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Inversão do ônus da prova no processo civil que envolve relação de consumo

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2. Redistribuição do ônus da prova no Código de Processo Civil

O Direito contemporâneo tem como uma das suas características o fenômeno de constitucionalização do Direito Processual, que pode ser compreendido sob duas dimensões: i) a incorporação de normas processuais pelos textos constitucionais; ii) o exame das normas processuais infraconstitucionais como instrumentos voltados à concretização das disposições constitucionais.

Nesse sentido, vejamos a lição de Fredie Didier Jr. (2015, p. 46-47):

Primeiramente, há a incorporação aos textos constitucionais de normas processuais, inclusive como direitos fundamentais. Praticamente todas as constituições ocidentais posteriores à Segunda Grande Guerra consagram expressamente direitos fundamentais processuais. Os tratados internacionais de direitos humanos também o fazem (Convenção Europeia de Direitos do Homem e o Pacto de São José da Costa Rica são dois exemplos paradigmáticos). Os principais exemplos são o direito fundamental ao processo devido e todos os seus corolários (contraditório, juiz natural, proibição de prova ilícita etc.) [...].

De outro lado, a doutrina passa a examinar as normas processuais infraconstitucionais como concretizadoras das disposições constitucionais, valendo-se, para tanto, do repertório teórico desenvolvido pelos constitucionalistas. Intensifica-se cada vez mais o diálogo entre processualistas e constitucionalistas, com avanços de parte a parte. O aprimoramento da jurisdição constitucional, em cujo processo se permite a intervenção do amicus curiae [...] e a realização de audiências públicas, talvez seja o exemplo mais conhecido.

A influência da constitucionalização do Direito Processual pode ser vislumbrada na Exposição de Motivos apresentada pela Comissão de Juristas responsável pela elaboração do Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil (2010, p. 21), segundo a qual o sistema processual deve propiciar “à sociedade o reconhecimento e a realização dos direitos, ameaçados ou violados, que têm cada um dos jurisdicionados”, para que assim possa se harmonizar com as “garantias constitucionais de um Estado Democrático de Direito”.

Por sua vez, o Código de Processo Civil (CPC) – Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 –, em seu artigo 1º, assevera que:

Art. 1º O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código.

Ao examinar o referido dispositivo, que condiciona a compreensão de todas as normas processuais aos preceitos da Constituição, Fredie Didier Jr. (2015, p. 47) esclarece que:

O artigo enuncia a norma elementar de um sistema constitucional: as normas jurídicas derivam da Constituição e devem estar em conformidade com ela. Essa norma decorre do sistema de controle de constitucionalidade estabelecido pela Constituição Federal.

Embora se trate de uma obviedade, é pedagógico e oportuno o alerta de que as normas de direito processual civil não podem ser compreendidas sem o confronto com o texto constitucional, sobretudo no caso brasileiro, que possui um vasto sistema de normas constitucionais processuais, todas orbitando em torno do princípio do devido processo legal, também de natureza constitucional.

Ele é claramente uma tomada de posição do legislador no sentido de reconhecimento da força normativa da Constituição.

E isso não é pouca coisa.

Sob tal premissa, o CPC prevê a redistribuição do ônus da prova como um instrumento de tutela dos direitos fundamentais, considerando que a atividade jurisdicional não se resume à função de julgar, mas compreende a ideia de pacificação de litígios com justiça, na realização de um processo democrático, como bem explana Humberto Theodoro Júnior (2017, p. 918-919):

Justamente em direção oposta ao “garantismo”, o instituto da carga dinâmica da prova ressalta as características do processo democrático sob uma perspectiva cooperacionista e publicística, prestigiada pela “compreensão do processo como instrumento de tutela dos direitos fundamentais”. Ao juiz, nessa concepção constitucional, atribui-se “um papel mais importante na direção do processo, conferindo-lhe uma soma de poderes bastante ampla, na busca da verdade”, de sorte a reconhecer-lhe a função não apenas de julgar, mas de pacificar os litígios “com justiça”. E para que tal objetivo se torne realizável, o direito processual civil de nosso tempo torna dever de todos os sujeitos processuais, principalmente partes e juiz, o de colaborar efetivamente para o atingimento desse escopo.

Delimitado o panorama inicial – a redistribuição do ônus da prova como um instrumento do processo civil contemporâneo – faz-se necessária, contudo, antes de adentrar no tema principal deste capítulo, uma breve digressão acerca do objeto da prova, dos seus destinatários, e dos critérios para a sua valoração, o que será feito nos tópicos seguintes.

2.1 Objeto da prova e seus destinatários

As Ordenações Filipinas do Século XVII, que exerceram considerável influência no ordenamento jurídico brasileiro, determinavam, no Título LXIII do seu Livro III, que os julgadores decidissem com base na verdade provada e sabida através dos processos:

Para que se abbreviem as demandas com guarda do direito e justiça das partes, mandamos que os julgadores julguem, e determinem os feitos segundo a verdade, que pelos processos for provada e sabida, ou per confissão da parte, não julgando mais do pedido pelo autor [...]. (sic)

Na atualidade, a noção de prova continua estreitamente relacionada ao descobrimento da verdade, como pode se extrair do conceito cunhado por Alexandre Freitas Câmara (2017, p. 227), que define a prova como “todo elemento trazido ao processo para contribuir com a formação do convencimento do juiz a respeito da veracidade das alegações concernentes aos fatos da causa”.

A propósito, o artigo 378 do Código de Processo Civil (CPC) é claro ao determinar que “[n]inguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade”, mostrando-se, assim, pertinente a definição de prova como elemento voltado à demonstração da verdade de fatos alegados em ações judicias, segundo Ronaldo Alves de Andrade (2006, p. 510):

Em resumo, podemos dizer que prova é qualquer elemento material ou imaterial que se preste a provar algum fato que fundamenta o pedido colocado em demanda judicial. A finalidade da prova é demonstrar a veracidade dos fatos alegados pelas partes. Essa verdade pode ser real ou formal, ou seja, aquilo que ficar demonstrado no processo.

Para instrumentalizar as garantias constitucionais[24] fundamentais do acesso à justiça, do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório e da proibição das provas ilícitas, o CPC estabelece que:

Art. 369.  As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz.

Destarte, o artigo 369 do Código de Processo Civil de 2015 prevê expressamente o princípio da atipicidade dos meios de prova (já constante do Código de 1973[25]), em conformidade com a garantia constitucional ao contraditório, admitindo todos os meios de prova, estejam ou não previstos na legislação, contanto que sejam moralmente legítimos.

Na lição de Antonio Carlos de Araújo Cintra, Cândido Rangel Dinamarco e Ada Pellegrini Grinover (2004, p. 349), a “prova constitui, pois, o instrumento por meio do qual se forma a convicção do juiz a respeito da ocorrência ou inocorrência dos fatos controvertidos no processo”.

Nesse sentido, a prova terá como objeto a formação da convicção do julgador sobre fatos controvertidos, porquanto, nos termos do artigo 374 do CPC, “[n]ão dependem de prova os fatos: I - notórios; II - afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária; III - admitidos no processo como incontroversos; IV - em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade”.

Portanto, considerando que a prova possibilita o convencimento do juiz, é inegável que este é o seu destinatário direto, cabendo ao magistrado “de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito”, indeferindo “em decisão fundamentada, as diligências inúteis ou meramente protelatórias” (CPC, artigo 370).

Por sua vez, as partes e os demais interessados são os destinatários indiretos das provas produzidas em um processo. Tal entendimento, condizente com o princípio da cooperação, segundo o qual “os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva” (CPC, artigo 6º) é manifestado pelo Enunciado 50 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, nos seguintes termos:

(art. 369; art. 370, caput) Os destinatários da prova são aqueles que dela poderão fazer uso, sejam juízes, partes ou demais interessados, não sendo a única função influir eficazmente na convicção do juiz. (Grupo: Direito Probatório)[26]

2.2 Critérios de apreciação da prova

A respeito da apreciação da prova pelo julgador, faz-se necessário, a título de contextualização, mencionar a existência de três critérios (tradicionalmente apontados pela doutrina) já adotados pelo Direito Processual Civil: i) prova legal; ii) íntima convicção; iii)  livre convencimento motivado.

 Pelo critério da prova legal, o valor a ser atribuído a cada meio de prova é fixado previamente pela lei. Apesar de ultrapassado e, em regra, não ser aplicado no ordenamento jurídico brasileiro, é possível ver exemplos desse critério no que tange à obrigatoriedade da prova escrita em determinadas hipóteses, conforme o artigo 444 do Código de Processo Civil de 2015[27] e o artigo 646 do Código Civil de 2002[28].

O critério da íntima convicção, por sua vez, permite o julgamento do processo com base na total liberdade do juiz para avaliar as provas, que decide de acordo com a sua consciência (secundum conscientiam) e nem sequer precisa fundamentar a sua decisão.

Não há nenhuma hipótese de aplicação desse critério no processo civil brasileiro, haja vista a sua manifesta obsolescência; contudo, de maneira mitigada, é possível ver a sua influência no Tribunal do Júri, considerando que os jurados, nos termos do Código de Processo Penal, decidem de acordo com a sua “consciência e os ditames da justiça” [29].

Já pelo critério do livre convencimento motivado (ou persuasão racional), o magistrado firma livremente o seu convencimento, porém dentro de critérios racionais que devem ser indicados na decisão. Esse sistema foi adotado expressamente pelo artigo 131 do Código de Processo Civil de 1973:

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Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que Ihe formaram o convencimento. (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973)

Ao discorrer sobre o livre convencimento do julgador, José Frederico Marques (2003, p. 495) explica que:

Primeiramente, só existem para o juiz os fatos e provas constantes do processo: quod non est in actis, non est in mundo. Não lhe é permitido, portanto, invocar fatos e acontecimentos (salvo se notórios) de que tenha ciência fora dos autos, nem tampouco decidir por íntima convicção.

A regra imperante, como postulado básico do processo civil brasileiro, é a de que o juiz a tudo decidirá com livre convicção, tendo por base a prova dos autos.

No entanto, com a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, não se mostra adequado o critério do “livre” convencimento motivado, que confere ao juiz certo grau de discricionariedade, sendo, portanto, incompatível com o Estado Democrático de Direito.

 Por isso, o artigo 371 do atual Código rompe com a antiga sistemática ao estabelecer que o juiz “apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento”.

Ademais, ao estabelecer um contraditório dinâmico, que veda a prolação de “decisão surpresa”, o CPC determina que o magistrado não poderá julgar “com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício” (artigo 10).

Desse modo, é possível afirmar que o critério atual a ser aplicado no processo civil é o da valoração democrática da prova, através do qual o juiz fundamenta as razões do seu convencimento de maneira discursiva, “construindo em contraditório seu conhecimento a respeito dos fatos da causa”, como ensina Alexandre Freitas Câmara (2017, p. 234-235):

Incumbe ao juiz, ao proferir a decisão, apresentar uma valoração discursiva da prova, justificando seu convencimento acerca da veracidade das alegações, e indicando os motivos pelos quais acolhe ou rejeita cada elemento do conjunto probatório.

[..]

Pois incumbe ao juiz, ao proferir decisão de mérito, indicar os fundamentos pelos quais justifica seu convencimento, formando através da análise das provas produzidas no processo, construindo em contraditório seu conhecimento a respeito dos fatos da causa. É o que se pode chamar de valoração democrática da prova. Exige-se, pois, uma fundamentação que demonstre, discursivamente, como o juiz chegou às suas conclusões acerca da apreciação da prova, a fim de se demonstrar que a decisão proferida é a decisão correta para o caso concreto em exame, sem que isto resulte de discricionariedade ou voluntarismo judicial.

2.3 Distribuição dinâmica do ônus da prova

A distribuição do ônus da prova relaciona-se à ideia de que, em um processo, as partes possuem o encargo de provar as suas alegações, de modo a criar no juiz a convicção necessária para um julgamento favorável ao seu pedido.

Ao tratar sobre o ônus probatório a ser suportado pelas partes de uma ação judicial, Cândido Rangel Dinamarco (2005, p. 247-248) chama a atenção para o fato de que a atividade probatória é de suma importância para o desfecho da lide, vez que poderá conduzir ao acolhimento ou à rejeição da pretensão levada a juízo:

Depois, é de suma importância o ônus da prova, que também varia de intensidade conforme a natureza do litígio e consequente maior ou menor disponibilidade das faculdades e chances processuais. Onde mais se sente o princípio dispositivo, mais presente está o peso desse ônus e as consequências praticamente causativas da omissão da prova, no sentido de que, para o juiz, “fato não provado é fato inexistente” (regra de julgamento) e, uma vez finda a instrução, as afirmações, omissões e negativas referentes aos fatos de relevância para o julgamento serão interpretadas e confrontadas à luz do resultado da experiência probatória. O direito à prova é de primeira importância para a efetividade da garantia constitucional da ação e da defesa e, correlativamente, o seu não-exercício, nos casos de maior disponibilidade e na medida da disponibilidade do direito substancial em cada caso, conduz a consequências mais graves quanto ao resultado substancial do processo. (grifo nosso)

Segundo Humberto Theodoro Júnior (2017, p. 903-904), a regulamentação do ônus da prova está ligada ao princípio da cooperação, ao processo democrático e à busca pela verdade, para o alcance de uma prestação jurisdicional efetiva e justa:

A regulamentação do ônus da prova é parcela importante do sistema democrático de prestação jurisdicional, baseado no princípio da cooperação, que preconiza a efetiva participação de todos os sujeitos do processo na formação do provimento judicial (NCPC, art. 6º). A busca da verdade, porque sem ela não se logra a justa composição do litígio, assume a qualidade de dever de todos os participantes do processo democrático que aspira à qualificação de processo justo. A norma distribuidora da carga probatória, portanto, atua na promoção e estímulo de um maior diálogo e cooperação, sempre direcionada a alcançar uma prestação jurisdicional efetiva e justa.

Com clareza, Antonio Carlos de Araújo Cintra, Cândido Rangel Dinamarco e Ada Pellegrini Grinover (2004, p. 351) ensinam que:

A distribuição do ônus da prova repousa principalmente na premissa de que, visando à vitória na causa, cabe à parte desenvolver perante o juiz e ao longo do procedimento uma atividade capaz de criar em seu espírito a convicção de julgar favoravelmente. O juiz deve julgar secundum allegata et probata partium e não secundum propriam suam conscientiam – e daí o encargo, que as partes têm no processo, não só de alegar, como também de provar (encargo = ônus).

Portanto, considerando que ônus é sinônimo de encargo, oportuno ressalvar, por outro lado, que os conceitos de ônus, dever e obrigação não se confundem, conforme esclarece William Santos Ferreira (WAMBIER, 2016, p. 1127):

Ônus difere do dever em que não há escolha e sua inobservância leva a uma sanção. Também não se confunde com a obrigação, em que a realização de um ato, que beneficia outrem, caso não seja realizado, admite a sua exigibilidade.

Quanto à distribuição do encargo probatório, esta poderá se dar de maneira estática (fixa) ou dinâmica, como bem esclarece Luiz Guilherme Marinoni (2015, p. 395):

No plano da atribuição do ônus da prova, pode-se ter uma distribuição fixa do ônus da prova ou uma distribuição dinâmica. A atribuição fixa do ônus da prova ocorre quando a legislação desde logo afirma, a priori e abstratamente, a quem cumpre provar determinada espécie de alegação. É o que está no art. 373, caput, CPC. De outro lado, o ônus da prova pode ser atribuído de maneira dinâmica, a partir do caso concreto pelo juiz da causa, a fim de atender à paridade de armas entre os litigantes e às especificidades do direito material afirmado em juízo, tal como ocorre na previsão do art. 373, § 1º, CPC.

A distribuição estática (ou fixa) ocorre quando a lei previamente determina quem deverá provar determinada alegação, tal como se depreende do caput do artigo 373 do CPC, segundo o qual “[o] ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor”.

É possível afirmar que a distribuição estática do ônus da prova, que é a regra geral a ser observada, corresponde, sobretudo, a uma técnica de julgamento do processo, capaz de evitar o non liquet, isto é, que o juiz deixe de proferir julgamento por ausência de provas.

De outra banda, há a distribuição dinâmica do ônus da prova, que possui previsão expressa no CPC (artigo 373, § 1º) e é aplicada pelo julgador, a depender das características apresentadas pela demanda, com o objetivo de assegurar a igualdade entre as partes, conferindo-lhes paridade de armas, e funcionando como um estímulo ao esclarecimento das questões fáticas controvertidas, em auxílio à busca pela justiça no caso concreto.

Vale frisar que a distribuição dinâmica do onus probandi se apresenta em harmonia com o artigo 7º do CPC, que garante a isonomia substancial no processo, porquanto tal dispositivo assegura “às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais”.

Alexandre Freitas Câmara (2017, p. 14) explica que a garantia de conferir às partes de uma demanda paridade de armas, decorrente do princípio da isonomia, tem na distribuição dinâmica do ônus da prova uma de suas manifestações:

A paridade de armas garantida pelo princípio da isonomia implica dizer que no processo deve haver equilíbrio de forças entre as partes, de modo a evitar que uma delas se sagre vencedora no processo por ser mais forte do que a outra. Assim, no caso de partes que tenham forças equilibradas, deve o tratamento a elas dispensado ser igual. De ouro lado, porem, partes desequilibradas não podem ser tratadas igualmente, exigindo-se um tratamento diferenciado como forma de equilibrar as forças entre elas. É isso que justifica, por exemplo, a concessão do benefício da gratuidade de justiça aos que não podem arcar com o custo do processo (arts. 98 e seguintes); a distribuição dinâmica do ônus da prova nos casos em que haja dificuldade excessiva, impossibilidade de sua produção ou maior facilidade na obtenção da prova do fato contrário (art. 373, § 1º); do benefício do prazo em dobro para os entes públicos (art. 183) etc. (grifo nosso)

A distribuição dinâmica do encargo probatório corresponde a uma técnica de instrução, que conta com previsão legal expressa no Código de Processo Civil:

Art. 373 [...]

§ 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.

§ 2º A decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.

A leitura dos dispositivos acima transcritos revela, inicialmente, a existência de três pressupostos para a aplicação da regra de distribuição dinâmica, quais sejam: i) a decisão deverá ser fundamentada; ii) o momento processual para a decisão deverá ser adequado; iii) a decisão não poderá implicar em prova diabólica reversa.    

i) A necessária fundamentação da decisão que redistribui o ônus da prova decorre da necessária motivação de toda decisão judicial, prevista no inciso IX do artigo 93 da Constituição da República[30], bem como no caput do artigo 11 do Código de Processo Civil, segundo o qual “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”. 

Acerca dessa questão, William Santos Ferreira (WAMBIER, 2016, p. 1135) afirma que a distribuição dinâmica não permite que o magistrado julgue baseado em impressões ou em sua sensibilidade:

Do mesmo modo, o escopo da distribuição dinâmica não pode autorizar julgamentos por impressões, sensibilidade sem prova, mas sim, excepcionalmente e presentes os requisitos legais, distribuir diferentemente quebrando conforto preestabelecido que é a distribuição estática e levando aquele que efetivamente esteja em melhores condições em relação ao fato probando para colaborar, pois do contrário o non liquet lhe atingiria.

Assim, cada fato a ser provado deve ser especificado pelo julgador, com a demonstração das razões que justificam a dinamização do encargo probatório, não se admitindo decisões genéricas, pois tal medida, notadamente excepcional, há de ser utilizada apenas residualmente, com moderação.

ii) Quanto ao momento da redistribuição, o juiz poderá escolher qualquer fase processual antes do julgamento, contanto que possibilite à parte se desincumbir do ônus da prova. Isso porque o CPC, ao prever a aplicação de um contraditório dinâmico, veda, sob pena de nulidade, a prolação de decisão surpresa, nos termos do seu artigo 10:

Art. 10.  O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

No entanto, é inegável que a decisão de saneamento e de organização do processo se apresenta como o momento mais oportuno para a distribuição do ônus da prova, devendo o juiz, caso a demanda se mostre complexa do ponto de vista fático ou jurídico, “designar audiência para que o saneamento seja feito em cooperação com as partes, oportunidade em que o juiz, se for o caso, convidará as partes a integrar ou esclarecer suas alegações” (CPC, artigo 357, III, c/c § 3º).  

iii) A redistribuição do onus probandi não poderá impor à parte a produção de prova diabólica reversa, o que se verifica quando a “desincumbência do encargo pela parte” é “impossível ou excessivamente difícil” (CPC, artigo 373, § 2º), sob pena de negar as garantias constitucionais de acesso à jurisdição, devido processo legal, contraditório e ampla defesa (CR, artigo 5º, XXXV, LIV e LV).

Sobre essa questão, Fredie Didier Jr. (2016, p. 141), citando o posicionamento de Eduardo Cambi, exemplifica que a inversão do ônus da prova a favor do consumidor, de modo amplo e indeterminado, a respeito de todas as alegações que o favorecem, impõe ao fornecedor uma prova “negativa absoluta ou indefinida” o que corresponde a uma prova diabólica:

[...] o juiz, ao inverter o ônus da prova, deve fazê-lo sobre fato ou fatos específicos, referindo-se a eles expressamente; deve evitar a inversão do onus probandi para todos os fatos que beneficiam ao consumidor, de forma ampla e indeterminada, pois acabaria colocando sobre o fornecedor o encargo de provar negativa absoluta ou indefinida, o que é imposição diabólica.

Por fim, quanto à possibilidade de impugnar a distribuição dinâmica do ônus da prova feita pelo juiz, caberá agravo de instrumento em face da decisão interlocutória que versar sobre a redistribuição do ônus da prova, conforme previsão do inciso XI do artigo 1.015 do CPC.

Em tais hipóteses, segundo o Enunciado 72 da I Jornada de Direito Processual Civil, promovida em 2017 pelo Conselho da Justiça Federal, será “admissível a interposição de agravo de instrumento tanto para a decisão interlocutória que rejeita a inversão do ônus da prova, como para a que a defere”.

2.4 Entendimento jurisprudencial

Mesmo antes da entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, o Superior Tribunal de Justiça, com base em interpretação sistemática da legislação e em garantias constitucionais, já admitia a aplicação da distribuição dinâmica do ônus da prova.

Como exemplo desse entendimento, pode ser citado o julgamento do Recurso Especial 1.286.704 / SP[31], julgado em 2013 pela Terceira Turma do STJ, merecendo citação parte do voto da Ministra Nancy Andrigui:

[...] Mesmo que a prova não incumbisse exclusivamente às rés, pode-se falar, no mínimo, em distribuição dinâmica do ônus da prova, que tem por fundamento a probatio diabolica, isto é, a prova de difícil ou impossível realização para uma das partes, e que se presta a contornar a teoria de carga estática da prova, adotada pelo art. 333 do CPC, que nem sempre decompõe da melhor forma o onus probandi, por assentar-se em regras rígidas e objetivas. Com base na teoria da distribuição dinâmica, o ônus da prova recai sobre quem tiver melhores condições de produzi-la, conforme as circunstâncias fáticas de cada caso.

[...] Embora não tenha sido expressamente contemplada no CPC, uma interpretação sistemática da nossa legislação processual, inclusive em bases constitucionais, confere ampla legitimidade à aplicação dessa teoria, levando-se em consideração, sobretudo, os princípios da isonomia (arts. 5º, caput, da CF, e 125, I, do CPC), do devido processo legal (art. 5º, XIV, da CF), do acesso à justiça (art, 5º XXXV, da CF) e da solidariedade (art. 339 do CPC), bem como os poderes instrutórios do Juiz (art. 355 do CPC). (grifo nosso)

No ano de 2016 (já após o início da vigência do atual CPC), o mesmo órgão julgador entendeu, através do julgamento do Recurso Especial 1.560.728 / MG[32], pela possibilidade da inversão do ônus da prova nas demandas propostas por condomínios contra construtoras/incorporadoras de imóveis, em defesa dos interesses de condôminos, seja com base no artigo 6º, inciso VIII, do CDC, ou com fundamento na teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova tratada pelo artigo 373, § 1º, do CPC.

Ainda em 2016, a Segunda Turma do STJ deu provimento ao Recurso Especial 1.605.703 / SP[33], entendendo ser cabível a distribuição dinâmica do ônus da prova para uma concessionária de serviço público suportar o encargo de comprovar a ocorrência de fraude no medidor de energia elétrica, considerando que a empresa dispõe dos devidos meios para comprovar tal alegação.

A respeito do mencionado julgamento, é válida a leitura de trecho do voto do Ministro Herman Benjamin, Relator do caso:  

Por outro lado, uma vez negado o fato que se alega, o sistema aceito excepcionalmente é o da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, na qual o dever será atribuído a quem puder suportá-lo, retirando o peso da carga da prova de quem se encontra em evidente debilidade de suportar o ônus. Portanto, a distribuição será a posteriori, segundo a razoabilidade, de tal maneira que se evite a diabolização da prova - aquela entendida como impossível ou excessivamente difícil de ser produzida - como a prova de fato negativo.

[...]

Sendo assim, a regra geral é a de que, negada a existência do fato, o onus probandi passa a ser de quem alega. Ora, na hipótese dos autos ganha relevo o elemento temporal, pois a relação aqui analisada é de trato sucessivo, tendo a concessionária todo o histórico de consumo ao longo do tempo. Já dispõe, portanto, de um elemento de controle para, na medida do possível, buscar determinar a data de uma possível fraude, a fim de evitar a sua continuidade.

Isso é de vital importância para que não se transmude um fato possivelmente determinável no tempo em indeterminável, o que afastaria a incidência da carga dinâmica da prova, na medida em que retira da parte a possibilidade de sua produção, pelo decurso do tempo, tornando-a verdadeira prova diabólica.

Frise-se que a empresa concessionária, além de todos os dados estatísticos acerca do regular consumo, ainda dispõe de seu corpo funcional, que mês a mês verifica e inspeciona os equipamentos. É seu dever provar que houve fraude no medidor. (grifo nosso)

No ano de 2017, a Terceira Turma do STJ negou provimento ao Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial 906.083 / RJ[34], concluindo pela inviabilidade de ser proceder à revisão de dispositivos do Código de Defesa do Consumidor para analisar eventuais requisitos autorizadores da distribuição dinâmica do ônus da prova, em razão de tal análise demandar a reapreciação do conjunto fático-probatório do processo, o que é vedado na instância especial, por força do Enunciado nº 7 da Súmula do STJ[35].

A Quarta Turma do STJ, também em 2017, deu provimento ao Recurso Especial 1.201.672 / MS[36], decidindo, entre outras matérias, pela distribuição dinâmica do ônus da prova em razão da hipossuficiência do consumidor frente a uma instituição financeira administradora de cartão de crédito, merecendo destaque trecho do voto do Relator do caso, Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador convocado do Tribunal Regional Federal da 5ª Região):

Tal conclusão não destoa da jurisprudência desta Corte de Justiça, segundo a qual, embora, em regra, o ônus da prova incumba a quem alega a existência do direito ou do fato impeditivo, modificativo ou extintivo desse direito, há casos em que o julgador, interpretando sistematicamente a legislação processual, verifica que o referido ônus deve recair sobre aquele que tem melhores condições de produzir a prova, aplicando, com isso, a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova. Foi o que ocorreu no caso dos autos, em que a relação jurídica era estabelecida entre o consumidor que contratou cartão de crédito e a instituição financeira, de maneira que o primeiro, inevitavelmente, encontrava-se em situação de hipossuficiência e o segundo, autor da ação de cobrança, possuía maiores condições de trazer o contrato aos autos, até mesmo para embasar a cobrança da taxa de juros remuneratórios contratada. (grifo nosso)

No ano de 2018, a Segunda Turma do STJ, através do julgamento do Agravo Interno no Recurso Especial 1.708.006 / TO[37], concluiu que o juiz, por ser o destinatário das provas, tem a incumbência de determinar a produção dos meios probatórios que entender necessários para a formação do seu convencimento, com base no artigo 370 do CPC, podendo, inclusive, determinar a distribuição dinâmica do ônus da prova, prevista no artigo 373 do CPC.

Nesse mesmo ano, a Terceira Turma do STJ negou provimento ao Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial 1.293.126 / DF[38], decidindo que “não há preclusão consumativa quando a parte deixa de interpor recurso contra a decisão que inverte o ônus da prova em seu favor”, por inexistir sucumbência em tal hipótese, independentemente da fundamentação adotada no julgamento, seja com base no CDC (artigo 6º, VIII) ou no CPC (artigo 373, § 1º).  

Ademais, o referido aresto enfatizou que não há que se falar em preclusão pro judicato em matéria probatória quando surge, no mesmo processo, por provocação da parte recorrente, um novo provimento jurisdicional do tribunal ad quem a respeito da inversão do ônus da prova.

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Sobre o autor
João Daniel Correia de Oliveira

Analista Judiciário, Área Judiciária. Especialização em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, PUC Minas (2022). Especialização em Direito Constitucional Aplicado pela Faculdade Legale, FALEG (2021). Especialização em Direito Público Aplicado pelo Centro Universitário UNA em parceria com a Escola Brasileira de Direito, EBRADI (2019). Especialização em Direito Processual Civil pelo Instituto Damásio de Direito da Faculdade IBMEC São Paulo (2019). Especialização em Direito Civil pela Universidade Anhanguera - UNIDERP (2017). Graduação em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, UESB (2011).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, João Daniel Correia. Inversão do ônus da prova no processo civil que envolve relação de consumo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5902, 29 ago. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75913. Acesso em: 5 nov. 2024.

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