O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão do Poder Judiciário nacional, com atuação em todo território brasileiro, foi instituído através da Emenda Constitucional nº 45, publicada no Diário Oficial da União em 31 de dezembro de 2004.
Instalado no fim do primeiro semestre do ano subseqüente, o CNJ tem sua sede em Brasília, sendo composto por quinze membros, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, para cumprirem um mandato de dois anos, admitida uma recondução [01]. Dentre as suas atribuições, ao CNJ compete: (a) zelar pela autonomia do Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura; (b) definir o planejamento estratégico, os planos de metas e os programas de avaliação institucional do Poder Judiciário; (c) receber reclamações contra membros ou órgãos do Judiciário; (d) julgar processos disciplinares; (e) elaborar e publicar semestralmente relatório estatístico sobre movimentação processual e outros indicadores pertinentes à atividade jurisdicional em todo o país.
A Emenda Constitucional nº 45 além de instituir o Conselho Nacional de Justiça, através da inclusão dos arts. 92, inciso I-A, e 103-B, na Constituição Federal, ainda alterou seu art. 93, inciso I. Com esta última modificação, passa-se a ser exigido, como requisito inerente ao ingresso no cargo de juiz substituto, além dos outros requisitos legais e constitucionais já existentes, a atividade jurídica exercida por um período mínimo de três anos. Vejamos:
"Art. 93. Lei Complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
I- ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz substituto, mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, 3 (três) anos de atividade jurídica e obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação; (...)." (grifo nosso)
Com tal mudança, visa a referida Emenda, de forma bastante prudente em razão da natureza das atribuições do cargo, a restringir o acesso de bacharéis em direito recém formados que, em sua maioria, não possuem a experiência necessária ao exercício da função de magistrado. Almejaram os parlamentares, desta forma, instituir um lapso mínimo, antes que o novo magistrado assuma seus difíceis encargos, que supõem maturidade, técnica e prática.
Esse requisito vem causando grandes repercussões nos concursos públicos para o cargo de juiz substituto, porquanto, muitos candidatos, hodiernamente, concluem o curso de bacharelado em Direito e, logo em seguida, empenham-se em ingressar na carreira. Se mal aplicada a exigência contida no art. 93, I, da CF, veremos afastados competentes candidatos, uma vez que, depois do triênio, no mínimo, de atividade jurídica, o possível candidato poderá ter colocado à margem há algum tempo os estudos preparatórios, poderá haver feito progressos na advocacia, esta poderá parecer-lhe mais promissora, e ele poderá abandonar a idéia de concurso, relegando-a a não raro malsucedidos profissionais na advocacia.
Esta reforma constitucional, ao tratar do novel requisito concernente à atividade jurídica, fê-lo de forma bastante genérica, reservando à lei complementar a competência de regulamentá-lo quando da nova edição da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN).
Por lei complementar, entende-se como espécie normativa autônoma, expressamente prevista no inciso II do art. 59 da CF, editada privativamente pelo Poder Legislativo, que versa sobre matéria específica do nosso direito positivo, demandando, para sua aprovação, um quorum especial de maioria absoluta dos votos dos membros de cada uma das casas de que se compõem o Congresso Nacional (art. 69 da CF/88). Lei complementar é, pois, toda aquela que contempla uma matéria a ela entregue de forma exclusiva e que, em conseqüência, repele normações heterogêneas, aprovada mediante um quorum próprio de maioria absoluta. [02]
Às leis complementares, portanto, cabem completar, inteirar, concluir, preencher, perfazer a constituição federal, sobretudo quando esta expressamente o determina. Com natureza não inovadora, esta espécie normativa almeja tratar de matéria já prevista no nosso ordenamento jurídico, a fim de, apenas, regulamentá-la, ou melhor, esmiuçá-la, visto que, tais normas a serem regulamentadas, são detentoras de eficácia limitada e carecem, destarte, de regulamentação externa.
Nesse sentido, Celso Ribeiro findou por delinear seus ensinamentos:
"Muitas normas constitucionais reclamam a intermediação de uma norma infraconstitucional que tenha a função de integrar seu comando, diferentemente das normas de mera aplicação que se caracterizam por não deixarem espaço entre a sua intenção e os efeitos daí decorrentes, são normas de eficácia plena, que não necessitam de qualquer tipo de regulamentação." [03]
Todavia, ante à expressa determinação constitucional do art. 93, I, da CF/88, ao determinar que lei complementar versará sobre o critério da atividade jurídica a ser utilizado em editais de concursos de provas e títulos para juiz substituto, o CNJ, através da 12ª Sessão Ordinária, realizada em 31 de janeiro de 2006, editou a Resolução nº 11, antecipando-se ao devido processo legislativo e regulamentando o aludido requisito inerente ao ingresso na magistratura. Data vênia, em face disto, o Conselho Nacional de Justiça extrapola suas atribuições previstas na constituição e em seu regimento interno.
Tanto em um como noutro diploma, observa-se que ao CNJ compete exercer função eminentemente fiscalizadora das atividades dos órgãos e membros do judiciário, bem como mantenedora dos princípios constitucionais inerentes à efetivação do Estado Democrático de Direito e da justiça. Jamais poderia, como de fato não pode, exercer função legislativa, contrariando o art. 2º da CF/88, concernente à separação dos Poderes, e ultrapassando as normas do processo legislativo, especialmente as que determinam a necessidade do quorum mínimo e da aprovação em cada uma das Casas do Congresso Nacional.
Diante disso, revela-se clara a conclusão de que a utilização de qualquer outro ato administrativo ou espécie normativa, que não a lei, especificamente "Lei Complementar", findará por tisnar o ato, configurando a sua inconstitucionalidade. Em assim sendo, estar-se-ia agredindo, inclusive, o princípio básico do nosso ordenamento jurídico, qual seja, o da separação dos Poderes, já que um órgão do Poder Judiciário estaria desempenhando função competente a outro Poder, vale dizer, a de legislar.
Trata-se, por conseguinte, de espécie de ato administrativo detentor de caráter inexoravelmente inconstitucional, ante ao previsto no art. 93, da CF/88, que determina ser da competência exclusiva de Lei Complementar, com iniciativa do Supremo Tribunal Federal, dispor acerca do Estatuto da Magistratura, e, em tempo algum, caberia a um órgão do Poder Judiciário editar ato administrativo, intitulado "resolução", correspondente ao assunto.
Além de disciplinar, inconstitucionalmente, ato administrativo relativo ao critério da atividade jurídica para inscrição em concurso público de ingresso na carreira da magistratura nacional, o CNJ ainda contraria entendimentos jurisprudenciais das mais altas cortes do país ao determinar que a referida necessidade de experiência jurídica seja comprovada quando da inscrição definitiva no concurso de magistrado. Ora, utilizando-se adequadamente da hermenêutica jurídica, com a publicação da EC nº 45/2004, almejou o legislador incluir mais um requisito à investidura dos futuros executores da função jurisdicional do país, a fim de melhor desempenharem seu mister; e não, vedar indiscriminadamente o acesso de recém formados em bacharelado em direito à carreira de magistrado. Entretanto, com publicação dessa famigerada resolução, objetivou o CNJ, desafortunadamente, agir assim, já que no momento da inscrição, muitos bacharéis poderão não dispor do triênio de atividade jurídica, mas, eventualmente aprovado em todas as etapas do certame, que, em muitos Estados do país duram, em média, dois anos, certamente já terão cumprido o novel requisito para o ingresso na magistratura. Entretanto, é expressa a Resolução do Conselho, em seu art. 5º: "a comprovação do período de três anos de atividade jurídica de que trata o artigo 93, I, da Constituição Federal, deverá ser realizada por ocasião da inscrição definitiva no concurso." (grifo nosso)
Ressalte-se ainda que além do tempo necessário para a realização de um concurso público no país, há ainda o seu prazo de validade, contado após sua homologação, que, na maioria das vezes, é de dois anos, prorrogável por mais dois, consoante determina o art. 37, III, da CF. Desta feita, um candidato que, no ato de sua inscrição definitiva no certame, não dispusesse dos três anos de atividade jurídica, teria plenas condições de cumpri-los durante os quase cinco anos que lhe restassem, caso viesse a ser aprovado.
Como dito, a mais recente resolução do CNJ contraria não somente o texto constitucional, mas também os entendimentos jurisprudenciais do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) ao determinar que a comprovação da atividade jurídica seja realizada no momento da inscrição do concurso.
Em resistência a esta determinação, o STJ já editou, e vem reiteradamente utilizando em seus julgados a Súmula nº 266, que sabidamente dispõe: "O diploma ou habilitação legal para o exercício do cargo deve ser exigido na posse e não na inscrição para o concurso público". A "habilitação legal", entendida como um requisito previsto em lei, capaz de enquadrar o candidato às atribuições necessárias ao cargo que irá desempenhar, deve ser exigida quando da posse do candidato ao cargo de juiz, momento em que, efetivamente dará início ao exercício de suas atividades jurisdicionais. Nesse sentido, vejamos o como vem decidindo o Superior Tribunal de Justiça [04]:
Processo: AgRg no Ag 596206/RJ; AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO - 2004/0044025-2
Relator(a): Ministro HAMILTON CARVALHIDO (1112)
Órgão Julgador: T6 - SEXTA TURMA
Data do Julgamento: 24/02/2005
Data da Publicação/Fonte: DJ 09.05.2005 p. 488
Ementa
AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. MATÉRIA PACIFICADA. INOVAÇÃO. NÃO CONHECIMENTO.
1. A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça é firme no sentido de que, em tema de concurso público, o preenchimento dos requisitos exigidos para o exercício do cargo deve ser comprovado na ocasião da posse e, não, no momento da inscrição.
2. "O diploma ou habilitação legal para o exercício do cargo deve ser exigido na posse e não na inscrição para o concurso público." (Súmula do STJ, Enunciado nº 266).
3. Em sede de agravo regimental não se conhece de alegações estranhas às razões da insurgência especial e ao agravo de instrumento, eis que evidenciam vedada inovação de fundamento.
4. Agravo regimental improvido.
Na mesma ótica, é o entendimento do Supremo Tribunal Federal [05], ao decidir:
RE 184425/RS - RIO GRANDE DO SUL/RECURSO EXTRAORDINÁRIO
Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO
Órgão Julgador: Segunda Turma
EMENTA: CONSTITUCIONAL. SERVIDOR PÚBLICO. CONCURSO PÚBLICO. HABILITAÇÃO LEGAL. CARGO PÚBLICO: REQUISITOS ESTABELECIDOS EM LEI. C.F., art. 37, I.
I. - A habilitação legal para o exercício do cargo deve ser exigida no momento da posse. No caso, a recorrente, aprovada em primeiro lugar no concurso público, somente não possuía a plena habilitação, no momento do encerramento das inscrições, tendo em vista a situação de fato ocorrida no âmbito da Universidade, habilitação plena obtida, entretanto, no correr do concurso: diploma e registro no Conselho Regional. Atendimento, destarte, do requisito inscrito em lei, no caso. C.F., artigo 37, I. II. - R.E. conhecido e provido.
Deste modo, a exigência de comprovação da habilitação legal prevista no art. 93, I, da CF/88, tem pertinência com o desempenho da função jurisdicional a ser eventualmente desempenhada pelo candidato aprovado, não com a inscrição em concurso para o provimento do cargo de juiz, sendo, pois, forçoso concluir que somente no ato da posse a comprovação desse requisito se faz necessária.
Enfim, é imperioso destacar a inconstitucionalidade e ilicitude da Resolução nº 11/2006 editada pelo Conselho Nacional de Justiça, visto que, tal órgão do Poder Judiciário, consoante se encontra disposto no art. 92, I-A, da CF/88, carece de competência legislativa, sobretudo quando a própria Carta Constitucional vem a dispor que (especificamente) Lei Complementar deverá regulamentar a referida norma e esclarecer o que vem a ser o termo "atividade jurídica" e a partir de que momento, durante a realização do certame, a mesma deverá ser comprovada.
Ao nosso ver, portanto, entende-se que sem a devida regulamentação legal, o requisito de prévio exercício trienal da atividade jurídica para concursos de juiz no país não é auto-aplicável, de maneira que, ao ser, equivocado e inconstitucionalmente, regulamentado através da Resolução nº 11/2006 do CNJ, determinando, inclusive, que sua comprovação seja no ato da inscrição, encontra-se perfeitamente passível de ser questionado por meio de mandado de segurança.
Referências
BASTOS, Celso Ribeiro. Lei complementar: teoria e comentários. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2002.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2002.
NOTAS
01Vide § 2º do art. 103-B da CF/88 e art. 2º, do Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça.
02 BASTOS, Celso Ribeiro. Lei complementar: teoria e comentários. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999. p. 47-48.
03 BASTOS, Celso Ribeiro. Op. cit. p. 18-19.
04 No mesmo sentido, confira algumas decisões do STJ: AgRg no REsp 687206/SP, RMS 17076/MG, REsp 663553/SP, RMS 14434/MG, AgRg no REsp 599482/SP, REsp 582714/SP, AgRg no Ag 504130, RMS 15221, AgRg no REsp 563030/SP.
05 Confira ainda o RE 423.752, RE 184.425 e RE 392.976