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Pacotes covid-19 de inconstitucionalidades: a desproporcionalidade e desarrazoabilidade dos decretos estaduais e municipais para combater a pandemia

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01/05/2020 às 08:30
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Durante a pandemia, decretos estaduais e municipais estão sendo editados em total desacordo com as normas constitucionais relativas ao tratamento de direitos fundamentais.

O desespero é uma doença. E um povo desesperado, lesado por dificuldades enormes, pode enlouquecer, como qualquer indivíduo. Ele pode perder o seu próprio discernimento. (Francisco Cândido Xavier)

1. A posição do Governo do Estado de São Paulo

Conforme recentemente publicado, o governo do Estado de São Paulo prorrogou, pela segunda vez consecutiva, a quarentena relativa ao covid-19, determinando a paralização do comércio e indústria, com exceção das atividades consideradas essenciais.

A primeira paralização ocorreu por meio do Decreto Estadual nº 64.881, de 22 de março de 2020. Reza o Art. 1º e parágrafo único do precitado Decreto, litteris:

Artigo 1º. Fica decretada medida de quarentena no Estado de São Paulo, consistente em restrição de atividades de maneira a evitar a possível contaminação ou propagação do coronavírus, nos termos deste decreto.

Parágrafo único. A medida a que alude o “caput” deste artigo vigorará de 24 de março a 7 de abril de 2020.

A primeira paralização estava prevista para o período de 24 de março até 7 de abril de 2020.

Posteriormente, por meio do Decreto Estadual nº 64.920[1], de 6 de abril de 2020, houve a primeira prorrogação da quarentena, pelo prazo de mais 15 dias, e que, por conseguinte, deveria findar-se em 22 de abril de 2020.

No dia 17 de abril de 2020, o Governador do Estado de São Paulo se pronunciou novamente, determinando nova prorrogação do prazo da quarentena até o dia 10 de maio de 2020, o que foi feito por meio do Decreto Estadual nº 64.946, de 17 de abril de 2020[2]. Eis excerto do discurso[3], litteris:

"Até o dia 10 de maio, domingo, está prorrogada a decisão no estado de São Paulo, valendo a prorrogação para os 645 municípios do estado de São Paulo. A prorrogação foi amparada pelo Grupo de Contingência da Covid-19, um comitê médico composto por 15 membros, são especialistas, eles que orientam todas as decisões tomadas pelo governo do estado de São Paulo e também da Prefeitura de São Paulo".

Disse, ainda, o ilustre governador, verbis: "Há um mês, aqui em São Paulo, tínhamos a primeira morte. Hoje já são 853 mortes. Infelizmente, os casos estão em expansão[4]". Aqui abro parênteses para tecer a seguinte observação: essa é a realidade da Capital de São Paulo e não de todos os Municípios do interior. Em muitos Municípios paulistas não há registro de qualquer caso de contaminação por covid-19.

Disse, ainda, o ilustre Governador[5], litteris:

"São Paulo acredita na ciência e quero voltar a reafirmar que São Paulo confia nos médicos que salvam vidas. Pelo amor à vida, às pessoas e por respeito à medicina, nós prorrogamos essa quarentena", disse Doria.

E ainda reafirmou[6]:

"Para reabrir o comércio e os serviços precisamos ter o sistema de saúde também em condições de atendimento para salvar vidas. Aqui não tomamos medidas irresponsáveis, precipitadas ou baseadas no achismo ou ideologia", afirmou o governador.

O renomado infectologista David Uip, coordenador do Centro de Contingência do Coronavírus, se manifestou nestes termos:

"Nós estudamos todos os cenários todos os dias desde o primeiro dia. O vírus é invisível. As pessoas tem a falsa impressão que ele não acontece na sua cidade. E não é assim que funciona. Nós não estamos inventando nada nos estamos tendo a oportunidade de aprender com quem nos antecedeu na pandemia. Eu fico surpreso que as pessoas não consigam entender o que já aconteceu. Olha o que aconteceu na Itália. Nós estamos tendo a oportunidade em nos antecipar. Não tem novidade, está acontecendo uma curva de ascensão menor e isso é graças as medidas que foram tomadas precocemente." (sic)

Quanto à situação hospitalar de São Paulo, o prefeito da Capital, Bruno Covas, assim se manifestou, verbis:

"O vírus está se espalhando, já temos vítimas em todos os bairros e regiões da capital. Estamos abrindo novos leitos quase todos os dias. Ontem, 561 leitos foram entregues no Hospital de Campanha do Anhembi, mesmo assim hospitais estão ficando lotados apesar de todo esforço que a prefeitura está fazendo pra criação de novas vagas. Não vai adiantar se a população não seguir o que for recomendado". (sic)

De acordo com a reportagem pesquisada, a prorrogação, pela segunda vez, ocorreu porque[7]:

A prorrogação da quarentena ocorreu devido ao número crescente de casos de contaminação e de mortes registradas, além do baixo índice do isolamento social da população. Nesta quinta (16), o índice de isolamento foi de 49%, de acordo com o sistema de monitoramento que utiliza sinais de celulares para saber se as pessoas estão em casa e localizar aglomerações. O governo diz que a taxa ideal para tentar impedir o avanço da doença é de 70%.

Tendo em vista, em resumo, os decretos estaduais acima citados, as seguintes atividades estão permitidas:

Hospitais, clínicas, farmácias e clínicas odontológicas;

Transporte público, táxis e aplicativos de transporte;

Transportadoras e armazéns;

Empresas de telemarketing;

Petshops;

Deliverys;

Supermercados, mercados, açougues e padarias*;

Limpeza pública;

Bancas de jornais;

Bancos, lotéricas e correspondentes bancários;

Postos de combustível;

Fábricas.

*padarias não poderão permitir o consumo no estabelecimento.

Estabelecimentos que, consoante dos Decretos, não podem abrir as portas são os abaixo listados:

Comércio;

Bares;

Restaurantes;

Cafés;

Casas noturnas;

Shopping centers e galerias;

Academias e centros de ginástica;

Espaços para festas, casamentos, shows e eventos;

Escolas públicas ou privadas.

*Bares, cafés e restaurantes podem manter o funcionamento em sistema de delivery e/ou drive thru.

Atividades que, inegavelmente, geram muita renda e garantem a manutenção da estabilidade econômica do país.

Continua, ainda, a reportagem[8], litteris:

O infectologista David Uip, coordenador do Centro de Contingência contra o Coronavírus no estado de São Paulo, disse nesta manhã que o planejamento contra a doença começou em fevereiro e que o pico deve ser em maio. "As curvas de ascensão estão dentro do esperado e até de uma forma melhor do que nós imaginávamos porque nós entendemos que com esse distanciamento social foi possível achatar, em um primeiro momento, a curva de ascensão e diminuir o número de infectados. Nós estamos esperando que esse pico aconteça e o desafio é que não seja um pico Monte do Everest e sim de um montanha", afirmou. "Nós estamos na ascensão da curva, mas que semana de maio vai se dar o pico, nós ainda estamos trabalhando os dados." (sic)

De acordo com ele, o vírus está concentrado na região metropolitana de São Paulo. Uip reforçou a necessidade do isolamento social para diminuir os impactos nas unidades de saúde, especialmente da rede pública. "A população precisa estar convencida que o distanciamento é absolutamente fundamental. Primeiro, porque você melhora diminuindo o índice de transmissibilidade, depois você diminui o índice de doença, mas fundamentalmente você consegue impactar menos daqueles 20% de pacientes que precisarão ser internados e dos 5% que vão para as UTIs." (grifos acrescidos)

Talvez se o Carnaval deste ano tivesse sido cancelado, o vírus não estaria “concentrado na região metropolitana de São Paulo”. Afinal, como é cediço, neste período, pessoas do mundo inteiro acorrem para a Capital do Estado de São Paulo em busca desta festividade popular. Mas, é só uma mera e pobre hipótese.

De acordo, ainda, com a reportagem, temos[9]:

A estimativa é que 1% da população do estado de São Paulo seja contaminada, o que corresponde a 450 mil pessoas. "450 mil infectados você trabalha com percentuais de indivíduos assintomáticos, a grande maioria, acima de 50% serão assintomáticos e nem procurarão o sistema de saúde. 20% terão doença e vão precisar ser atendidos em hospitais e desses, 5% necessitarão de UTI. Então, com esses números nós planejamos a necessidade de leitos", afirmou Uip.

O infectologista voltou a dizer que a demora para obtenção dos resultados dos testes foi a falta de insumos. Do total de pacientes internados com sintomas de coronavírus em São Paulo, 61% não possuem exame confirmado de Covid-19. São 6.193 internações nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI) e enfermarias do estado. Desse total, 2.379 pacientes tiveram exame positivo para a doença, enquanto outros 3.814 ainda são considerados suspeitos.

O secretário da Saúde, José Henrique Germann, afirmou que a fila ainda é de aproximadamente 13 mil nesta quinta. “A respeito do número de teste, na data de hoje foram recebidas 1.741 novas amostras. E foram processadas 1.589. Estão em análise 12.958”, disse Germann.

Agora vêm dos dados mais interessantes e relevantes para o presente estudo e que dizem respeito ao cerne das medidas restritivas dos direitos fundamentais que os cidadãos brasileiros vêm sofrendo: as mortes.

Quanto às mortes por coronavírus, temos as seguintes informações (aqui vamos partir do pressuposto de que são verdadeiras, pois no Brasil a questão das fontes de informação é, deveras, muito complicada):

O número de mortes por coronavírus no estado de São Paulo subiu para 853 nesta quinta-feira (16), segundo a Secretaria Estadual de Saúde. Já são 11.568 casos confirmados da doença no estado. Em 24 horas, foram 75 novas mortes e 525 novos casos confirmados da infecção.

As mortes por coronavírus atingiram 83 municípios do estado, segundo a secretaria. A capital paulista registra o maior número de óbitos confirmados, chegando a 603, segundo os números estaduais.

"Apenas 26% das pessoas que morreram até agora em São Paulo têm menos de 60 anos e, neste grupo mais jovem, a maioria das mortes está associada a comorbidades", disse o diretor do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, Luiz Carlos Pereira Junior.

Entre as vítimas fatais, 507 são homens e 346 mulheres. Os óbitos continuam concentrados em pacientes com 60 anos ou mais, totalizando 79,3% das mortes.

De acordo com a secretaria, os casos confirmados de pacientes internados em UTIs de São Paulo chegaram a 1.115 nesta quinta-feira. Nas enfermarias são 1.264 pacientes.

O boletim diário da pasta afirma que o estado tem registrado a média de ao menos 100 novas internações diárias.

Entre os casos ainda suspeitos, 2.393 pacientes estão em observação em enfermarias de hospitais no estado, enquanto outros 1.421 estão em UTIs. (sem grifos no original).

Essa é a realidade noticiada na cidade de São Paulo.

Como se pode ver da reportagem acima transcrita, apenas 83 municípios foram, até o presente momento, atingidos pelo contágio por coronavírus.

No Estado de São Paulo são 645 unidades administrativas autônomas (munícipios).

Portanto, em 562 municípios não há registro de casos de contaminação pelo covid-19. Diante disso surge a pergunta: todos os municípios devem adotar as mesmas providências paulistanas? Isso se mostra racional, proporcional e dentro dos primados do bom senso e da razoabilidade? Isso está em consonância com o primado da dignidade da pessoa humana cravado no inciso III, do Art. 1º da Constituição Federal?

Eis a análise que me proponho a fazer neste singelo ensaio.

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De início é importante deixar registrado, consoante esclarece o Procurador da República Jefferson Aparecido Dias[10], de que não existe, no Brasil, o decreto autônomo, ou seja, o Poder Executivo apenas pode baixar um decreto para regulamentar uma lei. No caso do Governador do Estado de São Paulo não há lei a ser regulamentada pelos decretos baixados pelo mesmo para determinar as medidas que foram impostas. Logo, é um decreto que tem tudo para ser declarado inconstitucional.

Assim, o Presidente da República, os Governadores dos Estados e os Prefeitos do Municípios apenas podem baixar decretos para regulamentar leis relativas ao assunto do decreto emitido, salvo exceções que serão vistas abaixo. Os decretos regulamentam leis visando lhes dar cumprimento efetivo. Salvo as permissões previstas nas Constituições Federal e Estaduais.

No caso de o Presidente da República, o mesmo poderá editar decretos nas hipóteses das alíneas “a” e “b”, do inciso VI, do Art. 84 da Constituição Federal que gizam:

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

(...)

VI – dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;

b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos; (grifos acrescidos)   

Já no caso do Governador do Estado de São Paulo, a Constituição Estadual prevê as seguintes hipóteses de edição de decreto, litteris:

SEÇÃO II

Das Atribuições do Governador

Artigo 47. Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

XII - fixar ou alterar, por decreto, os quadros, vencimentos e vantagens do pessoal das fundações instituídas ou mantidas pelo Estado, nos termos da lei;

XVI - delegar, por decreto, a autoridade do Executivo, funções administrativas que não sejam de sua exclusiva competência;

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos.

Artigo 149. O Estado não intervirá no Município, salvo quando:

I - deixar de ser paga, sem motivo de força maior, por dois anos consecutivos, a dívida fundada;

II - não forem prestadas contas devidas, na forma da lei;

III – não tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.

§ 1º. O decreto de intervenção, que especificará a amplitude, prazo e condições de execução e, se couber, nomeará o interventor, será submetido à apreciação da Assembleia Legislativa, no prazo de vinte e quatro horas.

(...)

§ 3º. No caso do inciso IV [vetar projetos de lei, total ou parcialmente], dispensada a apreciação pela Assembleia Legislativa, o decreto limitar-se-á a suspender a execução do ato impugnado, se esta medida bastar ao restabelecimento da normalidade, comunicando o Governador do Estado seus efeitos ao Presidente do Tribunal de Justiça. (grifos acrescidos)

Portanto, consoante se pode perceber, não há previsão constitucional para os atos “legislativos” do Governador do Estado de São Paulo.

Acerca do poder regulamentar da administração pública, Marcelo Henrique Pereira Marques[11] assim faz constar, litteris:

A Administração possui poderes, a bem da verdade são poderes-deveres ou como prefere Celso Antonio Bandeira de Mello deveres-poderes. A doutrina elenca entre esses poderes, os seguintes: normativo, disciplinar, poder de polícia e os decorrentes da hierarquia.

O que nos interessa, por ora, é o poder normativo ou regulamentar. Para Miguel REALE os atos normativos derivados têm por objetivo “a explicitação ou especificação de um conteúdo normativo preexistente, visando a sua execução no plano da práxis”. O regulamento é ato normativo derivado. Sob o escólio de Hely Lopes MEIRELLES diz-se que “no poder de chefiar a Administração está implícito o de regulamentar a lei e suprir, com normas próprias, as omissões do Legislativo que estiverem na alçada do Executivo. Os vazios da lei e a imprevisibilidade de certos fatos e circunstâncias que surgem, a reclamar providências imediatas da Administração, impõem que se reconheça ao Chefe do Executivo o poder de regulamentar, através de decreto, as normas incompletas”.

E Marcelo Henrique Pereira Marques[12] continua seu escólio nestes termos:

A atividade normativa não resta exaurida no Poder Legislativo, é certo. Isso porque o Executivo tem competência para expedir regulamento de natureza geral e efeito externo. A Constituição é a sede do fundamento dessa competência no seu artigo 84, IV, senão vejamos:

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

(...)

IV – sancionar, promulgar e fazer publicar leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução. (grifo nosso).

Esse decreto do inciso IV é o chamado pela doutrina de regulamento executivo. Tem como balizas a impossibilidade de “inovar na ordem jurídica, criando direitos, obrigações, proibições, medida punitivas, até porque ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, conforme art. 5º, II da Constituição”.

De outra banda, há o denominado regulamento autônomo que, este sim, “inova na ordem jurídica porque estabelece normas sobre matérias não disciplinadas em lei; ele não completa nem desenvolve nenhuma lei prévia”. O que impende analisar, no que tange o decreto autônomo, é o inciso VI do art. 84:

Art. 84 (...)

VI – dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;

b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;

Assim, o chefe do executivo não pode impor novas obrigações aos cidadãos por meio de decretos, mas apenas regulamentar as matérias previstas em sede constitucional. É vedado, por exemplo, criar punições envolvendo a liberdade individual por meio de decretos estaduais ou municipais, uma vez que legislar sobre direito penal é matéria de competência do legislativo federal e não dos Estados e Municípios, nos termos do Art. 22 da Constituição Federal. Isso é uma aberração jurídica dentro de nosso sistema normativo.

Para estas situações, consoante Jefferson Aparecido Dias[13] do Ministério Público Federal, lotado em Marília/SP, “exige-se uma lei”.

Complementando suas lições Marcelo Henrique Pereira Marques[14] leciona, verbis:

Com efeito, o que é preciso demonstrar é que o decreto do Chefe do Executivo decorre de competência direta da Constituição, ou tire seu fundamento da Carta Magna. Nessa hipótese, caso o regulamento não se amolde ao figurino Constitucional, caberá análise de constitucionalidade pelo Supremo. Caso contrário será mero vicio de inconstitucionalidade reflexa, afastando o controle concentrado em ADI – porque – como salienta Carlos Velloso: “é uma questão de opção. Hans Kelsen, no debate com Carl Schmitt, em 1929, deixou isso claro. E o Supremo Tribunal fez essa opção também no controle difuso, quando estabeleceu que não se conhece de inconstitucionalidade indireta. Não há falar-se em inconstitucionalidade indireta reflexa. É uma opção da Corte para que não se realize o velho adágio: “muita jurisdição, resulta em nenhuma jurisdição”. (ADI 2387-0 DF – Rel. Min. Marco Aurélio).

Ademais, é imperioso que se respeite o princípio da legalidade, estabelecido no inciso II, do Art. 5º da Constituição Federal, e que reza: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Além disso, não se pode concordar com medidas coercitivas que afetem a liberdade das pessoas, como pena de prisão, a serem estabelecidas por decreto, tendo em vista que isso fere o princípio da reserva legal estatuído no inciso XXXIX, do Art. 5º da Constituição Federal, que giza: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

Assim, as medidas restritivas estabelecidas pelo Governador do Estado de São Paulo, por meio dos precitados decretos, deveriam ser previstas, primeiro, em Lei, e, depois, regulamentadas via Decreto. No caso do Estado de São Paulo essa lei não existe. E para os Municípios, o mesmo raciocínio jurídico-constitucional deve ser aplicado.

Como disse o Promotor Federal Jefferson Aparecido Dias[15]: “O que temos visto é a edição de decretos que seriam decretos autônomos, e portanto, ilegais ou mesmo inconstitucionais. Decreto só poderia vir para regulamentar uma lei”.

Uma verdadeira abencerragem jurídica, para se usar feliz expressão cunhada por Pontes de Miranda. Isso cria a situação de decretos ilegais e, até, inconstitucionais. O decreto só poderia vir a existir em o mundo jurídico para regulamentar uma lei.

Para se ter uma ideia dos perigos dos decretos autônomos, o Governador do Piauí, Wellington Dias, por meio do Decreto nº 18.942[16], de 16 de abril de 2020, “autorizou agentes da Sedec (Secretaria de Estado da Defesa Civil) e responsáveis pelo combate ao coronavírus no estado a entrar em propriedades particulares, como casas, para prestar socorro ou para a retirada de famílias do local, quando houver risco de contaminação[17]”. Uma verdadeira escatologia jurídica, que fere o direito de propriedade do cidadão.

A Constituição Federal autoriza o uso de propriedade privada em casos específicos, mas, a desapropriação deve ser feita por meio de lei. Isso, aliás, o que determina o inciso XXIV, do Art. 5º da Constituição Federal, litteris: “a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição”.

Esse, apenas um dos inúmeros casos de inconstitucionalidade que estão ocorrendo em todo o país.

Impende, agora, analisarmos a realidade das cidades do interior do Estado de São Paulo e demonstrar que a realidade destas cidades não está sendo, em sua maioria, a mesma realidade da Capital, logo, as medidas preventivas que devem ser adotadas nas cidades que não estão passando por grave crise de propagação do coronavírus não podem ser as mesmas da Capital, pois isso fere os princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade.

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Sobre o autor
Rodrigo Mendes Delgado

Advogado. Escritor. Palestrante. Parecerista. Pós-Graduado (título de Especialista) em Ciências Criminais pela UNAMA – Universidade do Amazonas/AM. Ex-presidente da Comissão e Ética e Disciplina da 68ª subseção da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo por dois triênios consecutivos. Membro relator do Vigésimo Primeiro Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP pelo 3º triênio consecutivo. Autor dos livros: O valor do dano moral – como chegar até ele. 3.ed. Leme: Editora JH Mizuno, 2011; Lei de drogas comentada artigo por artigo: porte e tráfico. 3.ed. rev., atual. e ampl. Curitiba: Editora Belton, 2015; Soluções práticas de direito civil comentadas – casos concretos. Leme: Editora Cronus, 2013 (em coautoria com Heloiza Beth Macedo Delgado). Personal (Life) & Professional Coach certificado pela SOCIEDADE BRASILEIRA DE COACHING – SBCOACHING entidade licenciada pela BEHAVIORAL COACHING INSTITUTE e reconhecida pelo INTERNACIONAL COACHING COUNCIL (ICC). Carnegiano pela Dale Carnegie Training Brasil. Trainer Certificado pela DALE CARNEGIE UNIVERSITY, EUA, tendo se submetido às certificações Core Competence e Endorsement, 2014. (Contatos profissionais: Cel./WhatsApp +55 018 9.9103-5120; www.linkedin/in/mdadvocacia; [email protected])

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DELGADO, Rodrigo Mendes. Pacotes covid-19 de inconstitucionalidades: a desproporcionalidade e desarrazoabilidade dos decretos estaduais e municipais para combater a pandemia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6148, 1 mai. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81618. Acesso em: 26 abr. 2024.

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