CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo do presente estudo foi trazer à baila a contradição existente no Processo Penal Brasileiro, a saber, a busca de uma verdade denominada real, que é antagônica ao sistema processual acusatório, adotado pela Constituição Federal de 1988. Realizando uma análise do aludido princípio para além da superficialidade que os manuais de direito processual penal apresentam, resta evidente que o mesmo é utilizado pelos magistrados como recurso técnico-processual para práticas inquisitivas.
Numa visão moderna, o processo penal não pode ser mais visto como simples concretização do direito penal, pois o devido processo legal, perante um Estado Democrático de direito, deve ser acionado como instrumento de garantia do acusado, numa real limitação do Poder Punitivo empregado pelo estado. O respeito às regras constitucionais deveria ser uma obrigação a todas as partes do processo, ou seja, as armas processuais apresentadas a uma parte devem ser igualmente concedidas à outra parte, com o objetivo de equilibrar a triangulação processual, e concretizando um processo penal equilibrado.
Quando se fala dos sistemas processuais penais, nota-se que estes são intimamente interligados com o modelo político de Estado, pois quanto mais o Estado se aproxima de um modelo voltado ao autoritarismo, distanciando o cidadão de suas garantias, e por outro lado, conquistando um sistema inquisitório.
A Constituição da República do Brasil adotou o Sistema Acusatório quando descreve em seu texto que o poder de acusar processualmente um indivíduo é tarefa privativa do membro do Ministério Público (artigo 129, I da CF/88). Além do que, afastou do juiz essa prerrogativa de atuar no processo na fase pré-processual. Outra evidência de que à Carta Magna adotou esta forma acusatória de processo, encontra-se no fato de que estão seguras as garantias da ampla defesa, do contraditório e da presunção de inocência do acusado.
Em verdade, os argumentos ora demonstrados tem por escopo evidenciar que o juiz, quando age na fase de investigação, conforme lhe outorga o inciso I do artigo 156 do CPP, afasta-se da sua posição imparcial, deixando de ser juiz para atuar como parte que tem o poder de dizer a verdade. Ao atuar dessa forma, ele fere também o princípio da inocência (art. 5º, LVII, CF/88), visto que a transferência do ônus da prova para a acusação (art.129, I, CF/88) proíbe o juiz, que não é parte parcial na relação processual, de buscar a prova na fase preliminar ao processo.
Portanto, dar ao Juiz o poder de gestão da prova, tal como menciona e permite o artigo 156 do CPP e, principalmente em seu inciso I, entendo como inconstitucional, pois viola o princípio da presunção de inocência e o devido processo legal, cujos princípios são retirados da própria constituição e do sistema acusatório.
Espera-se que o Supremo Tribunal Federal, através do controle difuso, anule os atos inquisitoriais praticados, eventualmente, por juízes de primeiro grau, ou ainda que declare a inconstitucionalidade parcial do artigo 156 do CPP. O sistema acusatório, como ressaltam alguns estudiosos do tema, aduz que há funções distintas para as partes, ou seja, o magistrado deve manter uma postura supra para com as partes, enquanto o órgão ministerial é responsável pela titularidade da ação penal, bem como o ônus probatório dos fatos articulados na inicial acusatória. Em contrapartida, é da defesa o ônus de resguardar-se das cargas processuais que lhe foram imputadas pelo Parquet.
Desse modo deve ser realizada a instrução processual. O princípio do juiz natural, que permite saber, desde logo, qual o juiz competente para o processo, e que garante a imparcialidade do juiz, impedindo que pressões externas influenciem o seu julgamento, ainda que não se confunda com o princípio da identidade física do juiz, não pode deixar de ser considerado como um reforço para a necessidade de que o julgamento seja proferido por quem colheu a prova. Assim ocorrendo haverá, sem sombra de dúvidas, um reforço ao princípio do juiz natural. É cediço que os pré-conceitos pessoais do juiz não devem interferir na sua apreciação do feito.
A imparcialidade e o alheamento judicial são condições fundamentais para que o processo penal, alcance, no máximo possível o seu desígnio básico, a saber, atribuir a responsabilidade penal, se houver ou absolver, seja pela ausência probatória, seja pela dúvida da prática delituosa, ou qualquer outra prevista no Código de processo Penal De fato, mostra-se insuficiente a existência de um órgão ministerial independente, autônomo e com as mesmas garantias da magistratura, em um cenário marcado pela ampla iniciativa instrutória do juiz. Tal liberdade probatória provoca, em muitas situações, a atuação judicial substitutiva da função do Ministério Público, o que constitui grave ofensa à ampla defesa e ao equilíbrio processual.
A atribuição de poderes instrutórios ao juiz também afronta a garantia de imparcialidade da jurisdição, sobre a qual se firmam o processo penal e o sistema acusatório. A produção de provas por impulso oficial permite a antecipação do convencimento do órgão julgador, visto que o juiz poderá estar previamente inclinado a decidir em determinada direção. Desse modo, o magistrado não deve se agarrar à verdade real com o objetivo de participar do processo em uma função que não é sua. Esse princípio deve ser posto fora do direito processual penal, haja vista ser um resquício que muito abala a democracia e as garantias fundamentais do acusado com o advento da nova ordem constitucional.
O que cabe ao juiz é um papel compromissado com uma aproximação da verdade processual, originada das provas carreadas nos autos pelas partes. Com isso, impede-se que ocorra um julgamento prévio e, em seguida, uma busca para a sua confirmação. Em outras palavras, isso impediria a prática da teoria de Franco Cordeiro (2000 apud COUTINHO 2015), “o primado da hipótese sobre os fatos”. A busca por um convencimento motivado do magistrado, com base na apreciação das provas constantes nos autos, é respeito ao sistema processual acusatório. Portanto, a busca pela verdade real, como demonstrado ao longo do presente estudo, é um mito originado no sistema inquisitivo, ou qual já foi, ou deveria ter sido extinto do direito processual penal.
No atual sistema processual penal, o compromisso das partes e do Estado-juiz deve ser unicamente com os fatos já constantes nos autos. A negativa de validade dos direitos fundamentais, assim como negar validade às garantias processuais ao réu é o mesmo que negar seus direitos advindos da ordem constitucional contemporânea, o que constitui uma violação à Constituição Federal, bem como à sua condição de ser humano. Portanto, o que se necessita é de um Processo Penal democrático, interpretado à luz da Constituição Federal, onde as garantias individuais do acusado sejam respeitadas, com o objetivo de evitar arbitrariedades que, por ventura, possam ser cometidas pelos magistrados quanto à gestão da prova. Percebe-se, portanto, que uma interpretação constitucional do processo penal não deve ocorrer simplesmente pelo fato de a Constituição estar no topo da hierarquia das normas, mas sim em virtude da mesma ser originada de lutas históricas para a consagração de direitos e garantias fundamentais a todos.
REFERÊNCIAS
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