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Inversão do ônus da prova no processo civil que envolve relação de consumo

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Conclusão

Na parte inicial do presente trabalho, foi desenvolvida uma abordagem acerca da inversão do ônus da prova no Direito do Consumidor, desde os pressupostos legais e o momento processual para a inversão ope judicis do ônus da prova, até a responsabilidade pelo pagamento das custas processuais em decorrência da referida inversão, sendo possível apontar como principais conclusões sobre os pontos abordados:

i) Em uma demanda judicial, estando presente a verossimilhança das alegações do consumidor ou a sua hipossuficiência, deverá o juiz determinar a inversão do ônus da prova a favor do consumidor, assegurando-lhe os direitos básicos à efetiva prevenção e reparação de danos, à proteção jurídica e à facilitação da defesa de seus direitos.

ii) A inversão ope judicis do ônus da prova não pode ser determinada no julgamento da causa, e sim na fase de saneamento do processo, ou ao menos em um momento que possibilite a apresentação de provas pelo fornecedor, que suportará o encargo probatório.

iii) A inversão do ônus da prova não obriga o fornecedor a suportar o ônus econômico da produção das provas requeridas pelo consumidor. No entanto, caso não arque com as custas, o fornecedor assumirá as consequências da sua omissão, a serem avaliadas quando do julgamento da causa, ou então deverá fundamentar a sua defesa em outros meios de prova.

Na segunda parte do trabalho, foram tratadas as regras de redistribuição do ônus da prova constantes do CPC, mediante: uma análise sobre o objeto da prova e os seus destinatários na relação processual; a contextualização sobre os critérios de apreciação da prova no Direito Processual Civil; e, por fim, uma pesquisa sobre a visão do tema segundo a jurisprudência recente.

Podem ser apontadas as seguintes conclusões:

i) A prova tem como objeto a formação da convicção do juiz sobre fatos controvertidos, sendo este o seu destinatário direto, ao passo que as partes e os demais interessados são os destinatários indiretos da prova.

ii) O atual critério a ser aplicado no processo civil é o da valoração democrática da prova, segundo o qual o juiz, aplicando o contraditório dinâmico, constrói o seu conhecimento sobre os fatos da causa, fundamentando as razões do seu convencimento de maneira discursiva.

iii) A distribuição dinâmica do ônus da prova, a depender das características apresentadas pela demanda, será aplicada pelo juiz com vistas a: assegurar a igualdade entre as partes, conferindo-lhes paridade de armas (isonomia substancial); e estimular o esclarecimento de questões fáticas controvertidas, em auxílio à busca pela justiça no caso concreto (busca da verdade), em conformidade com o princípio da cooperação e com um processo democrático voltado ao alcance de uma prestação jurisdicional efetiva e justa.

iv) A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, com base em interpretação sistemática do ordenamento jurídico, admite a inversão do ônus da prova no processo civil que envolve relação de consumo, seja com base nas regras do Código de Processo Civil ou nas regras do Código de Defesa do Consumidor, determinando que o onus probandi recaia sobre quem tiver melhores condições de produzir a prova, conforme as circunstâncias fáticas de cada caso.

Apontadas as conclusões acima, faz-se necessário verificar a solução para o problema apresentado no presente trabalho, isto é: se o parágrafo 2º do artigo 373 do CPC poderá ser invocado em uma ação judicial, para um fornecedor de produtos ou serviços impugnar o pedido de inversão do ônus da prova em favor do consumidor, por alegar que eventual decisão nesse sentido tornaria impossível ou excessivamente difícil a desincumbência do encargo probatório por parte do fornecedor.

Segundo Eliana Calmon (2000, p. 13), o Código de Defesa do Consumidor é uma lei condizente com o patamar de cidadania almejado pela sociedade, pois se harmoniza com os princípios da boa-fé, da lealdade, da cooperação, do equilíbrio e da harmonia das relações:

É imperioso que se conduza a sociedade a um patamar de cidadania, dando a ela condições de acesso aos direitos outorgados.

Ora, na medida em que o Estado deixa livre a contratação, que segue as regras de mercado, é preciso que se tenham presentes as regras éticas de responsabilidade, a fim de que não se volte às iniqüidades já vividas na época do lassez fair lassez passé.

O Código de Defesa do Consumidor é diploma legislativo que já se amolda aos novos postulados, inscritos como princípios éticos, tais como, boa-fé, lealdade, cooperação, equilíbrio e harmonia das relações.

Temos, já na atualidade, o início de uma nova tendência legislativa, em que a preocupação maior é com a harmonia das relações. (grifo nosso)

Para Cândido Rangel Dinamarco (2005, p. 36-38), o Código de Defesa do Consumidor explicita garantias constitucionais, tais como a igualdade substancial, a inafastabilidade do controle jurisdicional, a ampla defesa e o contraditório e o devido processo legal, conduzindo a um processo judicial acessível, ágil, simplificado e aberto à participação efetiva dos sujeitos interessados:

Por isso é que o processo nos Estados ocidentais de hoje, marcados pelo cunho social de legalista, há de oferecer também em si mesmo a garantia da legalidade processual (seria estranho o juiz, órgão estatal, agir com arbítrio no exercício da sua função de controlador da legalidade) e ser dotado de meios aptos a promover a igualdade e garantir a liberdade. A maneira como diante da escala axiológica da sociedade contemporânea são interpretadas as garantias constitucionais de igualdade substancial entre as pessoas (e entre as partes), da inafastabilidade do controle jurisdicional, da ampla defesa e do contraditório, do devido processo legal – todos eles endereçados à efetividade do processo em sua função de instrumento a serviço da ordem constitucional e legal –, conduz à existência de um processo acessível a todos e a todas as suas causas (por mais humildes que sejam aqueles e menor expressão econômica tenham estas), ágil e simplificado, aberto à participação efetiva dos sujeitos interessados e contando com a atenta vigilância do juiz sobre a instrução e sua interferência até ao ponto em que não atinja a própria liberdade dos litigantes. A Lei dos Juizados Especiais e o Código de Defesa do Consumidor são ilustrações desses reflexos processuais das opções sócio-políticas contidas na ordem constitucional: o novo processo que institui (não mero procedimento novo) apresenta um conjunto de ideias que constitui resposta adequada e moderna às exigências contidas nos princípios constitucionais do processo (processo acessível, aberto, gratuito em primeiro grau de jurisdição, ágil simples e concentrado, permeável a um grau elevadíssimo de participação das partes e do juiz). E a Lei da Ação Civil Pública, disciplinando a legitimatio do Ministério Público e associações para demandas de proteção judiciária ao consumidor, patrimônio paisagístico e ambiental, etc., é outro reflexo da ordem constitucional vigente, sensível à relevância sócio-cultural de valores dessa ordem e à necessidade de oferecer efetivas garantias de sua preservação e fruição geral (inafastabilidade do controle jurisdicional em relação aos interesses difusos; v. também art. 129, inc. III). (grifo nosso)

Nesse contexto, o direito à inversão do ônus da prova deve ser compreendido como uma medida voltada à facilitação da defesa do consumidor, capaz de equilibrar a relação processual, considerando a posição de superioridade do fornecedor, que geralmente tem o poderio econômico e, especialmente, domina a tecnologia e as informações acerca da fabricação do produto ou da prestação do serviço e dos seus defeitos.

Sob esse enfoque, vale citar a posicionamento de Humberto Theodoro Júnior (2017, p. 920):

No caso, por exemplo, das relações de consumo, o consumidor (um não profissional) tem sempre dificuldade na demonstração da causa do defeito do produto ou do serviço, enquanto o fornecedor (um profissional) detém todo o conhecimento técnico a respeito da estrutura e do funcionamento do bem ou serviço fornecido. A causa e os efeitos do acidente de consumo não são, objetivamente, indemonstráveis. O consumidor é que não se acha em situação de comprová-los adequadamente.

Contudo, mais uma vez cabe ressalvar que a inversão do ônus da prova jamais será decidida com base no ponto de vista puramente econômico, pois a falta de recursos materiais não é capaz de garantir, por si só, decisão judicial favorável, como bem pontua William Santos Ferreira (WAMBIER, 2016, p. 1132):

A questão exclusivamente econômica não justifica a distribuição dinâmica do ônus da prova, a solução da desigualdade econômica tem mecanismos próprios de reequilíbrio e que se voltam para a assistência jurídica integral garantida constitucionalmente e a ser prestada pelo Estado (art. 5.º, LXXIV, da CF), o que é uma solução pelo instrumento e não pelo momento de julgamento. Hipossuficiência econômica no estado democrático não pode ser franqueadora isolada de decisão de mérito favorável sem prova.

Ademais, a inversão do ônus da prova deverá recair sobre fatos específicos, referindo-se o juiz de maneira expressa, de modo a evitar uma inversão ampla e indeterminada a favor do consumidor, que impõe ao fornecedor uma prova “negativa absoluta ou indefinida, o que é imposição diabólica” (DIDIER JR., 2016, p. 146-147).

Em outras palavras, a inversão do onus probandi jamais poderá ocasionar o enriquecimento sem causa do consumidor, ou qualquer vantagem indevida, mas tão somente possibilitar a obtenção do equilíbrio processual entre as partes, como bem coloca Humberto Theodoro Júnior (2017, p. 923):

O expediente da inversão do ônus da prova tem de ser utilizado com equidade e moderação, dentro da busca de harmonização dos interesses em conflito nas relações de consumo. Dessa maneira, tem de ser visto como “instrumento para a obtenção do equilíbrio processual entre as partes, não tendo por fim causar indevida vantagem, a ponto de se conduzir o consumidor ao enriquecimento sem causa, vedado pelo art. 884 do Código Civil”.

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Por fim, em que pesem todas as similitudes verificadas entre as regras de inversão do ônus da prova a favor do consumidor e a distribuição dinâmica do ônus da prova no processo civil, a conclusão que se impõe é no sentido de que as duas situações são distintas.

Isso porque o CDC trata o tema sob o viés da garantia fundamental da proteção do consumidor, facilitando a defesa dos seus direitos, ao passo que o CPC visa, sobretudo, à cooperação das partes e a busca da verdade, no interesse do processo, conforme se posiciona Bruno Miragem (2016):

Há moderação desta regra de distribuição do ônus da prova no § 2º do artigo 373 do novo CPC, ao dispor que “a decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.” Toma-se clara referência na norma à restrição de que se imponha a qualquer das partes a obrigação de produção da denominada prova diabólica.

O CDC trata do tema desde a perspectiva tutelar do consumidor. Suas normas especiais visam assegurar a efetividade da proteção do consumidor. [...] Pergunta-se então: haveria limitação imposta à inversão do ônus da prova pelo juiz, com fundamento nas regras do novo CPC, que possa tornar inefetiva a tutela dos direitos dos consumidores definidos em lei? Quer parecer que as situações do artigo 373, §2º do CPC/2015, e do artigo 6º, VIII, do CDC, são substancialmente distintas. A limitação à imposição do encargo de produzir prova impossível ou excessivamente difícil relaciona-se com a regra de distribuição pelo juiz no interesse do processo e visando à cooperação das partes com a busca da verdade (artigo 378 do novo CPC). Neste cenário, a impossibilidade ou dificuldade extrema de produção da prova não devem prejudicar a parte, mediante definição de critério para distribuição do ônus da prova. Situação distinta é a de inversão que realiza direito subjetivo de uma das partes, caso daquela que beneficia o consumidor em ações das quais seja parte. No primeiro caso, a distribuição do ônus da prova se dá no interesse do processo, no segundo, no interesse na realização de um direito fundamental de proteção. As situações não parecem se confundir. (grifo nosso)

Portanto, conclui-se que não é possível a aplicação do parágrafo 2º do artigo 373 do Código de Processo Civil em ações judiciais que envolvem relações de consumo, ainda que a inversão do ônus da prova em favor do consumidor torne impossível ou excessivamente difícil a desincumbência do encargo probatório por parte do fornecedor de produtos ou serviços.

Tal impossibilidade se justifica porque a aplicação do mencionado dispositivo legal representaria uma violação à garantia constitucional de defesa do consumidor pelo Estado (CR, artigo 5º, XXXII) e a direitos básicos do consumidor, tais como a efetiva prevenção e reparação de danos, a proteção jurídica e a facilitação da defesa de seus direitos com a inversão do ônus da prova (CDC, artigo 6º, VI, VII e VIII).

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Sobre o autor
João Daniel Correia de Oliveira

Analista Judiciário, Área Judiciária. Especialização em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, PUC Minas (2022). Especialização em Direito Constitucional Aplicado pela Faculdade Legale, FALEG (2021). Especialização em Direito Público Aplicado pelo Centro Universitário UNA em parceria com a Escola Brasileira de Direito, EBRADI (2019). Especialização em Direito Processual Civil pelo Instituto Damásio de Direito da Faculdade IBMEC São Paulo (2019). Especialização em Direito Civil pela Universidade Anhanguera - UNIDERP (2017). Graduação em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, UESB (2011).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, João Daniel Correia. Inversão do ônus da prova no processo civil que envolve relação de consumo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5902, 29 ago. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75913. Acesso em: 24 abr. 2024.

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