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A (im)possibilidade do Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN) ser composto por membros estranhos às administrações tributárias

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16/02/2025 às 08:25
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A inclusão de representantes privados no CGSN viola a indelegabilidade da competência tributária? A proposta é constitucional ou afronta o sistema tributário nacional?

1. INTRODUÇÃO

Desde sua inserção no ordenamento jurídico, o regime tributário do Simples Nacional suscita controvérsias país afora, notadamente no âmbito das administrações tributárias municipais, ante a complexidade de suas regras, as quais, ano após ano, vêm sofrendo profundas mutações. Isso torna quase impossível ao exegeta se localizar no emaranhado de artigos, parágrafos e incisos incluídos e renumerados. De constitucionalidade duvidosa, a cada nova alteração o Simples Nacional se transforma em um legítimo frankenstein.

A leitura da Lei Complementar Federal nº 123/2006 mostra que o Congresso Nacional trabalha, intermitentemente, para acolher os lobbies e acomodar novos contribuintes ou espécies de atividades no Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições. Sob o clamor da geração de empregos e renda, o Simples Nacional está se tornando um tatame de vale tudo, onde cada um se esforça para recolher cada vez menos os tributos incidentes sobre as atividades ou operações. A cada nova alteração, um jabuti sobe numa árvore e deixa o fisco atordoado a olhar e sem saber como proceder frente ao solo fértil à evasão fiscal.

Nesse caótico cenário, o ente político que mais sofre é o Município que, cada vez mais, sente a necessidade de assumir o controle da parcela que lhe cabe. Não obstante ocorra o aprisionamento de regras que, em tese, afrontam o princípio da autonomia (art. 34, VII, “c” – CRFB/1988), os Municípios enfrentam, no âmbito do Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN), a ausência de paridade com a União e com os Estados para discutir as regras do imposto de sua competência. Neste ponto, importante observar que o CGSN é vinculado ao Ministério da Economia e atualmente é composto por 4 (quatro) membros oriundos da Secretaria da Receita Federal do Brasil, como representantes da União, 2 (dois) dos Estados e do Distrito Federal e 2 (dois) dos Municípios, conforme previsto no art. 2º, I, da Lei Complementar nº 123/2006.

Referida composição está prestes a sofrer alterações, nos termos do Projeto de Lei Complementar (PLC) nº 147 de 2019, do Senador Jorginho Mello, o qual já foi aprovado pelo Senado Federal e segue tramitando na Câmara Federal.

Nota do Editor: o referido projeto foi convertido na Lei Complementar nº 188, de 31 de dezembro de 2021.

Dentre outras alterações, o aludido projeto visa modificar a composição do Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN) para acrescer dois novos membros, a saber: a) um representante do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae); e b) um representante das confederações nacionais de representação do segmento de micro e pequenas empresas mencionadas no art. 11 da LCF nº 147/2014.

Imperioso observar que os futuros novos integrantes são representações oriundas da iniciativa privada. Neste ponto, urge saber se a referida alteração seria ou não constitucional, face à outorga, à iniciativa privada, de parcela de competência ínsita de uma autoridade tributária, notadamente no que se refere à faculdade de expedir resoluções, disciplinando questões tributárias afetas aos contribuintes e aos fiscos.

O presente arrazoado, com o escopo responder a arguição apresentada, basear-se-á em referências constitucionais, legais e doutrinárias. Espera-se contribuir para aprofundar o debate, visto que se trata de matéria de grande relevância e envolve consolidados institutos de direito tributário.


2. CONSIDERAÇÕES ACERCA DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL E DAS NORMAS GERAIS VEICULADAS EM SEDE DE LEI COMPLEMENTAR

A tributação é a mais pura manifestação do poder soberano do Estado. Ela agride diretamente as liberdades e o patrimônio dos cidadãos. Por isso, a Magna Carta, ao delimitar o universo de tributos a serem instituídos e arrecadados pelos entes estatais, impôs a máxima observância de critérios intrínsecos e extrínsecos de cunho instransponível. O Legislador Constituinte, ao estruturar o Sistema Tributário Nacional (arts. 145 a 162 – CRFB/1988), tratou de definir os tributos que podem ser instituídos e arrecadados pelos entes políticos, assim como positivou as regras a serem observadas, as quais se acham materializadas no texto constitucional sob a rubrica de limitações ao poder de tributar, cujo vetor obsta que o Estado se lance de forma abrupta e violenta à tributação.

É cediço que os tributos definidos no bojo constitucional foram distribuídos entre os entes políticos com a máxima observância ao pacto federativo, cujo vértice possui rigidez de cláusula pétrea. Cabe recordar que a forma federativa diz respeito ao exercício do poder político do Estado, que se dá de forma fragmentada e em diferentes níveis de governo. Ao integrar a Federação Brasileira, cada ente político é empossado de uma parcela do poder soberano do Estado e o exerce com autonomia, na forma definida no bojo constitucional (Art. 18 – CRFB/1988).

Disso resulta que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, na qualidade de integrantes da Federação Brasileira, possuem autonomia para exigir contrapartidas pecuniárias dos cidadãos. Para tanto, devem observar os limites constitucionais, sob pena de aniquilação das exações que impuserem. Embora a autonomia assuma status de princípio, importante realçar que ela não confere à competência tributária dimensão absoluta, ampla ou irrestrita para instituir, arrecadar ou fiscalizar os tributos, pois, como dito, há de se respeitar os contornos constitucionais estabelecidos, especialmente aqueles traçados em sede de normas gerais veiculadas por intermédio das leis complementares.

À luz disso, a competência tributária deve ser interpretada em harmonia com as regras estatuídas a partir do artigo 146, III, da CRFB/1988, a saber:

Art. 146. Cabe à lei complementar:

[...];

III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;

b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;

c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.

d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.

Acerca da importância das leis complementares, Alexandre de Moraes explica que:

[...] a razão da existência da lei complementar consubstancia-se no fato do legislador constituinte ter entendido que determinadas matérias, apesar da evidente importância, não deveriam ser regulamentadas na própria Constituição Federal, sob pena de engessamento de futuras alterações; mas, ao mesmo tempo, não poderiam comportar constantes alterações através do processo legislativo ordinário. (MORAES, 2016, p. 1061).

Em um sistema federativo, como o Brasileiro, é salutar que os entes políticos não fiquem livres para definir seu próprio ordenamento tributário, com institutos e conceitos próprios. Caso fosse possível, estar-se-ia a permitir que cada unidade federativa possuísse um micro sistema tributário e divorciado dos demais. Tal feito colidiria com os postulados do federalismo, cujo vértice impõe a verticalização e a horizontalização das regras e institutos tributários. Eis o motivo pelo qual o legislador constituinte enfatizou que caberia à lei complementar dispor sobre normas gerais em matéria de legislação tributária. Ives Gandra Martins, sobre o referido instrumento legislativo, sustenta que é uma:

[...] garantia de estabilidade do sistema, não permitindo que cinco mil Municípios, vinte e seis Estados e a União tenham sistemas próprios, assim como do pagador de tributos, que na Federação pode livremente viajar ou alterar seu domicílio, à luz dos mesmos princípios gerais que regem o sistema. (MARTINS, 2007, p. 126. apud VELLOSO, 2016, p. 106).

Em fina síntese, as leis complementares que carregam em seu bojo as enunciações gerais não são normas genéricas; elas são, a bem da verdade, normas estruturantes do Sistema Tributário Nacional e determinam o modelo a ser seguido pelos entes políticos quando do exercício da competência tributária. Elas possuem o escopo de dar efetividade aos postulados do princípio da segurança jurídica, presente no Estado Democrático de Direito, status este do qual se reveste a República Federativa do Brasil.

Neste ponto, no artigo 146, III da Constituição Federal, é importante anotar que as alíneas “a” e “b” possuem conteúdos e alcances diferentes das alíneas “c” e “d” do mesmo dispositivo constitucional. Aquelas prescrevem normas que estruturam o Sistema Tributário Nacional, conferindo unicidade aos institutos tributários no território brasileiro. Elas revelam as pedras angulares sobre as quais o legislador constituinte assentou a tributação. Por outro lado, as outras alíneas, por sua vez, dizem respeito a questões menores e se limitam a situações pontuais da relação tributária. Uma versa sobre o adequado tratamento do ato cooperado, para fins da incidência tributária, enquanto a outra prescreve disposições acerca da instituição de um tratamento tributário diferenciando às microempresas e empresas de pequeno porte. Seus conteúdos em nada se assemelham ao das outras alíneas.

Sabidamente, o estatuto que regula as disposições das alíneas “a” e “b” supracitadas é a Lei Federal nº 5.172/1966, que versa a respeito do Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário e é popularmente conhecida como Código Tributário Nacional – CTN. A despeito, cabe aqui trazer à baila excerto do voto condutor do RE nº 562.276/PR, proferido pela Ministra Ellen Gracie, que diz:

As normas gerais são aquelas que orientam o exercício da tributação, sendo passível de aplicação por todos os entes tributantes. O Egrégio Tribunal Regional da 4ª Região, nos autos da AIAC 1998.04.01.020236-0, bem definiu como normas gerais “aquelas que, simultaneamente, estabelecem os princípios, os fundamentos, as diretrizes, os critérios básicos, conformadores das leis que completarão a regência da matéria e que possam ser aplicadas uniformemente em todo o País, indiferentemente de regiões ou localidades”.

O Código Tributário Nacional foi recepcionado pela Constituição de 1988 com nível de lei complementar por trazer normas que cumprem tal função [...], em nada desbordando, pois, do que pretendeu o Constituinte. (STF, 2010).

Infere-se que o CTN é, a bem da verdade, uma lei especial e sua função é disciplinar e harmonizar os institutos próprios do direito tributário, dando sentido harmônico ao ordenamento fiscal e às múltiplas situações fáticas a que pretende reger. Notadamente, possui alcance ou patamares superiores quando comparado com outros leis de igual status, as quais devem ser editadas com observância do seu conteúdo. Suas regras aplicam-se a todos os entes políticos indistintamente, inclusive ao Legislador Infraconstitucional.

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Nessa linha, é defeso ao Legislador Infraconstitucional, mesmo que em sede de outras leis complementares, ainda que de cunho de normal geral, arquitetar construções que coloquem em xeque o sistema tributário. Para tanto, devem ser evitadas disposições que porventura tenham o condão de vergá-lo, deslocando suas raízes ou deformando sua lógica, em homenagem ao que foi pensado para o ordenamento fiscal do País, nos termos positivados no texto constitucional e disciplinados no bojo do CTN.

Em derradeira análise, conclui-se que as disposições contidas no CTN são imperativas e carregam em seu bojo o postulado da segurança jurídica, assegurando a unicidade do pacto federativo, na medida em que uniformizam institutos tributários. Suas normas delimitam os contornos das competências tributárias e estabelecem a lógica a ser observada no curso da relação jurídico-tributária. Seu status é de observância inafastável, posto que vincula os entes federativos e os administrados, eis que orienta o exercício da competência tributária, razão pela qual seu caráter de normal geral não deve ser entendido como sinônimo de norma genérica, de menor expressão jurídica.


3. DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA E SUA INDELEGABILIDADE À INICIATIVA PRIVADA

Entende-se por competência tributária a faculdade que a Constituição Federal conferiu aos entes políticos para instituir, arrecadar e fiscalizar tributos. Trata-se de conceito abrangente e, ante sua envergadura constitucional, deve ser estudado levando-se em conta sua face dicotômica, onde, de um lado, jaz a competência legislativa e, do outro, a capacidade tributária ativa. Embora a doutrina majoritária afirme que competência tributária diz respeito ao poder de legislar, ela também realça que ela não se confunde o poder de arrecadar e fiscalizar os tributos.

Sobre a citada dicotomia, o professor Paulo de Barros Carvalhos acentua:

Uma coisa é poder legislar, desenhando o perfil jurídico de um gravame ou regulando os expedientes necessários à sua finalidade; outra é reunir credencias para integrar a relação jurídica, no tópico de sujeito ativo. O estudo da competência tributária é momento anterior à existência mesmo do tributo, situando-se no plano constitucional. Já a capacidade tributária ativa, que tem como contranota a capacidade tributária passiva, é tema a ser considerado no ensejo do desempenho das competências, quando o legislador elege as pessoas competentes do vínculo abstrato, que se instala no instante em que acontece, no mundo físico, o fato previsto na hipótese normativa. (CARVALHO, 2018, p. 234-235).

No mesmo sentido, Eduardo Marcial Ferreira Jardim sustenta:

Competência tributária e capacidade tributária ativa são conceitos nitidamente distintos, embora inter-relacionados. [...], a competência significa a aptidão de legislar sobre tributos, enquanto a capacidade ativa é a habilitação para administrar tributos. Verdade seja, a pessoa constitucional titular da competência tributária reveste também a condição de titular da capacidade ativa. (JARDIM, 2018, 269).

À luz dessa dicotomia, infere-se que a primeira face da competência tributária versa sobre a prerrogativa legislativa, no sentido de prescrever a regra matriz de incidência tributária, consistindo na faculdade de criar leis com o propósito de instituir, majorar, reduzir, extinguir tributos e tudo mais necessário à relação tributária. A segunda face tange às atribuições exclusivas do Poder Executivo. Refere-se à execução das funções de arrecadar e fiscalizar tributos, assim como de executar leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária. Trata-se de atividade exclusiva do Poder Público e insuscetível de ser exercida pela iniciativa privada.

A propósito, o CTN, como lei complementar destinada a regular as disposições a que alude o artigo 146, III, “a” e “b”, da CRFB/1988, nos seus artigos 6º a 8º regula a competência tributária, porém, no caput do artigo 7º, assevera:

Art. 7º A competência tributária é indelegável, salvo atribuição das funções de arrecadar ou fiscalizar tributos, ou de executar leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária, conferida por uma pessoa jurídica de direito público a outra (...).

Indelegável é o Poder Legiferante – a faculdade de criar leis. Ele deve ser exercido exclusivamente pela pessoa eleita pelo legislador constituinte. Contudo, são delegáveis as prerrogativas exacionais inerentes ao Poder Executivo, desde que destinadas a uma pessoa jurídica de direito público. Resulta dizer que as funções típicas de Estado são insuscetíveis de ser desempenhadas pela iniciativa privada. Sob esta perspectiva, o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, em sede da ADI nº 1.717/DF, assentou:

DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 58. E SEUS PARÁGRAFOS DA LEI FEDERAL Nº 9.649, DE 27.05.1998, QUE TRATAM DOS SERVIÇOS DE FISCALIZAÇÃO DE PROFISSÕES REGULAMENTADAS. 1. [...]. 2. Isso porque a interpretação conjugada dos artigos 5°, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal, leva à conclusão, no sentido da indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas, como ocorre com os dispositivos impugnados. 3. Decisão unânime. (STF, 2002).

Igual entendimento foi externado em sede do julgamento da ADI nº 3.829/RS:

CONSTITUCIONAL. FEDERALISMO E RESPEITO ÀS REGRAS DE DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA. [...]. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DA LEI FEDERAL DE NORMAS GERAIS ANTERIORES À LEI ESTADUAL. LEI FEDERAL SUPERVENIENTE. SUSPENSÃO DA LEI ESTADUAL NO QUE LHE FOR CONTRÁRIA. 1. As regras de distribuição de competências legislativas são alicerces do federalismo e consagram a fórmula de divisão de centros de poder em um Estado de Direito. A análise das competências concorrentes (CF, art. 24) deverá priorizar o fortalecimento das autonomias locais e o respeito às suas diversidades, de modo a assegurar o imprescindível equilíbrio federativo, em consonância com a competência legislativa remanescente prevista no § 1º do artigo 25 da Constituição Federal. [...]. 4. É indelegável a uma entidade privada a “atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir” (ADI 1.717, Rel. Min. SYDNEY SANCHES, DJ de 28/3/2003). 5. Medida Cautelar confirmada. Ação Direta julgada parcialmente procedente para declarar a inconstitucionalidade do art. 2º, caput e parágrafo único, e do art. 3º, caput e parágrafo único, ambos da Lei 12.557/2006 do Estado do Rio Grande do Sul. (STF, 2019).

O corolário indelegabilidade ou delegabilidade parcial da competência tributária se estriba no fato da tributação – conceito abrangente que exprime o poder estatal de estabelecer (instituir) os tributos e que contempla o poder/dever para invadir a liberdade ou o patrimônio dos cidadãos e deles exigir satisfação do quantum estipulado – é signo do poder soberano do Estado, cuja prerrogativa somente por ele pode ser exercida. Isto justifica a mensagem contida no retro citado artigo 7º, impossibilitando a delegação de qualquer parcela à iniciativa privada.

O poder de tributar, como signo da soberania do Estado, somente pode ser exercido por autoridades e nunca por particulares. O Poder Público, no livre exercício da tributação, exerce uma atividade financeira, entendida como o conjunto de atos praticados para obter, gerir e aplicar os recursos financeiros necessários para atingir os fins comuns (MACHADO, 2007, p. 56). Por intermédio dessa atividade, o Estado requer da sociedade os recursos de que necessita para manter as estruturas e desenvolver políticas públicas. É nesse cenário que a Administração Tributária ganha notório destaque, posto que a ela cumpre o mister de buscar o dinheiro necessário à satisfação das necessidades coletivas.

3.1. Considerações acerca da administração tributária

Assenta-se, inicialmente, que inexiste uma precisa definição acerca do conceito de administração tributária. Escassos são os estudos sobre o assunto. Em que pese a aridez doutrinária no sentido de procurar delimitar seu conteúdo e abrangência, o legislador constituinte fez expressa alusão à mesma nos artigos 37, XXVIII e XXII, 52, XV, 149, §1º e 167, V, do Texto Constitucional. Destes, cabe aqui trazer à colação os citados incisos do artigo 37:

Art. 37. [...].

XVIII - a administração fazendária e seus servidores fiscais terão, dentro de suas áreas de competência e jurisdição, precedência sobre os demais setores administrativos, na forma da lei;

[...];

XXII - as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio.

No plano infraconstitucional, a administração tributária possui alguns dos seus contornos definidos nos artigos 194 ao 208 do CTN. Destes, importante destaque deve ser feito ao artigo 194, in verbis:

Art. 194. A legislação tributária, observado o disposto nesta Lei, regulará, em caráter geral, ou especificamente em função da natureza do tributo de que se tratar, a competência e os poderes das autoridades administrativas em matéria de fiscalização da sua aplicação.

Parágrafo único. A legislação a que se refere este artigo aplica-se às pessoas naturais ou jurídicas, contribuintes ou não, inclusive às que gozem de imunidade tributária ou de isenção de caráter pessoal.

Da leitura integrativa do texto constitucional e do Código Tributário Nacional é possível extrair um conceito de administração tributária. Ela pode ser entendida como a atividade estatal voltada à obtenção de recursos financeiros a partir da tributação. De natureza administrativa plenamente vinculada, implica nas funções de arrecadar e fiscalizar tributos, bem como de executar leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária. Dada sua especialização, possui precedência sobre os demais setores administrativos e requer destaque dentro da Administração Pública (Poder Executivo) e a designação de um núcleo (órgão) à execução do seu fim. Seu exercício somente pode se dar por intermédio de servidores de carreiras específicas e revestidos de poderes (competências) para o pleno desempenho do aludido múnus, em cujo exercício personificam ou encarnam o próprio Estado, razão pela qual devem atuar de forma impessoal, com autonomia e independência, vedada qualquer espécie de ingerência.

A administração tributária é uma atividade essencial ao funcionamento do Estado e típica do mesmo. É essencial, na medida em que é vocacionada à busca dos recursos de que necessita o Poder Público, por via do exercício da capacidade tributária ativa. É típica, visto que inerente ao poder estatal e sem correspondência no setor privado, conforme se extrai da redação do artigo 2º da Lei Federal nº 6.185/1974:

Art. 2º Para as atividades inerentes ao Estado como Poder Público sem correspondência no setor privado, compreendidas nas áreas de Segurança Pública, Diplomacia, Tributação, Arrecadação e Fiscalização de Tributos Federais e Contribuições Previdenciárias, Procurador da Fazenda Nacional, Controle Interno, e no Ministério Público, só se nomearão servidores cujos deveres, direitos e obrigações sejam os definidos em Estatuto próprio, na forma do art. 109. da Constituição Federal.

Na qualidade de atividade típica e essencial ao funcionamento do Estado, a administração tributária tange tudo aquilo que de alguma forma diga respeito aos tributos e às relações jurídicas a eles pertinentes. Ela é abrangente e envolve: a) os procedimentos de fiscalização das pessoas tributadas, para verificar o cumprimento das obrigações tributárias (principais ou acessórias); b) a constituição do crédito tributário por via do lançamento tributário e a revisão do mesmo, seja de ofício ou nas instâncias do contencioso administrativo fiscal; c) a cobrança e o controle da arrecadação dos diversos tributos; d) a orientação do contribuinte acerca da legislação tributária, quer em sede de resoluções de consultas ou quer por via da expedição de regulamentos; e, e) quaisquer outras atividades que, direta ou indiretamente, digam respeito à efetivação da receita tributária.

Eis o motivo pelo qual o artigo 194 do CTN determina que a legislação tributária deve regular, em caráter geral ou especificamente, em face da natureza do tributo, a competência e os poderes das autoridades administrativas em matéria de fiscalização da sua aplicação. Vale lembrar que, no direito pátrio, a competência é atributo que somente a lei pode estabelecer, não podendo ser disposta em mero ato infralegal, em homenagem aos postulados do Estado Democrático de Direito, do princípio republicano e do princípio da estrita legalidade presente nos artigos 5º, II e 37, caput, da CRFB/1988.

3.2. Apontamentos sobre o conceito de legislação tributária e do poder regulamentar

Sem maiores delongas, a expressão legislação tributária é abrangente e alcança toda e qualquer espécie de ato normativo, oriundo ou não do Poder Legislativo, que de alguma forma diga respeito aos tributos e às relações jurídicas a eles pertinentes. Tal entendimento se exprime da disposição contida no artigo 96 do CTN, que assim preconiza:

Art. 96. A expressão "legislação tributária" compreende as leis, os tratados e as convenções internacionais, os decretos e as normas complementares que versem, no todo ou em parte, sobre tributos e relações jurídicas a eles pertinentes.

A citada prescrição orienta, ou melhor, elenca as espécies de atos que integram a legislação tributária, não se limitando à lei em sentido estrito, abrangendo “todos os atos normativos, inclusive infralegais, que cuidam de relações jurídicas tributárias” (SEGUNDO, 2017, p. 230). No tocante a isso, para o presente arrazoado cumpre um breve apontamento sobre os atos infralegais, especialmente no tocante àqueles de menor expressão hierárquica, tratados no conceito supra como normas complementares.

É cediço que as leis tributárias, na sua maioria, não têm aplicação imediata, posto que carecedoras de instrumentalização a cargo do Poder Executivo, sobretudo para dar sentido à intenção do legislador quando da produção da regra jurídica. Para tanto, a Administração Pública cria mecanismos para dar efetividade, sentido e alcance à norma posta, viabilizando a aplicabilidade dos mandamentos oriundos do Poder Legiferante.

Segundo a doutrina especializada do direito administrativo, a faculdade instrumental de que está investido o Poder Executivo é expressão do poder regulamentar, cuja prerrogativa confere à Administração Pública a possibilidade de editar atos gerais para complementar as leis. Trata-se de importante mecanismo para que o múnus público seja desempenhado e o interesse público atendido. É preciso realçar que tal faculdade se reveste do atributo de poder-dever, implicando dizer que a Administração não apenas pode como tem a obrigação de exercê-la, sempre que a aplicação da norma careça de aperfeiçoamento.

O poder regulamentar é exclusivo e típico do Poder Executivo, “no qual se afirma competir a ele expedir decretos e regulamentos para fiel execução das leis”, razão pela qual é insuscetível de ser exercido por particular (BARCELOS, 2018, p. 416). Trata-se de prerrogativa que somente pode ser exercida por autoridade regularmente investida do múnus público, cujo status, no Estado Democrático de Direito, se adquire por via dos vetores democráticos, quer por intermédio do sufrágio universal ou quer por via do concurso público, ressalvados aqui os cargos de confiança ou em comissão, de livre nomeação e exoneração, observando que os mesmos, por força do inciso V do artigo 37 da CRFB/1998, “destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento”, sendo-lhes defeso o desempenho das atribuições inerentes aos técnicos.

A Constituição Federal, no artigo 84, IV, respalda, em específico, esse Poder essencial e viabilizador, dispondo:

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

[...];

IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;

Ante o princípio da simetria, o mandamento constitucional supra é extensível aos demais chefes do Poder Executivo País afora. Importante asseverar que o poder regulamentar pertence à Administração Pública, entendida como sinônimo de Poder Executivo e expressão imperativa do Estado. Ele não pertence única e exclusivamente ao Chefe do Poder Executivo. É preciso reconhecer seu exercício nas várias instâncias administrativas e por diversas autoridades, respeitadas as competências e hierarquias a que se submetem. Nesse diapasão, escreveu Jose dos Santos Carvalho Filho:

Há também atos normativos que, editados por outras autoridades administrativas, podem caracterizar-se como inseridos no poder regulamentar. É o caso de instruções normativas, resoluções, portarias, etc. Tais atos têm frequentemente um círculo de aplicação mais restrito, mas, veiculando normas gerais e abstratas para a explicitação das leis, não deixam de ser, a seu modo, meios de formalização do poder regulamenta. (CARVALHO FILHO, 2016, p. 118-119).

A leitura integrativa do direito tributário e do direito administrativo permite entender as razões do legislador de 1966, quando da formulação do CTN, ter feito clara alusão às “normas complementares” como integrantes da legislação tributária, inclusive elencando-as no artigo 100, in verbis:

Art. 100. São normas complementares das leis, dos tratados e das convenções internacionais e dos decretos:

I - os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas;

II - as decisões dos órgãos singulares ou coletivos de jurisdição administrativa, a que a lei atribua eficácia normativa;

III - as práticas reiteradamente observadas pelas autoridades administrativas;

IV - os convênios que entre si celebrem a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

Parágrafo único. A observância das normas referidas neste artigo exclui a imposição de penalidades, a cobrança de juros de mora e a atualização do valor monetário da base de cálculo do tributo.

Acerca das normas complementares, Hugo de Brito Machado Segundo leciona que:

O papel das normas complementares da legislação tributária é o de explicitar o conteúdo das leis, de sorte a uniformizar a sua interpretação por parte da Administração Tributária. “As normas complementares do direito tributário são de grande valia porquanto empreendem exegese uniforme a ser obedecida pelos agentes administrativos fiscais (art. 100, do CTN). Constituem, referidas normas, fonte do direito tributário porquanto integrantes da categoria ‘legislação tributária’ (art. 96, do CTN) [...]” (SEGUNDO, 2017, p. 238).

Assim, devem ser entendidas como normas complementares aquelas produzidas e veiculadas no âmbito das administrações tributárias federal, estadual, distrital ou municipal, com o escopo de explicitar o direito tributário ou as disposições da legislação tributária, assim como externar o entendimento da autoridade fiscal. Elas encontram suas raízes no poder regulamentar da Administração, razão pela qual não possuem o condão para inovar a ordem jurídica, papel este reservado exclusivamente às leis (princípio da legalidade).

No âmbito das administrações tributárias, as normas complementares ganham notória relevância. Elas permitem que as autoridades competentes empreendam maior dinamismo às regras que versem, no todo ou em parte, sobre as relações jurídico-tributárias. Eis as razões dos artigos 7º, caput, e 194 do CTN, na qualidade de normas estruturantes do Sistema Tributário Nacional, realçarem que a “legislação tributária” deve dispor sobre a competência das autoridades administrativas tributárias para fins do regular exercício da tributação, signo da soberania estatal, enfatizando que tais funções são indelegáveis à iniciativa privada ou a particulares e estranhos ao poder público.

Referido entendimento ganha robusto reforço quando harmonizado com o inciso XXII do artigo 37 da CRFB/1988, alhures transcrito. Dele se extrai o entendimento acerca da essencialidade da Administração Tributária ao Estado e que somente pode ser exercida por servidores de carreiras específicas e competentes para executar as funções inerentes à tributação, incluídas aí as prerrogativas do poder regulamentar, no sentido de expedir normas complementares não insertas na alçada do Chefe do Poder Executivo.

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Sobre o autor
Miqueas Liborio de Jesus

Auditor Fiscal da Receita Municipal de Joinville/SC e Professor na Associação Catarinense de Ensino - ACE/FGG, no curso de Direito, ministrando as disciplinas de Direito Tributário I e Direito Tributário II. Bacharel em Ciências Jurídicas (Direito) pela Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE, Aprovado no Exame da OAB em 21/05/2006 e MBA em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas – FGV.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JESUS, Miqueas Liborio. A (im)possibilidade do Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN) ser composto por membros estranhos às administrações tributárias. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7900, 16 fev. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/78827. Acesso em: 25 abr. 2025.

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