Capa da publicação Promotor pode ajuizar HC contra ato hipotético perante segunda instância?
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Habeas corpus contra ato hipotético ajuizado por promotor de justiça perante a segunda instância

15/05/2020 às 14:20
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Em sendo o HC um recurso, permite-se que somente o promotor de justiça que esteja oficiando na esfera de atribuições junto ao tribunal requeira o writ perante ele?

I - O FATO 

O promotor de Justiça do Rio Grande do Norte, Wendell Bethoven, ajuizou habeas corpus para afastar o risco de que policiais militares sejam responsabilizados criminalmente caso não prendam quem venha a participar de alguma manifestação, em descumprimento às normas de isolamento determinadas por decreto emitido pelo Executivo daquele Estado.

O promotor entrou com um Habeas Corpus Coletivo no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte visando à garantia do direito de manifestação em forma de reuniões, carreatas, passeatas e congêneres que foram proibidas pela governo estadual em Decreto publicado no último dia 22 de abril do corrente ano. 

Para ele, “essas restrições, todavia, são claramente inconstitucionais”, como se disse da petição.


II - A LEGITIMIDADE DO PROMOTOR NO AJUIZAMENTO DO HC 

Dir-se-ia que, como qualquer do povo, pode o promotor de Justiça, em nome pessoal, impetrar o habeas corpus em qualquer juízo ou tribunal, com a única exceção de juízo onde exerce as suas funções, pois nessa hipótese estaria a provocar impedimento para oficiar nos autos.

Entendia-se que o promotor de justiça, nessa qualidade e no exercício de suas funções pode impetrar o habeas corpus apenas perante o juiz de direito, mas não junto aos tribunais, onde a representação do ministério público cabe privativamente ao procurador geral de justiça, que pode delega-la aos procuradores de justiça.

Entretanto, como ponderou Ada Pelegrini Grinover(Mandado de segurança e habeas impetrado em segunda instância por promotor de justiça, Justitia 125/62-8), como, perante a lei processual, o habeas corpus é um recurso, permite-se que o promotor de justiça requeira o writ perante o tribunal por estar ele oficiando na esfera de suas atribuições junto ao juízo.

Observe-se, na experiência do Estado de São Paulo, a Lei Complementar Estadual nº 304/82 possibilitava essa impetração perante os tribunais em geral. Apresentado o pedido, a partir daí cabe ao órgão do parquet de segunda instância acompanha-lo, oferecer sustentação oral, recorrer, etc. Mas cabe a pergunta: e se o procurador geral de justiça é contra essa impetração? Ele tem sua autonomia funcional e como chefe da Instituição tem seu pensamento e orientação a dar perante o tribunal de justiça.

Quanto ao órgão ministerial, é mister fazer referência à Lei Orgânica Nacional do Ministério Público(Lei nº 8.625/93) segundo a qual "compete aos promotores de justiça, dentro de suas esferas de atribuições: (....) impetrar habeas corpus e mandado de segurança e requerer correição parcial, inclusive perante os Tribunais locais competentes"(artigo 32,I).

Mas entenda-se: o processo tramita na Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado. O promotor citado não oficia perante aquele juízo. Daí a sua ilegitimidade ativa ad causam.

De toda sorte, para o caso há o entendimento de que o ministério público somente pode impetrar Habeas Corpus em favor do réu, nunca para satisfazer os interesses, ainda que legítimos, da acusação. O precedente usado para fundamentar a decisão da 5ª Turma foi relatado pelo ministro Felix Fischer no HC 22.216 e publicado no dia 10 de março de 2003.

Assim entenda-se que há evidente ilegitimidade ativa no writ impetrado.


III - HABEAS CORPUS CONTRA ATO HIPOTÉTICO 

Com o devido respeito, entendo que o writ impetrado deve ter seu seguimento negado.

Não cabe habeas corpus contra ato hipotético.

O risco de cumprimento das sanções é meramente hipotético e não cabe pedido de Habeas Corpus contra o chamado "ato de hipótese". Além disso, não é a liberdade de locomoção propriamente dita que está sob risco.

Assim foi dito:

"[o] risco de cumprimento, ante tempus, é meramente hipotético, sabendo-se que não cabe ação de habeas corpus contra o chamado, por alguns, 'ato de hipótese'. Portanto, não há constrangimento ilegal a ser evitado ou sanado pelo presente habeas corpus, o qual se mostra manifestamente incabível" (HC n.º 82.319/SP, 5ª Turma, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, DJ 12/09/2007).

Entenda-se: a ameaça de constrangimento ao jus libertatis a que se refere a garantia prevista no rol dos direitos fundamentais (art. 5º, LXVIII, da Constituição da República) há de se constituir objetivamente, de forma iminente e plausível, e não hipoteticamente, como parece ser a hipótese dos autos.

Nesse sentido, tem-se os seguintes julgados, mutatis mutandis: "'HABEAS CORPUS' - DECISÃO QUE LHE NEGA TRÂNSITO - [...] - INEXISTÊNCIA DE QUALQUER SITUAÇÃO DE DANO EFETIVO OU DE RISCO POTENCIAL À LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO FÍSICA DO PACIENTE - CONSEQÜENTE INADMISSIBILIDADE DO "WRIT" CONSTITUCIONAL - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA DOUTRINA BRASILEIRA DO 'HABEAS CORPUS' - CESSAÇÃO (REFORMA CONSTITUCIONAL DE 1926) - RECURSO IMPROVIDO. A FUNÇÃO CLÁSSICA DO "HABEAS CORPUS" RESTRINGE-SE À ESTREITA TUTELA DA IMEDIATA LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO FÍSICA DAS PESSOAS. - A ação de "habeas corpus" não se revela cabível, quando inexistente situação de dano efetivo ou de risco potencial ao "jus manendi, ambulandi, eundi ultro citroque" do paciente. Esse entendimento decorre da circunstância histórica de a Reforma Constitucional de 1926 - que importou na cessação da doutrina brasileira do "habeas corpus" - haver restaurado a função clássica desse extraordinário remédio processual, destinando-o, quanto à sua finalidade, à específica tutela jurisdicional da imediata liberdade de locomoção física das pessoas. Precedentes. - Considerações em torno da formulação, pelo Supremo Tribunal Federal, sob a égide da Constituição de 1891, da doutrina brasileira do "habeas corpus": a participação decisiva, nesse processo de construção jurisprudencial, dos Ministros PEDRO LESSA e ENÉAS GALVÃO e, também, do Advogado RUI BARBOSA.

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 A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem salientado que, não havendo risco efetivo de constrição à liberdade de locomoção física, não se revela pertinente o remédio do "habeas corpus", cuja utilização supõe, necessariamente, a concreta configuração de ofensa - atual ou iminente - ao direito de ir, vir e permanecer das pessoas. Doutrina. Precedentes." (STF, HC 97.119-AgR/DF, 2.ª Turma, Rel Min. CELSO DE MELLO, DJe de 07/05/2009.) "HABEAS CORPUS. DIREITO PROCESSUAL PENAL. PEDIDO DE EXPEDIÇÃO DE SALVO-CONDUTO. PACIENTE CONDENADO EM PRIMEIRA INSTÂNCIA PELO CRIME DE ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CONCESSÃO, NA SENTENÇA, DO DIREITO DE O PACIENTE APELAR EM LIBERDADE. SENTENÇA CONDENATÓRIA CONFIRMADA EM SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. AUSÊNCIA DE DELIBERAÇÃO, POR PARTE DO TRIBUNAL IMPETRADO, ACERCA DO PEDIDO PARA QUE O PACIENTE PERMANECESSE EM LIBERDADE, O QUE SEQUER FOI PLEITEADO A ESSE ÓRGÃO JURISDICIONAL. INEXISTÊNCIA DE AMEAÇA, POR PARTE DO TRIBUNAL DE ORIGEM, AO DIREITO AMBULATORIAL DO PACIENTE. FALTA DE ATO COATOR. NÃO CABIMENTO, NA HIPÓTESE, DO REMÉDIO CONSTITUCIONAL DO HABEAS CORPUS. 1. No caso, ao proferir-se sentença condenando Paciente pelo crime de atentado violento ao pudor, reconheceu-se seu direito de apelar em liberdade. Após, o Tribunal de origem, ao manter a condenação quando do julgamento da apelação, nada determinou acerca da expedição do mandado de prisão, certamente em atenção ao atual entendimento dos Tribunais Pátrios de que a pena não pode ter seu cumprimento iniciado senão depois do trânsito em julgado da condenação. 2. Ausente, portanto, interesse processual na presente causa, por faltar ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo determinação para que o Paciente fosse segregado cautelarmente. Inexistente o risco de o Estado constranger ilicitamente a liberdade do paciente, por não restar configurado, sequer, ato coator por parte do Órgão Jurisdicional Impetrado. 3. Incide na hipótese o entendimento de que não é cabível o remédio constitucional do habeas corpus se não há possibilidade de o direito ambulatorial do Paciente ser ilegalmente constrangido. 4. [...]. 5. Habeas corpus não conhecido." (STJ, HC 128.943/SP, 5.ª Turma, Rel. p/ Acórdão Min. LAURITA VAZ, DJe de 22/03/2010.).

Recentemente a matéria foi objeto no HC 572.879 onde a jurisprudência foi reiterada.

Ademais, o habeas corpus exige profundo exame do contexto probatório dos autos, o que excede os limites do exame do pedido apresentado.

Verifica-se que a análise do pleito, de razoável complexidade, excede os limites do exame do pedido apresentado, razão pela qual, insista-se, deve ter seu seguimento negado.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Habeas corpus contra ato hipotético ajuizado por promotor de justiça perante a segunda instância. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6162, 15 mai. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81576. Acesso em: 19 abr. 2024.

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