Delegado, apesar de louvável, o legislador como pano de fundo reconhece que o Estado brasileiro não investiu nas Polícias Judiciárias, e o mais grave de todas as constatações: o Estado não investiu no seu cidadão com políticas públicas.
De qualquer forma, essas são algumas das poucas constatações sumárias que se extrai num primeiro momento.
Os pontos positivos da nova Lei nº 13.827/2019:
- É um avanço na proteção da mulher, alvo de violência doméstica e familiar. Diga-se passagem que esses agressores eram agraciados por liberdade provisória e, na maioria das vezes, o resultado disso eram mais agressões ou até a morte da mulher. Se a medida for eficaz, a tendência é que haja reduções de óbitos e violência, em face da mulher;
- Prestigia e traz mais segurança à vítima de violência de gênero e doméstica;
- Amplia o rol de agentes públicos que poderão conferir essa medida;
- Traz possível economicidade temporária ao erário público;
- Trouxe a nomenclatura de Delegado de Polícia (art. 12-C, inciso II, da nova Lei nº 13.827/2019), para evitar que outras forças ou cargos policiais diversos se arvorem da expressão “Autoridade Policial”;
- Traz claramente a possibilidade de o Delegado de Polícia conferir a medida protetiva na Lei Maria da Penha, ainda que dependa de homologação judicial, o mesmo se dando com relação ao “policial” numa acepção muito ampla e genérica (cujas críticas estarão mais adiante);
- Outra mudança promovida e vista como positiva pela Lei 13.827/19 foi a inserção do art. 38-A na Lei Maria da Penha, segundo o qual: “Art. 38-A. O juiz competente providenciará o registro da medida protetiva de urgência. Parágrafo único. As medidas protetivas de urgência serão registradas em banco de dados mantido e regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça, garantido o acesso do Ministério Público, da Defensoria Pública e dos órgãos de segurança pública e de assistência social, com vistas à fiscalização e à efetividade das medidas protetivas.” Se o Banco de dados for mantido de maneira adequada, e permitir efetivamente que as Polícias Judiciárias entre outras forças policiais vinculadas a Segurança Pública tenham acesso, será bem-vindo para evitar o problema de que atualmente as medidas protetivas hoje, na grande maioria, estão sob sigilo nos sites do Poder Judiciário, e não se informa às Delegacias de Polícia sobre as mesmas, o que acaba sendo um desserviço à sociedade e a própria vítima.
Os pontos negativos da nova Lei nº 13.827/2019:
- Para nós é inconstitucional a Lei no ponto que permite outros “policiais” que não Delegados de Polícia aplicar a medida, pois há uma clara invasão do legislador ordinário nas atribuições constitucionais e legais previstas que deixa o Delegado de Polícia responsável pela direção da persecução penal para apurar a autoria e materialidade delitiva. O Delegado de Polícia quem é o presidente dos procedimentos e não faz sentido em violação a toda sistemática permitir que cargos diversos daquele, apliquem as medidas protetivas. Além disso, a redação legislativa com todo respeito, abre margens para usurpação da atividade técnico-jurídica encarregada ao Delegado de Polícia de carreira e coloca em xeque o princípio ínsito a qualquer atividade policial que é o princípio da hierarquia, a partir do momento que amplia essa esfera de possibilidade com “chancela legal”. Em outras palavras, o próprio legislador abre margens para uma verdadeira balbúrdia legislativa e principiológica, colocando em perigo toda aquela construção sólida criada academicamente e cientificamente ao longo dos anos da unidade do nosso ordenamento.
- A nova Lei pode representar um desserviço, inclusive dificultando a aplicação do art. 24-A[1], da Lei Maria da Penha, uma vez que gerará problemas em sua aplicabilidade, diante do seu texto que na esfera penal é interpretado preferencialmente de maneira estrita e taxativa.
- Permite que “policiais” sem experiência jurídica e sem formação jurídica na maioria das vezes, procedam avaliação inadequada e coloque a vítima em situação ainda de maior vulnerabilidade, diante da necessidade de exame técnico-jurídico, onde esse múnus na esfera policial é atribuída constitucionalmente e legalmente a carreira jurídica do Delegado de Polícia;
- Deixa o Estado numa situação cômoda de mais uma vez querer resolver problemas com legislações e mais legislações, ao invés de atacar o problema na causa e não apenas nas conseqüências que também deve ser atacado;
- Pode ser outro passo subliminar para querer depois permitir que outras forças permitam a realizar Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), sob argumento se pode conceder medida protetiva que é o mais, poderia o menos que é confeccionar o Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) ao arrepio da Constituição Federal e da Lei e o pior ainda de tudo: com a chancela do Poder Legislativo e do Poder Executivo quem deveriam dar o exemplo de respeitar a Carta Maior e as leis.
- As diversas forças policiais poderão desrespeitar a hierarquia e querer conceder medidas protetivas sem que seja por Delegado de Polícia, mesmo sendo o caso de haver Delegado na comarca ou na localidade – semelhante ao que já tentam fazer ao arrepio da Constituição Federal e da Lei com o Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), chancelado inclusive por alguns Tribunais de Justiça e o próprio Ministério Público que deveriam proteger a Constituição e as próprias leis;
- A expressão “policial” é muito ampla e acreditamos que surgirá divergências para interpretação restritiva no sentido de ser aquela expressão “policial” seria o que trabalha com atos eminentemente cartorários (como escrivão, investigadores e inspetores), em detrimento de uma outra interpretação que defenderá que a expressão “policial” seria geral e ampliativa para abarcar todos os policiais (inclusive policiais militares entre outros);
- Outra mudança promovida e que vista pode ser visualizada como negativa pela Lei 13.827/19 foi à inserção do art. 38-A na Lei Maria da Penha, segundo o qual: “Art. 38-A. O juiz competente providenciará o registro da medida protetiva de urgência. Parágrafo único. As medidas protetivas de urgência serão registradas em banco de dados mantido e regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça, garantido o acesso do Ministério Público, da Defensoria Pública e dos órgãos de segurança pública e de assistência social, com vistas à fiscalização e à efetividade das medidas protetivas.”
A terminologia “juiz competente” do artigo supra apesar de recomendável, esbarra numa colidência legal, pois antes dessa redação e apenas com a existência do então art. 24-A, da Lei Maria da Penha se fazia alusão “§ 1º A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas. (Incluído pela Lei nº 13.641, de 2018)”, o que acaba gerando mais insegurança jurídica e um desserviço à sociedade e a própria vítima, pois para todos os efeitos legais, o art. 24-A, § 1º, da Lei Maria da Penha, continua em vigor e criará mais um conflito aparente de lei a ser resolvido. Pela cronologia será fácil superar isso, aplicando a lei mais recente, agora se for de especialidade e até mesmo de conferir maior proteção a mulher (conforme mandamento da própria Lei Maria da Penha) teremos problemas de interpretações e de linhas de entendimentos diversas.
O legislador precisa observar os pontos de contatos com as leis e entre as leis com as nuances das medidas para evitar contradições legais que denominamos terminologicamente de “contraponto legislativo”, “colidência legislativa” ou “suicídio legislativo”;
- Cria também uma insegurança jurídica, para aqueles que sustentam que essas matérias de “restrições de direito” no âmbito da Lei Maria da Penha seriam de reserva de jurisdição (mormente de ir e vir assegurados constitucionalmente) e poderiam ser inconstitucionais as medidas outorgadas pela nova Lei nº 13.827/2019, quando se conferiu ao agente policial e até mesmo ao Delegado de Polícia, agentes esses não detentores da reserva jurisdicional; Esse argumento para nós não prospera, pois em muitas vezes os Delegados já restringem direitos maiores dentro do direito de ir e vir (liberdade), quando ratificam (ou decretam) a prisão flagrancial de conduzidos com suas deliberações iniciais, até que haja análise do Poder Judiciário;
- Desprestigia atribuições constitucionais e legais de outros cargos;
- Abre brechas e é um “golpe sorrateiro” para o ciclo completo policial, ainda que de maneira sutil e subliminar. Esse argumento ganha mais força, quando analisamos o antigo Projeto de Lei nº 13.505/2017, que através do veto presidencial impediu a autorização de medidas protetivas de urgência a mulher vítima de violência doméstica pelo Delegado de Polícia, e na sequência, sobreveio este Projeto de Lei, hoje corporificado na Lei nº 13.827/2019;
- Fecha os olhos para a problemática de o Estado ignorar as frentes da educação, saúde, distribuição de renda, cultura, infraestrutura entre outras que devem andar de mãos dadas com a segurança pública e demonstra querer resolver as coisas na “caneta” por Lei, com atropelo a boa técnica redacional legislativa e da preservação da unidade do ordenamento jurídico em si;
- A interpretação a ser dada “aos seus dependentes” do caput do art. 12-C, inserido pela nova lei nº. 13.827/2019 também traz mais problemas. Quais são esses problemas? Vejamos: “Art. 12-C. Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida:”. Indaga-se: aplica-se a Lei Maria da Penha se o dependente for criança ou adolescente do sexo masculino? Observe ainda a conjunção alternativa “ou”, portanto, verificada a existência de risco à vida da mulher ou de qualquer dos seus dependentes (filhos ou filhas) o agressor poderá ser afastado do lar? Este é outro ponto da nova lei que suscitará debates acalorados.
- A sanha punitiva do legislador mais uma vez entrou na vedação da liberdade provisória prevista no §2º do art. 12-C, nestes termos: “§ 2º Nos casos de risco à integridade física da ofendida ou à efetividade da medida protetiva de urgência, não será concedida liberdade provisória ao preso.” É de ressaltar que o STF ao longo dos últimos anos declarou ser inconstitucional a vedação automática da liberdade provisória (vide HC 104339 e RE 1098325)[i] e, este parágrafo, mais uma vez, suscitará discussões acerca da sua (in)constitucionalidade.
- Cria a problemática de como será instrumentalizada (veiculada) a medida protetiva conferida em sede policial pelo Delegado de Polícia e policial: se por meio de mandado? Por meio de notificação? Despacho de deliberação (de conteúdo decisório) da concessão da medida protetiva policial? A Lei deve trazer um conteúdo seguro para o seu operador;
- A Lei possibilita apenas o afastamento do agressor do lar, quando muitas das vezes são necessárias as demais medidas previstas na Lei Maria da Penha; Cria-se uma proteção deficiente à vítima, onde a Lei não poderia ter sido tão tímida como fora;
Ademais, como ficará o art. 24-A, da Lei Maria da Penha? Indagamos isso porque a lei faz alusão ao descumprimento de “decisão judicial”, que pressupõe se dar no mundo fenomênico, após a notificação (ou intimação) do suposto agressor e descumpridor da medida.
Vejamos a sua redação disposta no art. 24-A, da Lei Maria da Penha:
Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.
§ 1º A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas.
§ 2º Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança.
§ 3º O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis.
E a notificação (ou intimação) do art. 24-A, da Lei Maria da Penha será feita por quem?
Essa notificação (ou intimação) continuará do mesmo jeito, ou seja, será realizada por oficial de justiça (senhor meirinho) vinculado ao Poder Judiciário ou com a superveniência da nova Lei nº 13.827/2019 alterará o quadro em que a notificação seria feita por policiais e Delegados de Polícia?
Fato é que as novas medidas protetivas outorgadas ao Delegado de Polícia e ao policial, despertarão discussões desta índole. Pensamos sem prejuízo de compreensão diversa, que essas notificações eventualmente realizadas pelos Delegados de Polícia ou por policiais antes da chancela do Poder Judiciário, via homologação, e da notificação (ou intimação) judicial não terão o condão de atrair o crime do art. 24-A, da Lei Maria da Penha.
Mas qual o crime cometerá quem descumprir a ordem do Delegado de Polícia ou de policial antes da homologação judicial, ou seja, antes das 24 horas do prazo que a medida deverá ser comunicada ao Poder Judiciário?
Certamente, terão vozes advogando crime de desobediência – que para nós estaria sepultada pelos próprios argumentos que o STJ na época serviu para refutar quando se descumpria as mesmas medidas protetivas da Lei Maria da Penha – , sem contar o possível crime de coação no curso do processo por abranger medidas inclusive flagranciais ou de procedimentos policiais em cursos. Talvez nesse ponto, a nova Lei nº 13.827/2019 criaria até uma situação mais gravosa também em relação ao investigado (suspeito) até então ao art. 24-A, da Lei Maria da Penha.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Enfim, a nova Lei nº 13.827/2019 traz muitas velharias e muitos assuntos ignorados propositalmente pelo Estado e de novidade traz a necessidade de refletirmos sob os aspectos positivos e negativos para nosso futuro como país e sociedade organizada, onde nem o legislador ordinário observa a tecnicidade e o enfrentamento adequado de problemas de índole criminal e social, mormente quanto à condição da mulher, vítima de violência.
O crime deve ser combatido não apenas nas suas conseqüências, mas acima de tudo nas suas causas, e com investimentos às Polícias e respeito a ordem constitucional, legal e técnica, para evitarmos com todo o respeito,5 novas “atrapalhadas jurídicas”.
Notas
[1] Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei: (Incluído pela Lei nº 13.641, de 2018) Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos. (Incluído pela Lei nº 13.641, de 2018) § 1º A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas. (Incluído pela Lei nº 13.641, de 2018) § 2º Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança. (Incluído pela Lei nº 13.641, de 2018)§ 3º O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis. (Incluído pela Lei nº 13.641, de 2018).
[i] STF reafirma inconstitucionalidade da regra que proíbe liberdade provisória a presos por tráfico de drogas: O Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmou sua jurisprudência no sentido da inconstitucionalidade de regra prevista na Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) que veda a concessão de liberdade provisória a presos acusados de tráfico. A decisão foi tomada pelo Plenário Virtual no Recurso Extraordinário (RE) 1038925, com repercussão geral reconhecida. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=354431.