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Inversão do ônus da prova no processo civil que envolve relação de consumo

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1. Inversão do ônus da prova no Direito do Consumidor

Nas palavras de José Afonso da Silva (2006, p. 92), os princípios constitucionais representam “ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas”. O referido autor, ao citar Gomes Canotilho e Vital Moreira, prossegue na sua lição afirmando que os princípios jurídicos são:

[...] ‘núcleos de condensações’ nos quais confluem valores e bens constitucionais”. [...] os princípios, que começam por ser a base de normas jurídicas, podem estar positivamente incorporados, transformando-se em normas-princípio e constituindo preceitos básicos da organização constitucional.

Sob tal perspectiva, pode-se afirmar que os princípios da dignidade da pessoa humana (CR, artigo 1º, III), da solidariedade social (CR, artigo 3º, I) e da isonomia (CR, artigo 5º, caput) são preceitos básicos do fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, que representa uma etapa do processo de transição do modelo de Estado liberal para o Estado social, por alterar o conteúdo, a natureza e a finalidade dos institutos centrais do direito privado.

Nessa toada, como bem observa Uadi Lammêgo Bulos (2009, p. 513), a elaboração do Código de Defesa do Consumidor se deu com o propósito de conferir efetividade aos postulados constitucionais, mediante proteção legal específica:

Com o advento do Código de Defesa do Consumidor, implementou-se o desígnio constitucional de se extirparem os danos causados aos consumidores.

A vida moderna das sociedades de massas, nas quais o ter substitui, quase sempre, o ser, em que a preocupação preponderante é o lucro, a riqueza, o aumento do patrimônio, as relações consumeristas tinham de ter condigna tutela legislativa, como aliás, obteve.

Assim, em razão da necessidade de assegurar proteção ao consumidor, considerando a sua posição desfavorável na relação de consumo, foi editada a Lei nº 8.078/1990, que reconhece expressamente, através do inciso I do seu artigo 4º, a vulnerabilidade do consumidor.

       

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:             (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)

I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; (grifo nosso)

Ao comentar a regra acima citada, Flávio Tartuce (2014, p. 31-32) ensina que:

Pela leitura do art. 4º, inc. I, do CDC é constatada a clara intenção do legislador em dotar o consumidor, em todas as situações, da condição de vulnerável na relação jurídica de consumo. De acordo com a realidade da sociedade de consumo, não há como afastar tal posição desfavorável, principalmente se forem levadas em conta as revoluções pelas quais passaram as relações jurídicas e comerciais nas últimas décadas. [...] Diante da vulnerabilidade patente dos consumidores, surgiu a necessidade de elaboração de uma lei protetiva própria, caso da nossa Lei 8.078/1990.

A vulnerabilidade, portanto, é uma característica inerente à condição de destinatário final do produto ou do serviço e poderá ser de natureza econômica, técnica, jurídica, dentre outras. Desse modo, a vulnerabilidade corresponde a um fenômeno de direito material, sendo todo consumidor vulnerável, em virtude de disposição legal, considerando a sua fragilidade na relação de consumo.

Segundo o melhor entendimento, a vulnerabilidade do consumidor decorre de presunção absoluta (iure et de iure), não admitindo prova em contrário. A propósito, cumpre citar o julgamento do Recurso Cível 71000533554[6], pela Terceira Turma Recursal Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que reconheceu, no ano de 2004, a vulnerabilidade absoluta de consumidor de plano de telefonia móvel, em razão da falta de conhecimento técnico-científico sobre o serviço contratado.

1.1 Pressupostos para a inversão do ônus da prova

Enfrentado o conceito de vulnerabilidade, cabe analisar os pressupostos legais para a inversão ope judicis do ônus da prova a favor do consumidor, previstos no inciso VIII do artigo 6º do CDC: i) a verossimilhança da alegação; ii) a hipossuficiência do consumidor.

A verossimilhança corresponde à plausibilidade das alegações, ou seja, é a probabilidade de serem verdadeiros os fatos narrados pelo consumidor. Na lição de Rizzato Nunes (2008, p. 774), a narrativa do consumidor deverá ser convincente, de modo que o juiz, após ter contato com os argumentos da parte contrária, possa aceitar os fatos como verossímeis:

É necessário que da narrativa decorra verossimilhança tal que naquele momento da leitura se possa aferir, desde logo, forte conteúdo persuasivo. E, já que se trata de medida extrema, deve o juiz aguardar a peça de defesa para verificar o grau de verossimilhança na relação com os elementos trazidos pela contestação. E é essa a teleologia da norma, uma vez que o final da proposição a reforça, ao estabelecer que a base são “as regras ordinárias de experiência”. Ou, em outros termos, terá o magistrado de se servir dos elementos apresentados na composição do que usualmente é aceito como verossímil.

A respeito do tema, vem a calhar o julgamento proferido pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 49.124 / RS[7], realizado no ano de 1994, com destaque para o voto do Relator, Ministro Ruy Rosado de Aguiar, que entendeu pela possibilidade em se determinar que um banco apresentasse cópia do contrato de financiamento objeto do processo, diante da verossimilhança dos fatos alegados pelo consumidor:

Penso, portanto, que essas novas exigências éticas feitas para a regulação do tráfico comercial e que se estendem para todos os ramos do Direito, inclusive para o campo processual, devem orientar o comportamento das partes. Não se trata de simples preceito moral, porque a sua exigibilidade decorre da eficácia mediata da Constituição da República, pela teoria da “Drittewirkung”, segundo a qual as regras asseguradoras dos direitos fundamentais do cidadão estabelecem enunciados que devem regular não apenas suas relações com o Estado, mas orientam todo o campo da autonomia privada, sobre o qual igualmente incidem.

Portanto, aplicando a regra sobre a inversão do ônus da prova pela verossimilhança da alegação do autor (o contrato existe e está arquivado) e pela maior facilidade de o Banco apresentar cópia do contrato, concluo pelo acerto da decisão que denegou o seguimento do recurso especial. (grifo nosso)

A hipossuficiência, por sua vez, é um conceito fático (e não jurídico), baseado em uma disparidade verificada no caso concreto, ou seja: corresponde a um fenômeno de direito processual, fundado na presunção relativa de fragilidade do consumidor, que poderá ser fática, técnica ou informacional, o que não se confunde com a situação de pobreza ou de falta de recursos materiais do consumidor, como esclarece Flávio Tartuce (2014, p. 35):

Desse modo, o conceito de hipossuficiência vai além do sentido literal das expressões pobre ou sem recursos, aplicáveis nos casos de concessão dos benefícios da justiça gratuita, no campo processual. O conceito de hipossuficiência consumerista é mais amplo, devendo ser apreciado pelo aplicador do direito caso a caso, no sentido de reconhecer a disparidade técnica ou informacional, diante de uma situação de desconhecimento, conforme reconhece a melhor doutrina e jurisprudência.

No mesmo sentido é a lição de Rizzato Nunes (2008, p. 775), para quem a hipossuficiência relaciona-se à ideia de desconhecimento técnico e informacional a respeito das características, das propriedades e do funcionamento dos produtos ou serviços, o que não guarda relação com a condição econômica do consumidor:

Por isso, o reconhecimento da hipossuficiência do consumidor para fins de inversão do ônus da prova não pode ser visto como forma de proteção do ao mais “pobre”. Ou, em outras palavras, não é por ser “pobre” que deve ser beneficiado com a inversão do ônus da prova, até porque a questão da produção é processual, e a condição econômica do consumidor diz respeito ao direito material.

Para auxiliar na compreensão da hipossuficiência do consumidor, e considerando, sobretudo, tratar-se de um conceito processual, a ser examinado em cada caso concreto, serão comentadas algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), de modo a verificar a evolução da jurisprudência ao longo dos anos.

Inicialmente, pode ser citado o Recurso Especial 81.101 / PR[8], julgado no ano de 1999 pela Terceira Turma do STJ, que decidiu pelo cabimento da inversão do ônus da prova, em razão da hipossuficiência técnica do consumidor, em uma ação de indenização por dano estético decorrente de cirurgia plástica embelezadora.

Em 2001, no julgamento do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 196.922 / MG[9], a Terceira Turma do STJ entendeu que o consumidor de automóvel não está obrigado a identificar os defeitos que ocasionaram o mau funcionamento do veículo, pois tal obrigação é do vendedor.

No julgamento do Recurso Especial 915.599 / SP[10], no ano de 2008, o mesmo órgão julgador reconheceu que o consumidor é tecnicamente hipossuficiente para provar a ocorrência de saques indevidos de numerário depositado em sua conta poupança, merecendo destaque trecho do voto da Ministra Nacy Andrigui, Relatora do caso:

Registre-se, ainda, que a hipossuficiência a que faz remissão o referido inciso VIII deve ser analisada não apenas sob o prisma econômico e social, mas, sobretudo, quanto ao aspecto da produção de prova técnica. Considerando as próprias “regras ordinárias de experiências” mencionadas no CDC, conclui-se que a chamada hipossuficiência técnica do consumidor, nas hipóteses de ações que versem sobre a realização de saques não autorizados em contas bancárias, dificilmente poderá ser afastada, tendo em vista, principalmente, o total desconhecimento, por parte do cidadão médio, dos mecanismos de segurança utilizados pela instituição financeira no controle de seus procedimentos e ainda das possíveis formas de superação dessas barreiras a eventuais fraudes. (grifo nosso)

Portanto, em uma demanda judicial, estando presente um dos requisitos legais – verossimilhança das alegações do consumidor ou a sua hipossuficiência –, deverá o juiz determinar a inversão do ônus da prova, de modo a assegurar ao consumidor os direitos básicos à efetiva prevenção e reparação de danos, à proteção jurídica e à facilitação da defesa de seus direitos.

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Contudo, deve ser frisado que, nessas hipóteses, a inversão do ônus da prova não é automática, por não ser obrigatória. De início, portanto, prevalece a regra geral a respeito do encargo probatório, segundo a qual caberá ao consumidor, na condição de autor, comprovar os fatos que fundamentam a sua pretensão.

Assim ensina Fabrício Bolzan (2014, p. 255):

Com efeito, numa eventual lide envolvendo relação de consumo, permanece, a princípio, a regra do Código de Processo Civil, isto é, caberá ao consumidor-autor comprovar os fatos constitutivos do seu direito. No entanto, como forma de facilitar a sua defesa em juízo, prevê o CDC a possibilidade da inversão do ônus da prova, a critério do juiz, desde que presente um desses dois requisitos: verossimilhança das alegações do consumidor ou hipossuficiência do consumidor.

Nesse sentido, decidiu a Terceira Turma do STJ, em 2002, através do julgamento do Recurso Especial 241.831 / RJ[11], que a inversão do ônus da prova baseada no inciso VIII do artigo 6º do CDC “não é obrigatória, mas regra de julgamento, ope judicis, desde que o consumidor seja hipossuficiente ou seja verossímil sua alegação”.

Também cumpre mencionar o Recurso Especial 909.653 / RS[12], julgado no ano de 2008, quando a Segunda Turma do STJ decidiu que a aplicação da regra de inversão do onus probandi não é automática, pois depende da circunstância concreta apurada pelo magistrado.

Em 2010, a Terceira Turma do STJ negou provimento ao Recurso Especial 1.021.261 / RS[13], entendendo ser incabível a inversão do ônus da prova no caso concreto, por ausência de verossimilhança e de hipossuficiência (econômica, técnica ou jurídica) por parte do consumidor, mostrando-se esclarecedor o voto da Relatora, Ministra Nancy Andrighi:

No que diz respeito à inversão do ônus da prova, ainda que se repute que se trata de regra de julgamento, como sustenta o recorrente, a inversão tem lugar apenas nas hipóteses em que seja necessário fazê-lo, para a solução da lide. E essa necessidade se apura mediante um critério de verossimilhança ou de hipossuficiênica (art. 6º, VIII, do CDC).

No processo em julgamento, não há, nem uma coisa, nem outra. [...]. Não há, portanto, verossimilhança.

A hipossuficiência, por sua vez, também não se verifica, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista técnico ou jurídico. A matéria em discussão - compra de um automóvel de luxo - já afasta por si só qualquer discussão quanto à hipossuficiência econômica. A hipossuficiência técnica, por sua vez, que também pode ser abordada sob o ponto de vista do acesso à informação, converge para a matéria tratada acima, quando se falou da verossimilhança: não é razoável supor que alguém que já possui um automóvel de luxo e que pretende trocá-lo por outro, com alto dispêndio financeiro, não se informe ao menos quanto aos modelos disponíveis. Por fim, no que diz respeito à hipossuficiência jurídica, extrai-se do acórdão recorrido que “o autor, que não se qualifica na inicial, certamente é pessoa de instrução superior, pois adquiriu o veículo mediante consórcio da AJURIS”.

Não há, portanto, por qualquer ótica que se analise a questão, motivo algum para reforma do que restou decidido. A negativa de inversão do ônus da prova restou bem colocada. (grifo nosso)

Por fim, para encerrar a análise do presente tópico, é importante ressalvar que a inversão do ônus da prova poderá se dar tanto nas ações individuais como nas ações coletivas, porquanto os legitimados para a defesa dos direitos transindividuais[14] são substitutos processuais dos consumidores, isto é, atuam em nome próprio na defesa de interesses titularizados pela coletividade de consumidores, com vistas à concretização da garantia fundamental insculpida no inciso XXXII do artigo 5º da Constituição da República.

Tal entendimento é defendido, dentre outros doutrinadores, por Ronaldo Alves de Andrade (2006, p. 513), que se posiciona deste modo:

A inversão do ônus da prova no âmbito das relações de consumo, pode ser declarada nas ações individuais e nas ações coletivas, não havendo qualquer disposição legal que a impeça. Por isso, não concordamos com o posicionamento defendido por Cândido Dinamarco no sentido de não ser cabível a inversão quando o autor for o Ministério Público, por não ser ele hipossuficiente. É de ser lembrado que o Ministério Público é mero substituto processual, pois a autora é a massa de consumidores. (grifo nosso)

A propósito, podem ser citados dois acórdãos do ano de 2011, nos quais o Superior Tribunal de Justiça se manifestou sobre a questão, endossando a tese ora examinada.

Através do julgamento, do Recurso Especial 1.253.672 / RS[15], a Segunda Turma do STJ entendeu que “o Ministério Público, no âmbito de ação consumerista, faz jus à inversão do ônus da prova”, considerando que a regra do inciso VIII do artigo 6º do CDC tem por fim concretizar a tutela processual dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos dos consumidores, não importando quem figure como autor ou réu na respectiva ação judicial.

No mesmo sentido se deu o julgamento do Recurso Especial 951.785 / RS[16], proferido pela Quarta Turma do STJ, sob a relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, que, em seu voto, tratou do assunto sob o viés da ampla facilitação da defesa dos direitos dos consumidores:

[...] A inversão do ônus da prova em benefício do consumidor, prevista no art. 6º, inciso VIII, do CDC, insere-se no ordenamento jurídico como instrumento vocacionado à realização da própria opção constitucional da proteção ao consumidor pelo Estado (art. 5º, inciso XXXII, CF/88), em cuja positivação infraconstitucional hospeda-se a máxima da "facilitação da defesa de seus direitos".

Por outro lado, não é menos verdade que a tutela de direitos coletivos revela-se também como mecanismo profícuo aos objetivos a que se propôs o constituinte originário e o legislador infraconstitucional, de asseguração da menor onerosidade na defesa dos interesses do consumidor.

Nesse passo, por força do art. 21 da Lei n.º 7.347/85, é de se considerar, seguramente, que o Capítulo II do Título III do CDC e a Lei das Ações Civis Públicas formam, em conjunto, um microssistema próprio do processo coletivo de defesa dos direitos do consumidor, devendo ser, portanto, interpretados sistematicamente.

Com efeito, os mecanismos de proteção do consumidor e de facilitação de sua defesa devem ser analisados de forma ampla, de modo que sejam estendidos também às ações coletivas e não somente à ação individual proposta pelo próprio consumidor.

Deveras, "a defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas" - a qual deverá sempre ser facilitada, por exemplo, com a inversão do ônus da prova - "poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo" (art. 81 do CDC).

[...] É bem de ver que o próprio Código de Defesa usa o termo "consumidor" de forma plurívoca, ora se referindo ao indivíduo, ora se referindo a uma coletividade de indivíduos, ainda que indetermináveis, como é o caso do art. 29, ao apregoar que se equiparam a consumidores "todas as pessoas determináveis ou não" expostas às práticas previstas nos capítulos V e VI.

Nesse passo, o termo "consumidor", previsto no art. 6º do CDC, não pode ser entendido simplesmente como a "parte processual", senão como "parte material" da relação jurídica extraprocessual, vale dizer, a parte envolvida na relação jurídica de direito material consumerista, na verdade o destinatário do propósito protetivo da norma.

E, por essa ótica, a inversão do ônus probatório continua a ser, ainda que em ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público, instrumento benfazejo à facilitação da defesa dessa coletividade de indivíduos a que o Código chamou "consumidor" [...]. (grifo nosso)

1.2 Momento de inversão do ônus da prova

Não há consenso acerca do momento ideal para que o magistrado decida pela inversão do ônus da prova a favor do consumidor. Por não existir norma legal específica disciplinando a questão, é possível encontrar diferentes posicionamentos na doutrina e na jurisprudência, que ora entendem tratar-se de regra de julgamento, e ora tratar-se de regra de instrução processual.

Felipe Peixoto Braga Netto (2014, p. 411) entende que a inversão do encargo probatório é regra de julgamento, podendo o magistrado aplicá-la na sentença ou em qualquer fase do procedimento:

[...] para os que perfilham o entendimento de que se trata de regra de julgamento, o juiz estaria livre para inverter o ônus da prova a qualquer momento processual, até mesmo na sentença. O CDC, na verdade, não fixa limite para que a inversão se dê. Cremos nesse sentido, que a inversão do ônus da prova é regra de julgamento.

Para Cecília Matos Sustovich (1993, p. 236-237), a inversão do onus probandi também constitui técnica de julgamento a ser aplicada na decisão do processo, que pode ser determinada, “se e quando o julgador estiver em dúvida”, depois do oferecimento da prova e da sua valoração pelo juiz:

A prova destina-se a formar a convicção do julgador, que pode estabelecer com o objeto do conhecimento uma relação de certeza ou de dúvida. Diante das dificuldades próprias de reconstrução histórica, contenta-se o magistrado em alcançar não a verdade absoluta, mas a probabilidade máxima; a dúvida conduziria o julgador ao estado de non liquet, caso não fosse elaborada uma teoria de distribuição do ônus da prova.

[...]

A inversão do ônus da prova é direito de facilitação da defesa e não pode ser determinada senão após o oferecimento e valorização da prova, se e quando o julgador estiver em dúvida. É indispensável caso forme sua convicção, nada impedindo que o juiz alerte, na decisão saneadora que, uma vez em dúvida, se utilizará das regras de experiência a favor do consumidor. Cada parte deverá nortear sua atividade probatória de acordo com o interesse em oferecer as provas que embasam seu direito. Se não agir assim, assumirá o risco de sofrer a desvantagem de sua própria inércia, com a incidência das regras de experiência a favor do consumidor. (grifo nosso)

Essa tese prevaleceu na Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), conforme evidenciado pelo julgamento do Recurso Especial 422.778 / SP[17], no ano de 2007, com destaque para o voto-vista da Ministra Nancy Andrigui (Relatora para o acórdão), segundo o qual a inversão do ônus da prova no momento do julgamento da causa não ofende as garantias constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa:

[...] quanto ao momento da aplicação da regra de inversão do ônus da prova, o Prof. Kazuo Watanabe defende que essa inversão se deva dar no “julgamento da causa”, sob o fundamento de que "as regras de distribuição do ônus da prova são regras de juízo e orientam o juiz, quando há um 'non liquet' em matéria de fato, a respeito da solução a ser dada à causa" (op. cit., p. 735); concluindo que "somente após a instrução do feito, no momento da valoração das provas, estará ao juiz habilitado a afirmar se existe ou não situação de 'non liquet', sendo caso ou não, conseqüentemente, de inversão do ônus da prova. Dizê-lo em momento anterior será o mesmo que proceder ao prejulgamento da causa, o que é de todo inadmissível" (op. cit., p. 736).

[...]

Portanto, estou convicta de que não houve violação ao art. 6.°, VIII, do CDC, porquanto o Tribunal a quo aplicou-o corretamente no julgamento da apelação, diante do reconhecimento da verossimilhança das alegações do consumidor [...].

Em sentido oposto, no julgamento do Recurso Especial 881.651 / BA[18], também realizado em 2007, a Quarta Turma do STJ decidiu que a inversão do ônus da prova deve se dar antes do fim da instrução processual, sendo inadmissível a aplicação de tal regra no momento de proferir a sentença. Destarte, a decisão anulou o processo originário desde o julgamento de primeiro grau, determinando o retorno dos autos à origem para a reabertura da fase probatória.

Para José Geraldo Brito Filomeno (2005, p. 373), a inversão do encargo probatório deve ser decretada no início da demanda, de modo a não surpreender o réu, que terá a oportunidade de produzir provas contra as alegações do autor:

Temos para nós que a solução mais adequada no que tange ao momento da decretação do ônus da prova será initio litis, até para que o réu não seja surpreendido caso isso se desse ao ensejo do despacho saneador, quando se determina que as partes especifiquem as provas, ou, o que é muito pior, quando da conclusão dos autos para sentença, quando o magistrado da causa tem dúvidas, ou então teria de julgar a ação improcedente por ausência de provas.

Na ação movida pelo Ministério Público de Osasco, por exemplo, em decorrência do tristemente célebre acidente ocorrido no “Plaza Shopping Center” daquela localidade, em que mais de quatro dezenas de pessoas morreram, e centenas ficaram feridas ou perderam bens materiais (Processo nº 1.959/96, 5ª Vara Cível da Comarca de Osasco), o Juízo agiu dessa forma, o que permitiu aos responsáveis que pudessem produzir prova contra a alegação ao órgão ministerial autor, no sentido de que a explosão lá ocorrida se deveu a um vazamento de gás, em face de má instalação de seus dutos, circunstância essa, contudo, que não se verificou, porque flagrante seu nexo causal com os danos pessoais e materiais ocorridos.

Rizzato Nunes (2008, p. 778), por sua vez, entende que o momento compreendido entre a petição inicial e a decisão de saneamento é a fase processual mais adequada para a decisão sobre a inversão do ônus da prova, evitando assim que as partes sejam surpreendidas:

Então, novamente o raciocínio é de singela lógica: é preciso que o juiz se manifeste no processo para saber se a hipossuficiência foi reconhecida.

E, já que assim é, o momento processual mais adequado para a decisão sobre a inversão do ônus da prova é o situado entre o pedido inicial e o saneador. Na maior parte dos casos a fase processual posterior à contestação e na qual se prepara fase instrutória, indo até o saneador, ou neste, será o melhor momento.

Segundo Roberta Densa (2012, p. 42), a inversão do ônus da prova deve ser decretada pelo juiz em momento processual anterior à sentença, “para que o fornecedor tenha a oportunidade de fazer a prova em juízo, em absoluto respeito ao princípio do devido processo legal consagrado na Constituição Federal”.

Diante de tal divergência, em 2011, a Segunda Seção do STJ unificou a sua jurisprudência, decidindo, através do julgamento do Recurso Especial 802.832 / MG[19], que a inversão ope judicis do ônus da prova, por influenciar no comportamento processual das partes, não pode ser determinada na fase de julgamento da causa, seja pelo juiz ou pelo tribunal de segunda instância, devendo ocorrer na fase de saneamento do processo, preferencialmente, ou ao menos de modo a oportunizar a apresentação de provas pela parte que suportará o encargo probatório.

A respeito dessa relevante decisão, é válido transcrever um trecho do voto do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Relator do caso:

Assim, a inversão ope judicis do ônus da prova deve ocorrer preferencialmente no despacho saneador, ocasião em que o juiz “decidirá as questões processuais pendentes e determinará as provas a serem produzidas, designando audiência de instrução e julgamento” (art. 331, §§ 2º e 3º, do CPC).

Desse modo, confere-se maior certeza às partes acerca dos seus encargos processuais, evitando-se a insegurança.

Com estas considerações, pedindo vênia aos eminentes Colegas que perfilham orientação contrária, esposo o entendimento sufragado pela Quarta Turma deste Tribunal (v.g¸ REsp 881.651/BA e REsp 720.930/RS, QUARTA TURMA), votando por negar provimento ao recurso especial para manter o acórdão que desconstituiu a sentença que determinara, nela própria, a inversão do ônus da prova.

Deverão os autos retornar ao juízo de primeiro grau para que, mantido o seu entendimento acerca da necessidade de inversão do ônus da prova, reabra a oportunidade para indicação de provas e realize a fase de instrução do processo.

Em síntese, nego provimento ao recurso especial.

É o voto. (grifo nosso)

Por fim, cumpre ressaltar que a necessidade ou não da inversão do ônus da prova deve ser feita pelas instâncias ordinárias, por pressupor a análise, de acordo com as regras ordinárias da experiência, da verossimilhança dos fatos narrados pelo consumidor e da sua condição de hipossuficiente no caso concreto, o que demanda exame fático-probatório dos autos e é incabível na instância especial.

Nesse sentido, podem ser citadas decisões da Quarta Turma do STJ, tais como o Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 1.406.869 / RS[20], julgado em 2011, e o Agravo Regimental nos Embargos de Declaração no Agravo em Recurso Especial 655.042 / SC[21], julgado em 2015.

1.3 Inversão do ônus da prova e responsabilidade pelas custas processuais

A decisão judicial que inverte o ônus da prova a favor do consumidor (com base na verossimilhança das suas alegações ou em sua hipossuficiência) não possui a força de obrigar a parte contrária a arcar com as custas da prova requerida pelo consumidor, ainda que este seja beneficiário de assistência judiciária gratuita.

Esse entendimento foi adotado pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, no ano de 2009, no julgamento do Recurso Especial 1.063.639 / MS[22], sob a relatoria do Ministro Castro Meira, que em seu voto assim se manifestou:

A recorrente se insurge contra a decisão do Tribunal a quo no sentido de que, a despeito do disposto nos arts. 19 e 33 do CPC, mesmo que a perícia tenha sido provocada pela autora, os honorários do perito devem ser atribuídos à empresa ré, face à condição de vulnerabilidade e de hipossuficiência técnica do consumidor.

Merece guarida a insurgência da recorrente, pois o acórdão recorrido dissentiu do entendimento preconizado nesta Corte.

Com efeito, em casos como o dos autos, tem-se decidido que o deferimento da inversão do ônus da prova não tem o condão de obrigar o fornecedor a custear a prova requerida pelo consumidor.

[...]

O fato de a autora, ora recorrida, ser beneficiária da assistência judiciária gratuita não modifica o desfecho do presente julgamento, pois, consoante já se decidiu, a inversão do ônus da prova não gera a obrigação de custear as despesas com a perícia. (grifo nosso)

Desse modo, a inversão do ônus da prova não gera a obrigatoriedade de, por exemplo, o fornecedor do produto ou do serviço suportar as despesas da realização de uma perícia. Entretanto, caso o fornecedor não queira arcar com o encargo econômico da prova, assumirá as consequências da não realização da perícia, a serem sopesadas quando do julgamento da demanda, ou então deverá comprovar as suas alegações por outro meio probatório em direito admitido.

Nesse diapasão, já decidiu a Quarta Turma do STJ, em 2011, através do Agravo Regimental na Medida Cautelar 17.695 / PR[23], com destaque para trecho do voto da Relatora, Ministra Maria Isabel Gallotti:

São, pois, diversas as questões decididas. No primeiro agravo de instrumento rejeitou-se a pretensão, deduzida em ação cautelar de produção antecipada de prova, de obrigar o réu a custear a perícia requerida pelo autor. No agravo ora em questão se cuida da própria ação principal de indenização, na qual foi decidido que haveria inversão do ônus da prova. Logo, a Fiat não é obrigada a custear a perícia, mas se não o fizer poderá vir a sofrer as consequências desta omissão, caso o conjunto probatório não permita a conclusão pela improcedência do pedido sem a prova questionada. Caberá a ela custear a perícia ou defender-se de outra forma, produzindo outros tipos de prova, e assumindo o risco da avaliação judicial a respeito das consequências de sua inação, em face da análise das provas colhidas ao final da instrução.  

[...]

Fica evidente, dessa forma, que somente a Fiat pode atuar para a redução dos custos da perícia, fornecendo os documentos necessários à realização da perícia que estão em seu poder, com a consequente redução dos custos do trabalho, tendo a oportunidade, com isso, de demonstrar serem inverídicas as alegações do autor, para quem, de outra parte, é impossível acessar dados que estão em poder da montadora.

Portanto, em uma demanda judicial que tenha como objeto uma relação de consumo, quando for deferida a inversão do ônus da prova a favor do consumidor e houver a necessidade de realização de perícia, caberá ao fornecedor uma das três opções a seguir apontadas:

i) Suportar as custas da perícia, a despeito de não estar obrigado;

ii) Não suportar as custas da perícia, mas arcar com as eventuais consequências desta omissão;

iii) Fundamentar a sua defesa mediante a produção de outros tipos de prova.

De acordo com Rizzato Nunes (2008, p. 779), tal sistemática serve para tornar efetiva a regra de inversão do ônus da prova, que restaria esvaziada caso o ônus econômico não fosse transferido para a parte responsável por suportar o ônus probatório:

Uma vez determinada a inversão, o ônus econômico da produção da prova tem de ser da parte sobre a qual recai o ônus processual. Caso contrário, estar-se-ia dando com uma mão e tirando com a outra.

Se a norma prevê que o ônus da prova pode ser invertido, então automaticamente vai junto para a outra parte a obrigação de proporcionar os meios para sua produção, sob pena de – obviamente – arcar com o ônus de sua não produção.

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Sobre o autor
João Daniel Correia de Oliveira

Analista Judiciário, Área Judiciária. Especialização em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, PUC Minas (2022). Especialização em Direito Constitucional Aplicado pela Faculdade Legale, FALEG (2021). Especialização em Direito Público Aplicado pelo Centro Universitário UNA em parceria com a Escola Brasileira de Direito, EBRADI (2019). Especialização em Direito Processual Civil pelo Instituto Damásio de Direito da Faculdade IBMEC São Paulo (2019). Especialização em Direito Civil pela Universidade Anhanguera - UNIDERP (2017). Graduação em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, UESB (2011).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, João Daniel Correia. Inversão do ônus da prova no processo civil que envolve relação de consumo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5902, 29 ago. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75913. Acesso em: 26 abr. 2024.

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