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A (im)possibilidade do Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN) ser composto por membros estranhos às administrações tributárias

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16/02/2025 às 08:25
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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto, o Sistema Tributário Nacional, delimitado a partir do texto constitucional vigente e estruturado em sede de lei complementar que veicula normas gerais, se reveste dos postulados federativos, os quais se acham sedimentados com o status de cláusulas pétreas. Ademais, importante frisar que o poder de tributar, como signo da soberania do Estado, ante os ideários do federalismo, foi distribuído entre os entes políticos e os dotou da prerrogativa de exercer a tributação – entendida como a faculdade de instituir, arrecadar e fiscalizar tributos, bem como todas as demais funções inerentes à expedição de regulamentações ou execução de leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária.

Na qualidade de símbolo do poder soberano, a tributação é atividade típica do Estado e somente por ele pode ser exercida, implicando dizer que à iniciativa privada ou ao particular é defeso delegar qualquer parcela desse poder. Para tanto, o Legislador Constituinte Originário fez constar no texto constitucional (art. 146, III, “a” e “b”, da CRFB/1988) a necessidade de que a lei complementar veiculasse normas gerais com o escopo de estruturar as bases do Sistema Tributário Nacional, cujo teor deve ser observado por todos, inclusive pelo Poder Público nas suas várias instâncias. Sabidamente, a lei que trata da matéria é o Código Tributário Nacional (CTN), ante o instituto da recepção.

Salutar ainda frisar que o CTN não deve ser visto como lei genérica. Suas normas possuem abrangência e envergadura superior e diferente de outras de igual status. A bem da verdade, suas normas prescrevem as regras necessárias ao escorreito exercício da competência tributária, assim como estabelecem os institutos próprios do Sistema Tributário Nacional, regulando seu conteúdo e alcance para fins da conformação da relação jurídico-tributária, além de prescrever os contornos dos poderes das autoridades tributárias. Como estatuto destinado a estruturar e alicerçar o Sistema Tributário Nacional, devem ser evitadas disposições esparsas ou paralelas que porventura possam deformar, deturpar ou deslocar suas raízes, sob pena de comprometer o escopo magno da segurança jurídica.

Nesse contexto, importante realçar que o poder de tributar importa nas faculdades de instituir, arrecadar e fiscalizar tributos, faculdades estas que foram cirurgicamente divididas entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo, cabendo-lhes, respectivamente, criar leis instituindo os tributos e tudo mais necessário à relação jurídico-tributária e exercer as funções de arrecadação e fiscalização tributária, além de outras questões inerentes às funções administrativas prescritas na legislação tributária.

O CTN, nos artigos 6º a 8º, trata da competência tributária e, no caput do artigo 7º, assevera a indelegabilidade do Poder Legiferante, ao passo que admite a delegação da capacidade tributária ativa a outra pessoa jurídica de direito público. A razão é simples: tais prerrogativas somente podem ser exercidas pelo Poder Público, sinônimo de Estado, e por autoridade, assim entendida aquela que, em face dos vetores democráticos, adquiriu tal status por via do sufrágio universal ou por intermédio de concurso público.

Importante frisar que, no âmbito do Poder Executivo, cumpre à Administração Tributária, atividade típica (art. 2º da LF nº 6.185/1974) essencial ao funcionamento do Estado e que somente pode ser exercida por servidores de carreira específica (art. 37, XXII, da CRFB/1988), o mister de executar as funções inerentes à arrecadação e à fiscalização dos tributos, aí incluídas as faculdades para expedir regulamentos, executar leis e demais atos pertinentes às questões que envolvam a relação tributária, as quais, repita-se, são insuscetíveis de serem desempenhadas pela iniciativa privada, em qualquer hipótese.

Ressalta-se que as autoridades que integram as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, no regular exercício das suas prerrogativas, personificam o Estado frente ao cidadão, razão pela qual suas competências devem estar delimitadas na legislação tributária (art. 194. do CTN), termo aqui empregado não na sua expressão genérica (art. 96. do CTN), pois competência é questão a ser tratada pela lei, em sentido estrito, em respeito ao princípio da legalidade (arts. 5º, II e 37, caput, da CRFB/1988).

Referidas autoridades exercem o poder soberano do Estado inerente à tributação, razão pela qual, além de possuírem a faculdade de invadir a liberdade e o patrimônio do cidadão, desde que respeitados os direitos e garantias do mesmo, estão também investidas da prerrogativa do poder regulamentar da Administração, lembrando que o mesmo é típico do Poder Executivo e resulta no poder-dever de expedir regulamentos com o fito de esclarecer ou explicitar os conteúdos e o alcance das leis, os quais ingressam na seara tributária sob o rótulo de normas complementares (arts. 96. e 100 do CTN).

Quando a análise se volta para o Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN), nos estritos limites da Lei Complementar Federal nº 123/2006 (art. 2º, I, §6º) com as alterações correlatas, verifica-se que se trata de órgão criado por lei e que está investido do poder regulamentar da Administração, cuja competência circunscreve a regulamentação das questões inerentes à administração tributária dos entes políticos, cujas resoluções possuem status de norma complementar (art. 100, II, do CTN).

Referidas resoluções, por versarem sobre questões relativas às administrações das três instâncias da federação, inclusive afetando diretamente o princípio da autonomia tributária dos entes políticos e impedindo seu exercício individualmente considerado, assumem características especiais de amplitude nacional e dão efetividade ao pacto federativo, ante a uniformização das regras e imposição da atuação integrada dos fiscos federal, estadual e municipal. Isso justifica a atual disposição do inciso I do artigo 2º da LCF nº 123/2006, que estabelece a composição do CGSN, ter arrolado apenas autoridades oriundas da Secretaria da Receita Federal do Brasil como representantes da União, cuja simetria se manteve em relação aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.

Ao colocarmos o PLC nº 147/2019 no cenário constitucional e infraconstitucional aqui retratado, exclusivamente no que tange à pretensão da novel redação que se pretende dar ao inciso I do artigo 2º da LCF nº 123/2006, alterando do número de componentes do CGSN e acrescer representações oriundas da iniciativa privada, permite-se concluir que o Legislador Nacional, por meio de marretadas, procura colocar um quadrado dentro de um círculo. A prosperar o citado projeto, ter-se-á uma anomalia sistemática e contrária à ordem jurídica tributária brasileira, reclamando a revisão de algumas questões.

A primeira questão diz respeito às disposições do CTN e da LCF 123/2006. Respectivas leis, embora possuam igual status de lei complementar e regulem normas gerais, possuem objetos e conteúdos diferentes. A primeira regula as disposições das alíneas “a” e “b” do inciso III do artigo 146 da Constituição Federal, cujo teor, como repisado, versa sobre a estruturação do Sistema Tributário Nacional, regulando os contornos das competências tributárias e estabelecendo os institutos do direito tributário. A segunda vocaciona-se a dispor sobre o conteúdo da alínea “d” do retro mencionado dispositivo constitucional, especialmente sobre o teor do parágrafo único do mesmo.

Do cotejo das aludidas alíneas, sobreleva-se o antagonismo dos seus conteúdos. Embora sejam leis de mesma hierarquia e tangendo normas gerais, a novel redação do inciso I supramencionado modificará o sentido do artigo 7º do CTN e estabelecerá uma exceção à indelegabilidade das prerrogativas da administração tributária, no que tange ao exercício da capacidade tributária ativa. Ter-se-á o deslocamento ou a deturpação de um instituto próprio do direito tributário e a deformação do Sistema Tributário Nacional.

Ademais, importante observar que o parágrafo único do artigo 146 da CRFB/1988, com redação da EC nº 42/2003, enumera as matérias que devem ser tratadas pela Lei Complementar que versar sobre o conteúdo da alínea “d”. Dentre elas não está a hipótese que autorize ao Legislador a tratar da delegação da capacidade tributária ativa às pessoas estranhas à administração tributária. Nesse tocante, o PLC nº 147/2019 exorbita e vai na contramão da uniformidade do Sistema Tributário Nacional, promovendo sua erosão e a deturpação de um sólido e consagrado instituto do direito tributário.

A segunda questão tange à afetação do inciso XXII do artigo 37 da CRFB/1988. Como dito, cumpre às administrações tributárias dos três entes políticos, na qualidade de atividade típica e essencial ao funcionamento do Estado, posto envolver o exercício das prerrogativas inerentes à tributação, as quais, como signo do poder soberano, somente podem ser desempenhadas por servidores de carreiras específicas e investidos das respectivas competências.

Nesse diapasão, o comentado PLC, na matéria aqui retratada, colide diretamente com a disposição do referido inciso XXII, na medida em que transfere à iniciativa privada prerrogativa típica de Estado, que somente pode ser desempenhada por intermédio de autoridade pública competente. Numa leitura a contrario sensu, o projeto autoriza a ingerência da iniciativa privada no coração da Administração Pública e, por tangência, permite que a norma tributária, de envergadura federativa, seja construída por pessoas estranhas à administração pública. Trata-se que algo sem precedentes na literatura tributária e contrário aos precedentes jurisprudenciais país afora, especialmente em relação aos erigidos da Suprema Corte, os quais repisam a indelegabilidade de atividade típica de Estada às entidades privadas.

A terceira questão, ainda no plano da não delegação, cinge ao exercício do poder regulamentar. Conforme assentado alhures, o poder regulamentar é ínsito do Poder Executivo, cujo lastro se encontra no artigo 84, IV, da CRFB/1988, e orienta a faculdade da edição de regulamentos com o propósito de dar efetividade às leis ou, melhor dizendo, explicitar seus conteúdos e alcance de forma a torna-las eficazes aos fins a que se destinam. Trata-se, também, de atividade típica da Administração Pública e que somente pode desempenhada por autoridades.

Pelo fato de as resoluções editadas pelo CGSN possuírem status de norma complementar (art. 100, II, do CTN), elas são concebidas à luz do poder regulamentar ínsito do Poder Público e, por versarem sobre matéria tributária, disciplinando conteúdos afetos à tributação, devem ser vistas como inerentes à Administração Tributária. Nessa linha, o PLC nº 147/2019, no que foi aqui foi tratado, novamente extrapola o círculo de atuação do legislador nacional complementar.

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Pelo que foi exposto, o citado PLC possui fortes indícios de inconstitucionalidade por afrontar os artigos 1º, 18, 24, I, 30, III, 34, VII, “c”, 37, XVIII e XXII, 60, §4º, I, 84, IV, 145, §1º e 149, III, “a”, “b” e “d” e parágrafo único da Constituição da República Federativa do Brasil e, também, os artigos 3º, 7º, 96, 100, II e 194 da Lei Federal nº 5.172/1966 (Código Tributário Nacional), razão pela qual padece por vícios insanáveis.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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VELLOSO, Andrei Pitten. Constituição tributária interpretada. 3ª ed., ver. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2016.

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Sobre o autor
Miqueas Liborio de Jesus

Auditor Fiscal da Receita Municipal de Joinville/SC e Professor na Associação Catarinense de Ensino - ACE/FGG, no curso de Direito, ministrando as disciplinas de Direito Tributário I e Direito Tributário II. Bacharel em Ciências Jurídicas (Direito) pela Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE, Aprovado no Exame da OAB em 21/05/2006 e MBA em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas – FGV.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JESUS, Miqueas Liborio. A (im)possibilidade do Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN) ser composto por membros estranhos às administrações tributárias. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7900, 16 fev. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/78827. Acesso em: 5 dez. 2025.

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