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O juiz inquisidor em busca da verdade real no processo penal

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17/06/2019 às 14:00
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3. A FIGURA DO JUIZ NO PROCESSO PENAL

Ao magistrado, compete apenas a preocupação quanto ao julgamento da lide, mantendo a paridade de armas entre as partes e, por conseguinte, permanecendo imparcial. Colocando de fronte da racionalidade a Constituição Federal, percebe-se que o mesmo não pode e nem deve partir espontaneamente para colheita de provas, uma vez que se trata de atribuição exclusiva da polícia judiciária.

Apesar de o Brasil ter adotado o sistema acusatório, podemos encontrar no Código de Processo Penal, resquícios do sistema inquisitivo no atual âmbito da persecução penal brasileira.

A lei 11.690/2008 trouxe plausíveis alterações ao Código de Processo Penal, porém ocorreu um alargamento das prerrogativas e poderes do magistrado à frente do processo penal, podendo, inclusive, de ofício, intervir no curso das investigações, antes de instaurada a ação penal.

Apesar de o Brasil ter adotado o sistema acusatório, e implantado pela lei 11.690/08, o novo art. 156, inciso I, há um manifesto conflito entre o sistema vigente e o novo dispositivo, pois este autoriza o juiz de ofício “ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, atentando-se a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida”, trazendo assim, a figura do juiz inquisidor. Partindo desse pressuposto, a Constituição é instrumento crucial de efetivação da democracia por intermédio da observância, sobretudo, do princípio da dignidade da pessoa humana e da isonomia, uma vez que evite tratar o indivíduo a partir de uma “anomalia” inerente ao devido processo legal, e passa a aceitá-lo como um ser dotado de direitos independente da sua condição humana. Por tanto, é inescusável que se desvincule o processo penal de uma extensão de poder e o associe à democratização, ou seja, um espaço em que as partes desenvolvam seus argumentos e provas, facilitando que o juiz exerça a jurisdição de maneira imparcial, dessa forma o poder de punir do Estado é regrado e não permite a arbitrariedade estatal. O grande problema abordado por alguns dos autores, como Jorge Figueiredo Dias e Antônio Magalhães Gomes Filho, apesar de criticarem o sistema inquisitório, aceitam a continuidade da busca pela verdade real no processo penal brasileiro, desconsiderando que isso remonta ao discurso primitivo do processo inquisitivo.

Nesse sentido, KHALED JR. (2013. p. 154.), assevera que “mesmo que a verdade correspondente pareça maquiada com alegorias de ‘relativa’ ou ‘aproximada’ nos autores que admitem sua busca pelo juiz, ela permanece legitimando a deformação inquisitória do processo contemporâneo”. A busca por uma verdade real é legitimadora da iniciativa probatória do magistrado tanto no processo inquisitório, quanto no Brasil, que na realidade predomina o sistema acusatório. Desse modo, na linha de Jacinto Coutinho, Aury Lopes Jr. e Salah Khaled Jr. o processo penal brasileiro é (neo) inquisitório, sendo, portanto, contrário aos preceitos do Estado Democrático de Direito que a Carta Magna admite que sejamos. Tal raciocínio encontra respaldo nas afirmações de KHALED JR (2013) de que “a definição do sistema processual é analisada a partir da gestão da prova, e o Brasil tem total tradição inquisitorial”.

No sistema acusatório, é perceptível que há uma verdadeira obediência a formalidade, pois o que importa é a regra, ocorrendo uma incoerência, quanto a fatos que fujam da formalidade, e isso faz com que esse sistema seja neutro, visto que observa formalidades e não permite ao magistrado reconhecer provas que foram obtidas fora do ritual primordial. Contudo, no sistema inquisitório, como já fora abordado no primeiro capítulo do presente trabalho, a prova é tudo aquilo que revela o que supostamente aconteceu e deve ser levado aos autos de qualquer forma; independentemente à existência de regras, as mesmas podem ser ludibriadas para que a verdade real seja alcançada a todo custo. Um processo acusatório brasileiro, que deveria seguir conforme a Lei Maior, seguindo a tecnicidade que lhe é imposto para evitar abusos, não significa que a verdade não é importante ou desconsiderada, porém, como revela KHALED JR. (2013. p. 159.), “ela não ocupa um lugar hegemônico no sistema, o que permite afastar a característica patológica resultante de sua elevação a cânone no processo inquisitório, enfatizando seu caráter de contenção regrada do poder punitivo”. Para LOPES JR. (2010. p. 73), os dispositivos que revelam a ganância pela verdade real, como o art. 156, I e II do CPP: Externam a adoção do princípio inquisitivo, que funda um sistema inquisitório, pois representam uma quebra da igualdade, do contraditório, da própria estrutura dialética do processo. Como decorrência, fulminam a principal garantia da jurisdição, que é a imparcialidade do julgador. Está desenhado um processo inquisitório.

Essa ganância pela verdade real, fundamentada no Código de Processo Penal é tão perceptível que se torna possível apreciar as arbitrariedades gritantes cometidas pelos julgadores quando, por exemplo, nos crimes de ação pública, o juiz tenha o arbítrio de proferir sentença condenatória mesmo que o Ministério Público tenha pedido a absolvição do acusado, também quando ocorre a possibilidade de o magistrado reconhecer agravantes sem que o órgão acusador tenha suscitado. Em posição correta, LOPES JR (2010) afirma que os artigos 5º, 127, 156, 209, 234, 311, etc., são inconstitucionais, uma vez que violam o sistema acusatório constitucional. KHALED JR. (2013. p. 165.), assevera que: [...] é preciso fazer uma clara opção entre um processo acusatório e democrático, fundado na dignidade da pessoa humana – e, logo, na presunção de inocência – e um processo de inspiração inquisitória, fundado na lógica de persecução do inimigo. Em um processo o juiz ingressa predisposto a absolver, ciente de que a posição que lhe cabe é receptiva e que é a acusação que deve derrubar a presunção de inocência; em outro processo, o juiz entra movido por insaciável ambição de verdade e pratica ato de parte, o que só pode expressar um irrefreável desejo de condenação.

É evidente que o artigo 156 do Código de Processo Penal assegura práticas atribuídas pelo juiz, alegando que a busca pela verdade se faz necessária, para a melhor aplicação das leis, evitando, por sua vez, falhas judiciais suscetíveis a prejudicar o indivíduo. Tais doutrinadores, como Fernando Capez e Aury Lopes Júnior, entendem que o sistema processual brasileiro é misto, por ser usado o Código de Processo Penal como uma ferramenta de persecução ao inimigo e devendo respeitar as regras determinadas pela Carta Magna, no entanto, deve-se atender à corrente, que trata o processo penal brasileiro, como acusatório, em todas as suas fases, visando a Constituição de um país a fonte originária das demais leis, obviamente vindo a ser respeitada em todas as suas formas e tudo que lhe for contrário necessitará ser repensado de forma a garantir os direitos de todos os cidadãos. Ou seja, toda norma infraconstitucional, como o Código de Processo Penal, não pode afrontar contra a divisão de funções, a imparcialidade do julgador e à presunção de inocência.

3.1 Análises dos Poderes Instrutórios dos Magistrados e da Inconstitucionalidade do art. 156 do Código de Processo Penal

A presente análise tem por objetivo examinar a constitucionalidade do inciso I do artigo 156 do Código de Processo Penal, sobrevém da redação anterior à Lei nº 11.690/2008, que entrou em vigor no dia 11 de agosto de 2008, lei esta que inseriu o inciso I ao presente artigo, e a opinião dos autores referente aos poderes instrutórios do juiz, no âmbito do sistema jurídico nacional, que transformou dispositivos relativos à prova, especificamente no que tange o artigo 156 do CPP, que geralmente apresentou problemas, quanto a sua interpretação, especificadamente para aqueles comprometidos com o sistema acusatório constitucional.

Art. 156 A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: [Redação dada pela Lei nº 11.690, de 09/06/2008]

I - ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; [Redação dada pela Lei nº 11.690, de 09/06/2008]

II - determinar, no curso da instrução, ou antes, de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. (NR) [Redação dada pela Lei nº 11.690, de 09/06/2008]

Nesse contexto, Nucci (2011, pp. 364 - 365), faz uma alusão ao que se diz ser verdadeiro na iniciativa probatória do magistrado, que revela “passa a ser explicita essa possibilidade, não podendo a parte alegar surpresa nem tampouco parcialidade do magistrado se assim atuar”. Isso ocorre em consequência desta produção de provas iniciada pelo juiz estar legalmente amparado, gerando uma interpretação possível e harmoniosa com as normas vigentes. Ainda, conforme o mesmo autor considera que esse específico artigo de lei: Trata-se de decorrência natural dos princípios da verdade real e do impulso oficial. Em homenagem à verdade real, que necessita prevalecer no processo penal, deve o magistrado determinar a produção das provas que entender pertinentes e razoáveis para apurar o fato criminoso.

Nesse sentido, explana Rangel (2012, p.57) que não é errôneo o juiz poder vale-se de sua iniciativa probatória, uma vez que atenda aos princípios constitucionais, em outras palavras, se o magistrado optar pela busca de mais e melhores provas, essas necessitam efetivamente favorecer o acusado. Rangel esclarece ainda que equivocado alegar, que o juiz não pode ir em busca de provas que inocentassem o acusado, assim como se é feito com as liberdades provisórias, a título de exemplo. Menciona que:

A regra do Art. 156, II, CPP, que autoriza o juiz a determinar diligencias imprescindíveis ao esclarecimento da verdade, dá-se durante o curso do processo judicial e visa atender ao princípio do favor rei, ou seja, o juiz somente poderá buscar provas se for a favor do réu. Ora, se o juiz pode conceder, de oficio, ordem de habeas corpus concedendo liberdade, não há razão para se pensar que ele não poderia buscar uma prova que inocentasse o réu. Do contrário, viola-se, gravemente, o sistema acusatório.

Em contra ponto, Nucci (2010, p. 107) assinala que, com esse artigo de lei, “o magistrado seja coautor na produção de provas.”, uma vez que passa a adotar postura que deveria ser das partes, e jamais do órgão julgador, este imparcial no andamento do processo. Nucci comenta ainda que o magistrado “não se deve contentar com as provas trazidas pelas partes, mormente-se detectar outras fontes possíveis de buscá-las.” Ou seja, o autor conclui que o juiz deve tomar uma devida e correta atenção, para que não leve um inocente ao cárcere privado, por isso deve ater-se a produção de provas e, se julgar necessário, ir em busca delas. Assim conclui que “na esfera criminal, ainda que o réu admita o teor da acusação, o juiz determinará a produção de provas, havendo um cuidado maior para não levar ao cárcere um inocente, visto que estão em jogo, sempre, os interesses individuais.”

Conforme a corrente contrária, o magistrado com resquícios inquisitórios, utiliza da redação do referido artigo de lei para buscar mais provas para condenar o réu, pois, se o juiz aplica os efeitos do princípio in dubio pro reo, como o próprio nome já aclara, ou seja, se ocorrer dúvida por parte do magistrado, este deverá decidir inocentando o réu e não o condenando. Pois, se o juiz solicita a produção de mais provas, objetivando condenar o acusado, não teria provas contundentes para este fim e, por essa razão, se utiliza do artigo 156, II do CPP. Caso contrário, o inocentaria, por justamente estar em dúvida e fazer valer do sistema acusatório constitucional, em que nele usa-se o princípio in dubio pro reo.

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A faculdade probatória do juiz, desperta sérias críticas dos autores de linha garantista, a exemplo de Aury Lopes. Segundo o autor, o ônus da prova cabe a quem alega. Se há dúvida sob ponto relevante, isto é satisfatório para absolver, não convindo ao Magistrado, prolongar a instrução para, alcançar um fundamento condenatório, no entanto, ocorrendo a dúvida já comprova a absolvição. Para a produção antecipada de provas, devem ser demonstradas a relevância e urgência, porém, o ônus de requerer cabe à acusação.

A passada redação do artigo 156 reza que: “A prova da alegação incumbirá a quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução, ou antes, de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.”, nota-se que parte considerável da atual redação repete a anterior. O que de novo há é apenas o texto da redação do inciso I, eis que o inciso II é idêntico ao que já dispunha a cabeça do artigo com a redação antiga. O excelente doutrinador Dinamarco (2010, p.89) aponta um destaque, em relação a obrigação do magistrado, asseverando que: "o juiz moderno compreende que só lhe exige imparcialidade no que diz respeito à oferta de iguais oportunidades às partes e recusa a estabelecer distinções em razão das próprias pessoas ou reveladoras de preferências personalíssimas. Não se lhe tolera, porém, a indiferença.” Portanto, em representação do Estado e comandante do processo, é cabível ao magistrado a outorga da tutela jurisdicional, é competente para as elucidações das questões levantadas por ambas as partes, o comando principal na colheita de provas, do mais, é quem dá o direcionamento plausível do andamento processual, inclusive contendo poderes instrutórios, no entanto respeitando a limitação, conforme vislumbra o presente estudo.

No questionamento do poder instrutório e investigatório do magistrado, afirma Marcos Alexandre Coelho Zilli (2008, p. 2).

Ora, como se sabe, investigar e instruir são fenômenos diversos. Primeiro concentra as energias para a construção de uma acusação de modo que o sujeito que a conduz dificilmente deixará de ficar a ela vinculado. Diferente é o fenômeno da instrução. Aqui examina-se a veracidade, ou não, de uma imputação que foi apresentada por um sujeito invariavelmente diverso do julgador. Todos participam desse experimento. Uns de forma prevalente-as-partes-, outros apenas em caráter suplementar-juiz ou jurados-, desde que informados pela necessidade de melhor aclarar os fatos.

Essa disciplina já foi levantada em Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI 1570/DF no ano de 2004, aduzida a seguir: Publicação: DJ 22-10-2004 PP-00004 EMENT VOL-02169-01 PP-00046 RDDP n. 24, 2005, p. 137-146 RTJ VOL-00192-03 PP-00838. Parte(s): PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA, PRESIDENTE DA REPÚBLICA, CONGRESSO NACIONAL AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 9034/95. LEI COMPLEMENTAR 105/01. SUPERVENIENTE. HIERARQUIA SUPERIOR.

REVOGAÇÃO IMPLÍCITA. AÇÃO PREJUDICADA, EM PARTE. "JUIZ DE INSTRUÇÃO". REALIZAÇÃO DE DILIGÊNCIAS PESSOALMENTE. COMPETÊNCIA PARA INVESTIGAR. INOBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. IMPARCIALIDADE DO MAGISTRADO. OFENSA. FUNÇÕES DE INVESTIGAR E INQUIRIR. MITIGAÇÃO DAS ATRIBUIÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DAS POLÍCIAS FEDERAL E CIVIL. 1. Lei 9034/95. Superveniência da Lei Complementar 105/01. Revogação da disciplina contida na legislação antecedente em relação aos sigilos bancário e financeiro na apuração das ações praticadas por organizações criminosas. Ação prejudicada, quanto aos procedimentos que incidem sobre o acesso a dados, documentos e informações bancárias e financeiras. 2. Busca e apreensão de documentos relacionados ao pedido de quebra de sigilo realizadas pessoalmente pelo magistrado. Comprometimento do princípio da imparcialidade e consequente violação ao devido processo legal. 3. Funções de investigador e inquisidor. Atribuições conferidas ao Ministério Público e às Polícias Federal e Civil (CF, artigo 129, I e VIII e § 2o; e 144, § 1o, I e IV, e § 4o). A realização de inquérito é função que a Constituição reserva à polícia. Precedentes. Ação julgada procedente, em parte.( ADI 1570 DF, Tribunal Pleno - Relator(a): MAURÍCIO CORRÊA -, Julgamento: 11/02/2004).

Anteriormente ao julgamento aduzido, Luiz Flávio Gomes (1999, p. 183), já enaltecia argumentos significativos:

O que o legislador responsável pela Lei 9.034/95 quis foi, da noite para o dia implantar (no nosso país) o sistema inquisitório de triste memória, isto é, nos albores do século XXI, seu desejo é o de que a praxe judicial seja a da Idade Média. Esse retrocesso constitui mais uma prova de que o poder político achava-se, às vezes, desenganadamente perdido frente ao fenômeno da criminalidade, principalmente organizada. Não sabe o que fazer e acaba por estabelecer em lei o que está no âmago mais recôndito da nossa herança primitivista-atávica (poderes inquisitivos). Em pleno Estado Constitucional e Democrático de Direito, tentar restabelecer uma praxe medieval denota o primitivismo com o qual, em algum momento, se lida com esse grave problema social e comunitário que se chama “crime’ (GOMES, 1999, p.183).”

Gomes (2011), ao explanar em seu livro sobre o artigo 1566, do Código de Processo Penal, demonstrava-se sua indignação perante a inconstitucionalidade do referido artigo, com o entendimento que o juiz, jamais, poderia produzir provas de oficio, além de que, não tenha iniciado se quer a ação penal, arriscando esse ato ser pautado em uma agressão ao sistema acusatório adotado pela Constituição Brasileira de 1988.

Com essa mesma concepção, Aury Lopes Jr. (2010, p.71), afirma: Nesse contexto, dispositivos que atribuam ao juiz poderes instrutórios como o famigerado art. 156 do CPP, externam a adoção do princípio inquisitivo, que funda um sistema inquisitório, pois representam uma quebra de igualdade, do contraditório, da própria estrutura dialética do processo. Como decorrência fulmina a principal garantia da jurisdição que é a imparcialidade do julgador. Está desenhado um processo inquisitório (LOPES JÚNIOR, 2010, p.71). LOPES JÚNIOR (2010, p.10), complementa, ainda que: Imaginem tais poderes nas mãos de algum juiz-justiceiro, titular de uma vara “especializada (de combate a)”, para compreender-se o tamanho do problema e o grave retrocesso de tal disposição legal. Perde-se um juiz e se ganha um inquisidor. Um bom negócio, sem dúvida,resta saber para quê e para quem (LOPES JÚNIOR, 2010, p.10).

O Supremo Tribunal Federal – STF, no Habeas Corpus nº 82.507 de Sergipe, Relator Sepúlveda Pertence, se manifestou, conforme a seguir:

Publicação: DJ 19-12-2002 PP-00092 EMENT VOL-02096-04 PP-00766 Parte(s): ALBANO DO PRADO PIMENTEL FRANCO EDUARDO ANTÔNIO LUCHO FERRÃO RELATOR DO INQ Nº 329 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA I. STF: competência originária: habeas corpus contra decisão individual de ministro de tribunal superior, não obstante susceptível de agravo. II. Foro por prerrogativa de função: inquérito policial. 1. A competência penal originária por prerrogativa não desloca por si só para o tribunal respectivo as funções de polícia judiciária. 2. A remessa do inquérito policial em curso ao tribunal competente para a eventual ação penal e sua imediata distribuição a um relator não faz deste "autoridade investigadora", mas apenas lhe comete as funções, jurisdicionais ou não, ordinariamente conferidas ao juiz de primeiro grau, na fase pré-processual das investigações. III. Ministério Público: iniciativa privativa da ação penal, da qual decorrem (1) a irrecusabilidade do pedido de arquivamento de inquérito policial fundado na falta de base empírica para a denúncia, quando formulado pelo Procurador-Geral ou por Subprocurador-Geral a quem delegada, nos termos da lei, a atuação no caso e também (2) por imperativo do princípio acusatório, a impossibilidade de o juiz determinar de ofício novas diligências de investigação no inquérito cujo arquivamento é requerido. (HC 82507 SE, Relator (a): SEPÚLVEDA PERTENCE, Julgamento: 09/12/2002).

Mediante os posicionamentos aduzidos, Eugênio Pacelli de Oliveira (2010, p. 96), expõe sua percepção perante o questionamento levantado:

O juiz não tutela e nem deve tutelar a investigação. A rigor, a jurisdição criminal somente se inicia com a apreciação da peça acusatória (art. 395 e art. 396, CPP). No curso do inquérito policial ou de qualquer outra investigação a atuação da jurisdição não se justifica enquanto tutela dos respectivos procedimentos. O juiz, quando defere uma prisão cautelar, quando defere uma interceptação telefônica ou a quebra de uma inviolabilidade pessoal, não está, nem nesse momento, protegendo os interesses da investigação criminal. Na verdade, como garantidor que é das liberdades públicas, ele estará exercendo o controle constitucional das restrições às inviolabilidades, nos limites da Constituição da República e do devido processo legal (OLIVEIRA, 2010, p.96).

Observa-se que os dispositivos legais, deverão ser interpretados e aplicados nas decisões proferidas pelo juiz em casos concretos, que por sua vez, obedecerá a norma jurídica, mas que de certo modo, deverá em sua interpretação, analisar também, o contexto e fins sociais, os fatos e valores, dos quais a norma advém, respeitando o devido processo legal.

Com essa perspectiva corrobora Geraldo Prado (2005, p.49).

A relevância do processo hermenêutico para a imposição predominante dos direitos fundamentais na esfera penal é tão significativa, que vale recordar que o intérprete, este mediador, principalmente se for o juiz penal, sempre contribuirá decisivamente na escolha dos valores que o guiarão, por meio da assunção de significados concernentes a uma determinada concepção de Direito. Interpretar deriva de interpres, isto é, mediador, intermediário, de sorte a estabelecer-se no processo de interpretação a mediação entre o texto e a realidade para, de acordo com o Baracho, desenvolver-se o processo intelectivo através do qual, partindo da forma linguística contida no ato normativo, chegar-se ao seu conteúdo ou significado. Caso contrário, o juiz estaria reduzido a mero instrumento de aplicação mecânica de um texto legal, suscetível de ser substituído com muitas vantagens por um computador. Eis a razão de Couture ter dito que: “Interpretar é ainda que inconscientemente, tomar partido por uma concepção do Direito, o que significa dizer, por uma concepção do mundo e da vida”. Interpretar é dar vida a uma norma. Esta é uma simples proposição hipotética de uma conduta futura. Assim sendo, é um objeto ideal, invisível (...) e suscetível de ser percebido pelo raciocínio e pela intuição. O raciocínio e a intuição, todavia, pertencem a um determinado homem e, por isso, estão prenhes de subjetivismo (PRADO, 2005, p.49).

Comprovando a explanação apresentada, vale salientar o anteprojeto do Código de Processo Penal, elaborado por uma Comissão de Jurista, confeccionado nos moldes de Requerimento 227/2008, aditados pelos Requerimentos 751 e 794, ambos de 2008, pelos atos do Presidente 11, 17 e 18 do respectivo ano, na pessoa do Relator Geral Eugênio Pacelli de Oliveira e o Coordenador da Comissão, o ilustre Ministro Hamilton Carvalho. Conforme a apresentação de motivos, considerando o estado democrático de Direito:

Com efeito, a explicação do princípio acusatório não seria suficiente sem o esclarecimento de seus contornos mínimos, e, mais que isso, de sua pertinência e adequação às peculiaridades da realidade nacional. A vedação de atividade instrutória ao juiz na fase de investigação não tem e nem poderia ter o propósito de suposta redução das funções jurisdicionais. Na verdade, é precisamente inverso. A função jurisdicional é uma das mais relevantes no âmbito do Poder Público.

A decisão judicial, qualquer que seja o seu objeto, sempre terá uma dimensão transindividual, a se fazer sentir e repercutir além das fronteiras dos litigantes. Daí a importância de se preservar ao máximo o distanciamento do julgador, ao menos em relação à formação dos elementos que venham a configurar a pretensão de qualquer das partes. Em processo penal, a questão é ainda mais problemática, na medida em que a identificação com a vítima e com seu infortúnio, particularmente quando fundada em experiência pessoal equivalente, parece definitivamente ao alcance de todos, incluindo o magistrado.

A formação do juízo acusatório, a busca de seus elementos de convicção, o esclarecimento e a investigação, enfim, da materialidade e da autoria do crime a ser objeto de persecução penal, nada tem que ver com a atividade típica da função jurisdicional. Esclareça-se que as cláusulas de reserva de jurisdição previstas na Constituição da República, a demandar ordem judicial para a expedição de mandado de prisão, para a intercepção telefônica ou para o afastamento da inviolabilidade do domicílio, não se posicionam ao lado da preservação da eficiência investigatória. Quando se defere ao juiz o poder para a autorização de semelhantes procedimentos, o que se pretende é tutelar as liberdades individuais e não a qualidade da investigação (Disponível em http://www.senado.gov.br/novocpp≥. Acesso em 25/07/2013).

Com tudo, aos fatos e posições exploradas e comprovadas, viabiliza a importância da inconstitucionalidade, referente ao poder instrutório de ofício do magistrado, emanado pelo Artigo 156, inciso I do Código do Processo Penal, em atendimento os princípios constitucionais já estudados, e caso não ocorra, o magistrado deverá interpretar e decidir mediante limitação de seus poderes, valendo-se apenas de suas atribuições jurisdicionais, estabelecendo a imparcialidade, o contraditório e presunção de inocência. Obrigando-se a usufruir tal dispositivo para aclarar dúvidas geradas a partir das provas produzidas pelas partes no processo.

3.2 O Juiz Inquisidor e a Produção de Provas na Busca da Verdade Real no Processo Penal

No tocante aos argumentos apresentados anteriormente, para fundamentar a manutenção da atribuição de iniciativa probatória ao juiz no processo penal em nosso ordenamento jurídico, entende-se que os artigos do Código de Processo Penal que trazem tal previsão confrontam a Lei Maior e, por conseguinte, aos princípios e regras por ela aduzidos. Conforme já afirmado, historicamente, a atribuição de poderes instrutórios esteve sempre atada ao sistema inquisitório, onde o juiz não possuía limitações para o alcance da verdade real. Impressionante imaginar que a ausência de limites à atividade instrutória do juiz nesse sistema permitisse a obtenção dessa verdade absoluta. Porém, o alcance da verdade de forma absoluta é algo impossível, inviável para a condição humana.

Salienta-se as limitações à busca da verdade no processo penal, quais sejam, impossibilidade de apreciação direta dos fatos, o caráter irredutivelmente provável da verdade fática e o inevitavelmente opinativo da verdade jurídica das teses judiciais, a subjetividade do juiz e subjetividade das fontes de prova. O princípio da busca da verdade real, como já elencado e conceituado no presente estudo, nada mais é do que uma explanação coesa para que o magistrado obtenha e se faça valer de seus poderes instrutórios, no entanto tal ato não prospera, conforme o processo penal, para a defesa das garantias constitucionais do cidadão, pois esse princípio deveria ser concebido como o fator decisivo do juiz na hora de prolatar sentença, seja para livre convencimento a partir do que o magistrado já obtiver em mãos, e não para ir em busca de novas provas e tomar parte no processo, ficando distante de sua imparcialidade.

Assinala Francisco das Neves (2001, P. 145), sobre o princípio discutido: Vê-se daí que as regras constitucionais, bem ao revés de preconizar ou favorecer o alcance da chamada verdade real, antes a inviabilizaram, toda vez que seja procurada por outros meios que não os estritamente autorizados por lei. Não se trata, é bom de ver-se, de simples limitações à aplicabilidade do princípio, mas de inteiro desapreço a ele, quando se sobreponha às garantias constitucionalmente asseguradas ao indivíduo.

O autor revela em seu posicionamento, que não se deu a importância necessária pela Constituição Federal, no tocante o princípio da busca pela verdade real, uma vez que esta seria indispensável para o livre convencimento do juiz. O que aconteceu foi a defesa de inúmeros outros princípios elencados pelo devido processo penal, que ao invés de auxiliar, prejudicaram essa busca pela verdade real, deixando visível a ofensa por parte do juiz no processo penal.

Com tudo, demonstra-se a finalidade de esclarecer os poderes de iniciativa probatória do magistrado, de modo que os mesmos tentam, de certa forma, alcançar a verdade dos fatos jamais entraram em antagonismo com o sistema acusatório e, sendo assim, com a Constituição Federal.

Pois não existe uma verdade absolutória e sim uma verdade aproximada, ou seja, uma aproximação dos fatos, para FERRAJOLI (2002, p.488), a verdade processual “pode ser concebida como uma verdade aproximada a respeito do ideal iluminista de perfeita correspondência”, em outras palavras, não é possível o alcance dessa da verdade real, somente é possível o alcance do que Ferrajoli denomina de “verdade processual”, pois ela é alcançada através das provas constantes nos autos, e são nelas que o juiz deverá fundamentar a sua decisão.

É perceptível, que na fase instrutória entrega ao magistrado os poderes ilimitados em busca do alcance da verdade real, em decorrência dessa agressão, doutrinadores criticam o poder do juiz de produzir provas, alegando que toda fase instrutória está eivada dos ditames do sistema inquisitório, onde o juiz não se limita a apenas um mero espectador do processo e passa a intervir diretamente nele como parte.

O magistrado com a imparcialidade comprometida, não irá gozar de suas funções de maneira justa, o que afeta o devido processo legal, ou seja, a verdade que se busca fica inteiramente comprometida.

Portanto, Francisco das Neves Baptista (2001, pp. 154 -155), conclui a respeito da verdade real:

A livre convicção é vista, assim, como condicionada a uma multiplicidade de vias demonstrativas. Vê-se que o sistema processual codificado põe outros valores acima da verdade real, não somente tolerando o abandono da busca desta, mas até impondo dela desistir-se, em dadas circunstâncias. Nesse contexto, também, não há espaço para imparcialidade, pois a reunião das funções de acusar e julgar na mesma pessoa impede a presença da referida garantia, atribuição esta que é de suma importância para o acusado e para a obtenção de uma decisão justa. Destarte, entende-se que se o juiz não se mantiver afastado de qualquer atividade probatória, sua imparcialidade estará visivelmente comprometida. Nas lições de Geraldo Prado (2005, pp.136 - 137), “a introdução de material probatório é precedida da consideração psicológica pertinente aos rumos que o citado material possa determinar se efetivamente incorporado ao processo".

Este autor acrescenta que "quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar e isso, em termos de processo penal condenatório, representa uma inclinação ou tendência perigosamente comprometedora da imparcialidade do julgador." Quanto à imparcialidade, Aury Lopes Júnior (2005, p. 85) nos ensina que está, "corresponde exatamente a essa posição de terceiro que o Estado ocupa no processo, por meio do juiz, atuando como órgão supra-ordenado às partes ativa e passiva." Se o juiz não for imparcial, haverá um prejuízo à reconstrução fática do ocorrido, uma das finalidades do processo penal. A atribuição de poderes instrutórios ao juiz interdita a melhor aproximação possível da verdade e não sendo tal aproximação obtida, a decisão não poderá ser considerada justa. Danificada a imparcialidade, fica clara a não observância do devido processo legal, garantia fundamental, prevista no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, que assim dispõe: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal."

A importância da garantia da imparcialidade para o devido processo legal foi destacada pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1570-2 proposta pelo Procurador-Geral da República, em face do artigo 3º, da Lei nº 9.034/95, no voto do relator, Ministro Maurício Corrêa, citando entendimento do ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça Adhemar Ferreira Maciel, nesses termos: Essa atividade coletora de provas do juiz, [...], viola a cláusula do ‘due process of law’. Viola, porque compromete psicologicamente o juiz em sua imparcialidade. E a imparcialidade, como sabemos, é virtude exigida de todo e qualquer magistrado [...] E coletando provas, não paira dúvida, ele será fatalmente influenciado. Talvez valesse para um ‘juiz preparador’ nunca para um ‘juiz julgador’. Ademais, o ‘princípio da ação’, do ne procedat judex ex officio, impede e, na prática, desaconselha o magistrado na fase administrativa de colher provas, como o desaconselha a ajuizar ações penais de ofício. Esse não é o papel institucional e constitucional reservado ao magistrado.

Neste contexto, resta inconteste que a estrutura do sistema inquisitório previsto no CPP é marcada pela caráter ditatorial, mostrando-se absolutamente incompatível com o devido processo legal prevista na Constituição, que a ele é posterior. Por isso, faz-se necessário redefinir a real função institucional do novo juiz perante o “novo” modelo acusatório de processo penal.

Para tanto, deve-se, necessariamente, forjar um processo penal no qual o juiz se afaste desse lugar nuvioso que é a produção de prova, ainda que a título complementar, e possa, efetivamente, pelas regras constitucionais, ascender ao lugar de “guardião” dos direitos e liberdades individuais, de onde, salientamos, nunca deveria ter saído.

É necessário, ainda, que o Ministério Público assuma, de uma vez por todas, o lugar de parte, saindo, inclusive, do posto direito do juiz na formatação inquisitorial das salas de audiências, e o juiz o de garantidor, não tendo nenhuma iniciativa na busca do conhecimento, porque ele é o destinatário do conhecimento, isto é, da prova da inexistente ou existente do fato ocorrido e de seu autor, conhecimento a partir do qual exercerá o poder de punir, que é diverso do poder de acusar.

Consequentemente, resta claro que é a delimitação das funções e, por consequência, a gestão da prova que cria as condições de possibilidade para que a imparcialidade se efetive uma vez ausente na gestão da prova, o juiz poderá exercer a função que é da sua essência e que lhe é própria, ser o garantidor dos direitos e liberdades individuais insculpidas ou decorrentes da Constituição

Todo cidadão é garantidor desses direitos, mas o garantidor por excelência é o Juiz. O Poder Judiciário deve ser tachado de “guardião das promessas”, passando a ser o guardião da Constituição e protetor dos direitos fundamentais.

Em consequência, a saga punitivista das instituições de segurança pública, quando exercida em desconformidade com as regras do jogo, deve ser imediatamente barrada pela atuação pontual do juiz, garantidor por excelência dos direitos e garantias traçados pelo Constituinte de 1988.

Com efeito, a declaração de nulidade de determinado ato praticado pela acusação em desconformidades com as “regras do jogo” e o relaxamento de prisão por excesso de prazo para a formação da culpa, são alguns exemplos do “preço que se paga pela democracia.”

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JONHSON, Endy. O juiz inquisidor em busca da verdade real no processo penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5829, 17 jun. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74618. Acesso em: 28 mar. 2024.

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