Capa da publicação A legítima defesa da honra à luz do STJ: uma tese ultrapassada?
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A legítima defesa da honra: uma tese ultrapassada

14/11/2019 às 11:20
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Acabou o tempo de ver a mulher como um objeto do homem. Acabou o tempo em que a traição de uma mulher justificaria sua morte, com o fim de “lavar com o sangue a própria honra”.

A figura da “legítima defesa da honra” consiste em tese jurídica que visa tornar impune a prática de maridos, irmãos, pais ou ex-companheiros e namorados que matam ou agridem suas esposas, irmãs, filhas, ex-mulheres e namoradas fundada ou “justificada” na defesa da honra da família ou da honra conjugal. Entretanto, frise-se que, no entender de grande parte da doutrina e jurisprudência, não há legislação e jurisprudência da América Latina, honra conjugal ou da família a ser protegida, na medida em que a honra é atributo próprio e personalíssimo, referente a um indivíduo e não a dois ou mais indivíduos.

Roberto Lyra, conhecido, não por acaso, como o “príncipe dos promotores” afirma de forma poética, que:

O verdadeiro passional não mata. O amor é, por natureza e por finalidade, criador, fecundo, solidário, generoso. Ele é cliente das pretorias, das maternidades, dos lares e não dos necrotérios, dos cemitérios, dos manicômios. O amor, o amor mesmo, jamais desceu ao banco dos réus. Para os fins da responsabilidade, a lei considera apenas o momento do crime. E nele o que atua é o ódio. O amor não figura nas cifras da mortalidade e sim nas da natalidade; não tira, põe gente no mundo. Está nos berços e não nos túmulos.

Fala-se na chamada legitima defesa da honra.

Ela aconteceria quando o cônjuge ou namorado(a) traído matasse o(a) parceiro(a) que trai e/ou a pessoa com quem trai. Segundo esse mito, a legítima defesa da honra seria um tipo de legítima defesa e, portanto, faria com que a justiça absolvesse o acusado. A lógica seria que a honra faz parte da pessoa, da mesma forma que a vida ou o corpo, e por isso a pessoa pode matar para protegê-la.

Nosso antigo Código Penal (que vigorou entre 1890 e 1940), previa em seu artigo 27 que se excluía a ilicitude dos atos cometidos por aquelas pessoas que “se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligencia no acto de commetter o crime”. Basicamente ele estava dizendo que não era considerada criminosa a pessoa que cometesse um crime quando estava em um estado emocional alterado. Era esse artigo que alguns juristas usavam para justificar a legítima defesa da honra. Mas reparem que, em nenhum momento, ele está dizendo que a pessoa pode matar o(a) parceiro(a) que está traindo. Isso era interpretação desses juristas.

Todavia, o artigo 28 de nosso atual Código Penal: dita “Não excluem a imputabilidade penal: I - a emoção ou a paixão”. Ele diz justamente o contrário do que dizia a antiga lei. Foi para que não houvesse nenhuma dúvida que o legislador não desejava que os magistrados absolvessem alguém que agiu movido por ciúme ou outras paixões e emoções é que o ele inseriu esse inciso na lei.

Fala-se na expressão honra.

A esse respeito, Maggiore (Derecho Penal, 1972, volume IV, pág. 158) lecionou que a honra é um  estado de dignidade e de estima  que se goza na sociedade por uma conduta irreprovável. Mas dizia que essa honra não poderia ser levada em conta com relação a mulher adúltera e meretriz.

No passado, ainda, Bento de Faria (Anotações teóricas e práticas ao Código penal do Brasil, 1929, volume I, pág. 104) dizia que “o adultério não coloca o marido ofendido em estado de legítima defesa, pois que a morte dada por esse motivo não é repulsa de uma agressão nem meio adequado a reparar o mal”.

No Brasil, Magalhães Noronha (Direito Penal, 1985, volume I, pág. 192) negou  esse tipo de legítima defesa por considerar que a honra é atributo pessoal, individual e próprio.  Basileu Garcia (Instituições de direito penal, volume I, tomo I, pág. 342) admitiu somente reação quanto a honra, “no sentido de pudícia ou pudor”.  Igual lição tem-se em Frederico Marques (Tratado de Direito Penal, volume II, 1965, pág. 115).

No estrangeiro, Himenez de Assúa (El criminalística, tomo IV, 1980, pág.34)  dizia que não existe essa honra conjugal. Essa honra é pessoal.

Voltando ao Brasil, destaco a jurisprudência, no passado, com relação a legítima defesa da honra conjugal: Não era pacífica a jurisprudência, havendo acórdãos, em menor número admitiam a legítima defesa (TJSP, mv – RT 716/413 – duplo homicídio; TACrSP, RJDTACr 16/202 – lesões leves) e outros, em número maior que a negam (TJSP, RJTJSP 71/328, RT 654/275, TJSP, RJ 44/264(RT 655/315, TJMG, RF 273/269) reconhecendo apenas a atenuante do relevante valor moral ou social (TJES, RT 621/345).

Fernando Capez assim ensinou:

“Em princípio, todos os direitos são suscetíveis de legítima defesa, tais como a vida, a liberdade, a integridade física, o patrimônio, a honra etc., bastando que esteja tutelado pela ordem jurídica. Dessa forma, o que se discute não é a possibilidade da legítima defesa da honra e sim a proporcionalidade entre a ofensa e a intensidade da repulsa. Nessa medida, não poderá, por exemplo, o ofendido, em defesa da honra, matar o agressor, ante a manifesta ausência de moderação. No caso de adultério, nada justifica a supressão da vida do cônjuge adúltero, não apenas pela falta de moderação, mas também devido ao fato de que a honra é um atributo de ordem personalíssima, não podendo ser considerada ultrajada por um ato imputável a terceiro, mesmo que este seja a esposa ou o marido do adúltero.” ( CAPEZ, Fernando. Execução Penal – Simplificado: 15ª edição, São Paulo, Saraiva,2013. p. 309-310).

Silvia Pimentel, Juliana Belloque e Valéria Pandjiarjian realizaram um estudo qualitativo de julgados sobre a legítima defesa da honra e encontraram quatro categorias de decisões: “acolhimento da tese de legítima defesa da honra ultrajada por conduta sexual de parceiro com terceiro, não acolhimento por falta de requisitos formais do art. 25 do CP, rejeição absoluta da tese com voto vencido em sentido contrário e rejeição unânime” (Legítima Defesa da Honra: Legislação e Jurisprudência da América Latina. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 50, p. 311, set/2004).

Na matéria já se entendeu:

"HOMICÍDIO SIMPLES – RÉU ABSOLVIDO SOB O ACOLHIMENTO DA LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA.- Não age em legítima defesa da honra o agente que mata sua esposa movido pela suspeita de que a mesma lhe era infiel.- Ausência de fato concreto, atual ou iminente, a justificar os ciúmes do agente da ocisão.- A ofensa simples não tem os contornos de agressão capaz de justificar a reação impiedosa e desmedida do acusado de matar a tiros e facadas a esposa indefesa.- Apelo a que se dá provimento a fim de que, anulado o julgamento, a outro seja submetido o apelado" (RT 655/315-316)."

"HOMICÍDIO – LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA – ACUSADO QUE MATA A ESPOSA ADÚLTERA – RECONHECIMENTO DA EXCLUDENTE ADMISSÍVEL EM TESE – HIPÓTESE, PORÉM, EM QUE AUSENTE O REQUISITO DA ATUALIDADE DA REPULSA – DECISÃO DOS JURADOS RECONHECENDO A CAUSA DE EXCLUSÃO DE ILICITUDE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS – NULIDADE DECRETADA – NOVO JULGAMENTO ORDENADO – DECLARAÇÃO DE VOTO.- É entendimento fortemente arraigado no povo que o adultério da mulher fere a honra do marido. Não há negar que julgados dos tribunais têm admitido a legítima defesa da honra quando o cônjuge ultrajado mata o outro cônjuge ou seu parceiro. De modo que se mostra mais prudente aceitar, em tese, a legítima defesa da honra em tal hipótese e verificar se, no caso concreto, os requisitos legais encontram-se presentes.- Faltando, p. ex., o requisito da atualidade da repulsa, é contrária à prova dos autos a decisão dos jurados que reconhece a causa de exclusão de ilicitude" (RT 660/268)."

O STJ tem, desde 1991, posição com relação a matéria.

A tese de legítima defesa da honra é refutada, com veemência, por esta Corte Superior como fundamento válido à absolvição dos uxoricidas (RESp n. 1517/PR, Rel. Ministro José Candido de Carvalho Filho, 6ª T., DJ 15/4/1991).

Em um processo de duplo homicídio, em que o marido surpreendeu a esposa em adultério e foi absolvido por defesa da honra, proclamou-se que “não há ofensa à honra do marido pelo adultério da esposa, desde que não existe essa honra conjugal. Ela é pessoal, própria de cada um dos cônjuges” e “a lei civil aponta os caminhos da separação e do divórcio. Nada justifica matar a mulher que, ao adulterar, não preservou a sua própria honra”. A decisão do júri foi cassada para determinar novo julgamento (REsp 1517/PR, 6 a. T., j. 11.03.1991, DJU 15.04.1991, p. 4309).

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Ali se disse, naquele julgamento histórico:

"RECURSO ESPECIAL. TRIBUNAL DO JÚRI. DUPLO HOMICÍDIO PRATICADO PELO MARIDO QUE SURPREENDE SUA ESPOSA EM FLAGRANTE ADULTÉRIO. HIPÓTESE EM QUE NÃO SE CONFIGURA LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA. DECISÃO QUE SE ANULA POR MANIFESTA CONTRARIEDADE À PROVA DOS AUTOS (ART. 593, PARÁGRAFO 3º, DO CPP).- Não há ofensa à honra do marido pelo adultério da esposa, desde que não existe essa honra conjugal. Ela é pessoal, própria de cada um dos cônjuges. O marido, que mata sua mulher para conservar um falso crédito, na verdade, age em momento de transtorno mental transitório, de acordo com a lição de Himenez de Asua (El Criminalista, Ed. Zavalia, B. Aires, 1960, T.IV, P.34), desde que não se comprove ato de deliberada vingança.- O adultério não coloca o marido ofendido em estado de legítima defesa, pela sua incompatibilidade com os requisitos do art. 25, do Código Penal.- A prova dos autos conduz à autoria e à materialidade do duplo homicídio (mulher e amante), não à pretendida legitimidade da ação delituosa do marido. A lei civil aponta os caminhos da separação e do divórcio. Nada justifica matar a mulher que, ao adulterar, não preservou a sua própria honra.- Nesta fase do processo, não se há de falar em ofensa à soberania do Júri, desde que os seus veredictos só se tornam invioláveis, quando não há mais possibilidade de apelação. Não é o caso dos autos, submetidos, ainda, à regra do artigo 593, parágrafo 3º, do CPP.- Recurso provido para cassar a decisão do Júri e o acórdão recorrido, para sujeitar o réu a novo julgamento."

Em 2001, o Superior Tribunal de Justiça afastou a legítima defesa da honra por ausência do requisito da atualidade (art. 25 do Código Penal). Neste processo, o réu foi acusado de homicídio qualificado por matar a esposa, de quem estava separado há 30 dias, porque ela se negou à reconciliação quando por ele procurada na residência de seus pais. Curioso é que, absolvido pelo júri, o Tribunal de Justiça do Estado confirmou a decisão salientando não ser “aquela causa excludente desnaturada pelo fato de o casal estar separado, há algum tempo, e porque a vítima não tinha comportamento recatado” (REsp 203632/MS, 6ª T, j. 19.04.2001, DJ 19.12.2002, p. 454). Somente no julgamento do recurso especial a decisão foi revertida. 

Acabou o tempo de ver a mulher como um objeto do homem de forma que a traição justificaria a morte, “a lavar com o sangue a própria  honra”.

Ao rejeitar o recurso especial de um homem denunciado por matar a esposa estrangulada após uma festa, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Rogerio Schietti Cruz, repudiou o argumento da defesa segundo o qual a vítima teria adotado "atitudes repulsivas" e provocativas contra o marido, o que justificaria o reconhecimento de legítima defesa da honra e a absolvição sumária do réu.

"Embora seja livre a tribuna e desimpedido o uso de argumentos defensivos, surpreende saber que ainda se postula, em pleno ano de 2019, a absolvição sumária de quem retira a vida da companheira por, supostamente, ter sua honra ferida pelo comportamento da vítima. Em um país que registrou, em 2018, a quantidade de 1.206 mulheres vítimas de feminicídio, soa no mínimo anacrônico alguém ainda sustentar a possibilidade de que se mate uma mulher em nome da honra do seu consorte", afirmou o ministro.

De acordo com o processo, durante uma festa, a vítima teria dançado e conversado com outro rapaz, o que gerou a ira e despertou os ciúmes do marido, que estaria alcoolizado. Ela também teria dito que queria romper o relacionamento. Em casa, o homem pegou uma corda e laçou o pescoço da mulher, matando-a por asfixia.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A legítima defesa da honra: uma tese ultrapassada . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5979, 14 nov. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/77797. Acesso em: 21 nov. 2024.

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