Capa da publicação Delação premiada e prisão preventiva na operação Lava-Jato: eficientismo penal e midiatismo jurídico
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Delação premiada e prisão preventiva na operação Lava-Jato.

Eficientismo penal e midiatismo jurídico. E agora, quem poderá nos defender?

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A desconstrução dos heróis da mídia, que deixaram de lado a lei – única arma da qual deveriam se valer –, vem acompanhada do necessário reconhecimento de nulidades nos processos decorrentes da Operação Lava-Jato.

Resumo:  Assiste-se atentamente ao desenrolar de uma série de publicações de conversas privadas entre operadores do direito envolvidos na Operação Lava-Jato –juízes e procuradores, mais especificamente. Apesar do razoável questionamento feito em relação ao modo de obtenção de tais conversas, seu conteúdo, entretanto, tem revelado falhas graves na condução da referida operação e nos processos judiciais dela decorrentes, tudo isso fomentado por um crescente processo de midiatização de prisões preventivas e acordos de delação premiada de questionável fundamentação teórica. A busca incessante por holofotes punitivistas no combate à corrupção também chegou ao patamar de heróis nacionais alguns membros dos órgãos de primeira instância envolvidos na persecução criminal no âmbito da referida operação, ao mesmo tempo em que colocou em questão o próprio Estado Democrático de Direito e o sistema de garantias, tornando evidente que normas processuais foram violadas e que princípios constitucionais foram ignorados sob a justificativa disfarçada de eficientismo penal.

Palavras-chave: delação premiada; prisão preventiva; midiatismo Jurídico; eficientismo penal.


O sistema processual penal brasileiro passa por uma verdadeira revolução e quebra de paradigmas desde a aprovação da Lei 12.850/2013, que definiu organização criminosa e dispôs sobre a investigação criminal, os meios de obtenção de provas, as infrações penais correlatas e o procedimento criminal a ser seguido nesses casos.

Seus reflexos se fizeram sentir tanto na economia quanto na política, e colocam à prova inclusive o próprio Estado Democrático de Direito e o sistema de garantias firmado na Constituição Federal de 1988, uma vez que prisões preventivas passaram a ser cada vez mais utilizadas com aparente desvio de finalidade, como forma de forçar acordos de delação, valendo-se inclusive do apelo midiático e de estrangeirismos mal adaptados ao direito brasileiro como mecanismos a serviço de um modelo supostamente pautado pelo eficientismo penal e pela busca de justiça a qualquer preço.

Nesse contexto, despontou a famigerada “Operação Lava-Jato[1]”, que em pouco tempo se tornou símbolo do combate à corrupção no Brasil, especialmente pela cobertura midiática que o instituto da delação premiada passou a receber, muitas vezes culminando na execração pública de pessoas ainda na fase inicial das investigações, sem a devida formação da culpa e sem oportunidade do exercício do contraditório, o que inevitavelmente nos remete aos ensinamentos de Foucault (1999), ao tratar do modelo de punição existente entre os séculos XVIII e XIX, baseado na exposição pública de condenados, que eram submetidos a uma série de suplícios, flagelos e submissões com o objetivo de se exercer uma espécie de controle social através do exemplo e do medo.

Tal como naquele período, verifica-se hodiernamente que em muitos casos prisões de contestável fundamentação jurídica têm sido utilizadas como mecanismo de exposição pública, não mais com o objetivo de causar medo nos expectadores e servir de exemplo para que outras pessoas não incorram em condutas semelhantes, mas obstinada a conquistar o apoio da opinião pública e, dessa maneira, promover a realização de acordos.

É certo que o combate ao crime hoje em dia, especialmente os relacionados aos chamados “crimes do colarinho branco”[2] e, de maneira mais genérica, à própria corrupção, são difíceis de ser investigados pelo alto grau de sofisticação, aparato tecnológico envolvido e inserção nas mais importantes estruturas de poder. Porém, isso jamais pode servir de subterfúgio para que os operadores do direito se distanciem da lei e apliquem a justiça de forma deturpada, seletiva e contrária ao Estado Democrático em vigor.

Ademais, para além de noções conceituais e de discussões de cunho ético e moral, de respeito à Constituição e aos direitos fundamentais, além da própria adequação ou não à teoria garantista defendida por Ferrajoli (2002), também não deve passar despercebida a relação ainda pouco estudada entre a delação premiada e a prisão cautelar, notadamente a de caráter preventivo, uma vez que tem sido essa a que mais comumente tem antecedido a formalização de acordos, muito em função, aliás, de interpretações amplamente discricionárias por parte dos órgãos envolvidos na persecução penal a respeito dos motivos autorizadores previstos no art. 312 do Código de Processo Penal (CPP).

Destaca-se, nesse ponto, o requisito da conveniência da instrução criminal, que conceitualmente é a prisão que “visa impedir que o agente perturbe ou impeça a produção de provas” (LIMA, 2017, p. 973). Busca-se por meio dela resguardar a livre produção das provas, impedindo que o sujeito investigado e/ou processado intimide ou alicie testemunhas, vítimas e peritos, destrua, suprima ou altere provas e locais de crime ou ainda, de qualquer modo, atrapalhe a persecução criminal.

Acontece, porém, que não raramente o que se tem visto são decisões, pareceres e representações judiciais baseadas numa discutível conveniência da instrução criminal, com o objetivo de coagir a participação de investigados ou processados no mecanismo de obtenção de prova ora apreciado. Em parecer firmado pelo Ministério Público Federal da 4ª Região no bojo do habeas corpus nº 5029050-46.2014.404.0000, por exemplo, o que se percebe é um aparente e desautorizado desvirtuamento do fundamento legal constante do supracitado artigo, uma vez que se defende que a prisão preventiva com base na conveniência da instrução criminal também se destina a persuadir infratores da norma penal a colaborarem com as investigações:

A conveniência da instrução criminal mostra-se presente não só na cautela de impedir que os investigados destruam provas, o que é bastante provável no caso dos pacientes, que lidam com o pagamento a vários agentes públicos, mas também na possibilidade de a segregação influenciá-los na vontade de colaborar na apuração de responsabilidade, o que tem se mostrado bastante fértil nos últimos tempos. Com efeito, à conveniência da instrução processual, requisito previsto artigo 312 do Código de Processo Penal, deve-se acrescer a possibilidade real de o infrator colaborar com a apuração da infração penal, como se tem observado ultimamente, diante dos inúmeros casos de atentados contra a administração e as finanças do país. (2014, p. 7)

Percebe-se, assim, a ocorrência, em total desacordo com as normas vigentes no Brasil, de um aparente desvirtuamento de ambos os institutos aqui tratados; ou seja, prende-se com fundamento na conveniência da instrução criminal, a qual, de forma equivocada e arbitrária, tem tido seu sentido ampliado visando à obtenção de acordos de delação, do que para tanto lança mão de excessiva exposição de investigados e réus através dos meios de comunicação.

Isso não deve ser encarado como algo trivial. Porém, antes de qualquer análise mais detalhada dessa e de outras decisões amplamente veiculadas pela grande mídia no contexto da Lava-Jato – e que certamente, muito mais do que combater a corrupção, têm suplantado com enorme velocidade o nosso já combalido sistema de garantias – é preciso fazer uma breve digressão a respeito do que se pode chamar de novo viés intervencionista estatal, o qual tem culminado, especialmente a partir das últimas décadas do século XX, numa “legitimação discursiva que pretende atribuir ao poder punitivo a função manifesta de prevenção geral positiva” (ZAFFARONI, p. 121), desvinculando gradativamente a pena da função protetora de bens jurídicos.

Para dar legitimidade a esse novo discurso, aliás, tem sido cada vez mais necessário fazer uso do apelo midiático, de modo a ganhar a opinião pública e dicotomizar o direito penal através daquilo que Casara (2016, p. 309) cunhou de lógica de mocinhos e bandidos, em que “heróis e vilões são eleitos para atender a interesses momentâneos de um enredo em que a lei importa pouco, diante da sustentação da lógica maniqueísta e binária que impede a reflexão crítica”. Os fatos recentemente noticiados pela agência “The Intercept Brasil”[3] e propagados por outros importantes meios de comunicação nacional a respeito da revelação de supostas conversas de teor aparentemente escuso entre agentes públicos envolvidos na supracitada operação parecem querer cumprir o vaticínio acima exposto.

Prisões midiáticas e exposição pública excessiva, condenações com base em conjunto indiciário (e não em provas), ultraceleridade seletiva na apreciação de processos, além é claro da inovação interpretativa dos fundamentos autorizadores da prisão preventiva (conveniência da instrução criminal), são apenas alguns dos aspectos que, além de provocar grande insegurança jurídica no direito pátrio, tornaram possível a transformação de ilustres desconhecidos (na melhor acepção do termo) em heróis nacionais.

Esses mesmos tais fatores, entretanto, podem ser capazes, como estão revelando os diálogos vazados, de desconstruir essas celebridades jurídicas instantâneas, também alçadas pela mídia, conforme explica Prado Junior (2019, p.33), ao patamar de “salvadores da pátria”. A propósito, em sua tese de doutoramento o autor realiza uma adaptação do conceito da Jornada do Herói, de Joseph Campbell[4], à condução dos processos no âmbito da 13ª Vara Federal de Curitiba, relativamente aos casos apurados na Operação Lava-Jato e, em tese, relacionados à corrupção na estatal Petrobras.

Entretanto, como não existem heróis de fato – a não ser nos quadrinhos e na própria mitologia­– as etapas ou estágios verificados em toda empreitada heroica não guardam muita similitude com a realidade. No mundo real, aliás, quando muito se pode falar em atitudes heroicas, como quando alguém arrisca a própria vida para salvar a de outra pessoa. A ideia de seres humanos superpoderosos, trajando roupas coladas e coloridas, usando capas e cintos multiferramentas e se dedicando diuturnamente ao combate ao crime definitivamente só faz sentido na ficção. No serviço público, ainda mais quando se trata de órgãos envolvidos na persecução criminal, é suficiente a aplicação intransigível da lei por pessoas de carne e osso, ainda que falíveis e eventualmente corruptíveis.

Parafraseando Oscar Wilde[5], “a vida imita a arte mais do que a arte imita a vida”. E no caso de algumas dessas ações e decisões acima referidas no bojo da Operação Lava-Jato, ao menos ao que parece, o afã de combater o crime e seus supostos perpetradores não permitiu que os aplicadores do direito envolvidos notassem a sutil diferença que separa os vilões dos mocinhos, pois, via de regra, ambos caminham à margem da lei.

À margem da lei, vale esclarecer, pode ter duas acepções igualmente válidas e factíveis, podendo indicar tanto a prática de atos ilícitos propriamente ditos quanto a aplicação da lei de forma desvirtuada. Ambas são igualmente perniciosas, porém, ficaremos apenas com a última.

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Assim, por exemplo, Trindade e Streck (Nov., 2014), ao criticarem o parecer ministerial anteriormente aludido e, mais especificamente, a fala do Procurador da República no sentindo de que “o passarinho pra cantar precisa estar preso”, consideram que a constrição da liberdade quando se constitui em meio de obtenção de prova é um tipo de violência simbólica, violência psicológica em nome da moralização, sob a falsa argumentação de que “se o Direito apresenta muitas garantias e ‘dificulta’ o papel e a função das autoridades (polícia e MP), então ele deve ser corrigido ‘moralmente’, com a aclamação de parcela significativa da população”. Assim, concluem os autores que “utilizar a prisão como forma de pressionar os acusados para que façam a delação é transformar o Direito Penal em responsabilidade objetiva”.

Essa estratégia da acusação –e em certa medida do próprio poder judiciário– também tem sido reiteradamente denunciada pela defesa dos investigados e acusados, muito embora, nesse caso, como bem frisou o advogado Alberto Zacharias Toron em entrevista[6], “quem critica atitudes arbitrárias do Judiciário é tachado como alguém a favor da corrupção”. Segundo o causídico, o que está errado é a utilização da prisão preventiva para forçar a obtenção das delações. Assim, “Mesmo que se diga que muitas delações foram feitas por réus soltos, não é menos verdadeiro que tiveram como inspiração as inúmeras prisões e o tempo que duraram”. Isso porque muitas pessoas também foram “convencidas” a fazer acordos de delação em virtude do medo de serem presas e expostas na imprensa.

Isso fica ainda bastante evidente quando se analisa o teor de decisão judicial no Pedido de Busca e Apreensão Criminal nº 5004568-78.2017.4.04.7000/PR, que “em vista da informação prestada pelo MPF de que estaria em tratativas para um acordo de colaboração”, voltou atrás em relação à representação pela prisão preventiva e busca e apreensão no endereço do investigado[7].

Também não parece ser outro o sentido firmado em decisão que determinou a segregação cautelar de vários investigados em outra fase da Lava-Jato, quando, assentando-se em um alegado “Risco à investigação e à instrução”, o juiz firmou entendimento sem lastro em qualquer fato concreto que justificasse a adoção da medida:

Com o patrimônio e recursos de que dispõe, a Odebrecht tem condições de interferir de várias maneiras na colheita da provas, seja pressionando testemunhas, seja buscando interferência política, observando que os próprios crimes em apuração envolviam a cooptação de agentes públicos. Em especial, no caso da Odebrecht, há registro de pontuais interferências na colheita da prova por pessoas a ela subordinadas ou ligadas.[8]

Assim, por mais que o combate à criminalidade sofisticada necessite cada vez mais de aperfeiçoamento, e muito embora se possa dizer que a Operação Lava-Jato tenha sido bastante relevante, tanto do ponto de vista do combate a uma corrupção aparentemente endêmica quanto para chamar a atenção da sociedade para um problema que de fato precisa ser enfrentado com rigor, a questão é que, sob pena de nos afastarmos do Estado Democrático de Direito e do sistema de garantias previsto na Constituição, não se deve fazer uso de certos artifícios, como os anteriormente apontados, com o objetivo de supostamente aplicar a lei e fazer justiça.

O desvirtuamento do fundamento da prisão preventiva com base num critério de conveniência da instrução criminal não previsto na lei brasileira e jamais defendido antes até pelos mais renomados expoentes do direito pátrio parece mais um malabarismo jurídico do que propriamente “um entendimento avançado” (CANÁRIO, 2014). Cacho (2015. p. 47) explica que a prisão preventiva para a “extorsão da colaboração premiada” possui previsão legal, por exemplo, no ordenamento jurídico italiano, onde os agentes envolvidos na Operação Lava-Jato buscaram inpiração. Porém, no Brasil não encontra respaldo jurídico algum, sendo aplicado ao arrepio da lei processual e das garantias constitucionais.

A excessiva exposição pública de investigados e réus, muito mais do que um simples resultado do incessante e imparcial trabalho da mídia nacional, revela um caráter essencialmente neopunitivista e intervencionista do Estado, que se utiliza, num processo de retroalimentação constante, da chamada criminologia midiática, cujo discurso atual “no es outro que el llamado neopunitivismo de Estados Unidos, que se expande por el mundo globalizado” (ZAFFARONI, 2012, p. 217) e que se percebe agora exercer importante papel no contexto de divulgação das delações premiadas conquistadas por meio de prisões.

Como foi visto, outra grave consequência disso, num país tão carente de heróis, foi o surgimento de alguns “justiceiros” no âmbito dos órgãos envolvidos na persecução penal. Destituídos, como era de se esperar, de superpoderes ou capacidades sobre-humanas, tais servidores em vários momentos deixaram de lado aquela que de fato (e de direito) era a única “arma” de que podiam se valer: a lei.

O processo de desconstrução que tais “heróis da mídia” estão enfrentando a partir das conversas reveladas pelo The Intercept Brasil, além da natural frustração que está provocando nos milhões de cidadãos desolados e desesperançosos com os rumos da política nacional, certamente também será responsável por possíveis nulidades que serão analisadas em diversos processos da Lava-Jato, em decorrência da postura pouco ortodoxa adotada em face da lei pelos aplicadores do direito envolvidos na operação Lava-Jato.

Mas assim como a flecha e a palavra, que uma vez lançadas não voltam mais, a superexposição de pessoas, o desgaste à imagem e os traumas da prisão e da própria delação daí decorrente não são questões menos importantes do que as já apontadas; muito pelo contrário, refletem um acelerado esgarçamento do Estado Democrático de Direito e do sistema de garantias previsto na Constituição Federal, tornando ainda mais vulneráveis, em última análise, todos os cidadãos, independentemente de cor ou classe social, que ficam expostos tanto a um midiatismo jurídico exacerbado quanto a atuação nem sempre imparcial de heróis de toga.

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Sobre o autor
José Henrique Mesquita da Silva

Graduado em Direito pela Universidade Federal do Maranhão. Delegado de Polícia Civil. Estudante do Mestrado em Direito Público pela Universidade Portucalense – UPT em parceria com o Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública –CECGP. São Luis – MA, Brasil. Correio eletrônico: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, José Henrique Mesquita. Delação premiada e prisão preventiva na operação Lava-Jato.: Eficientismo penal e midiatismo jurídico. E agora, quem poderá nos defender?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5902, 29 ago. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75460. Acesso em: 2 nov. 2024.

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