Vencida a fase do registro no livro de ocorrências, do diálogo, da mediação e da composição, vem a lide.
Síndicos e administradores de imóveis sofrem rotineiramente com essa querela.
Quem nunca foi incomodado por algum vizinho?
É bastante comum que a relação entre pessoas que moram em propriedades próximas (não necessariamente contíguas) passe por momentos conflitantes. Isso porque, muitas vezes, a satisfação do direito de um morador pode provocar restrições e até mesmo violação dos direitos do seu vizinho.
Quem tem razão? Qual direito deve prevalecer?
Não há dúvida de que é terminantemente proibido fumar nas áreas comuns do condomínio, em decorrência da Lei nº 9.294/1996 que traz a seguinte previsão:
“Art. 2º - É proibido o uso de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco, em recinto coletivo fechado, privado ou público.”
“§ 3º - Considera-se recinto coletivo o local fechado, de acesso público, destinado a permanente utilização simultânea por várias pessoas.”
As sanções previstas nessa lei não são voltadas a pessoas naturais, mas, em caso de descumprimento, o síndico deverá aplicar a medida prevista no regimento ou na convenção (ou em ambos), conforme o caso.
No Rio de Janeiro existe a Lei nº 5517/09, a exemplo de outras legislações regionais e locais.
Uma opção extrema pode chegar à aplicação do art. 1337, parágrafo único, do C.C., o qual conceitua o morador que, por seu reiterado comportamento, gerar incompatibilidade de convivência com os demais moradores, poderá ser declarado como antissocial. Ressalta-se que será necessário demonstrar que ele não cumpre reiteradamente com os seus deveres perante o condomínio (art. 1.336, IV, do CC), por deliberação de três quartos dos condôminos restantes.
No entanto, o que fazer com as pessoas que, mesmo utilizando cinzeiros no interior de sua unidade, possuem o hábito de lançar a fumaça pela janela ou sacada e o cheiro incomoda terceiros?
Note-se que a propriedade é o mais importante e complexo direito real (sobre a coisa), por ser o único direito real sobre a coisa própria.
Talvez por isso, nosso ordenamento proteja a propriedade em nível constitucional (Artigo 5º, XXII e 170, II da CF/88).
Há quem entenda que esse direito seja absoluto (no que concordo), mas destaco que essa característica não é mais plena, pois o direito moderno tanto exige que a coisa cumpra uma função social, quanto o uso racional (Art. 5º, XXIII da CF/88 c/c, § 1º[1] do Artigo 1228[2] do Código Civil).
Importante é ressaltar que o uso da propriedade, ainda que dentro dos limites da lei, pode ensejar um ato ilícito.
Mas, identificar se o ato praticado pelo vizinho decorre de exercício regular de direito ou é abuso de direito é árduo e de difícil caracterização.Isso em virtude de o inc. I do art. 1.335 do Código Civil garantir que são direitos do condômino, usar, fruir e livremente dispor das suas unidades.
Nestes casos, não há como proibir o morador de fumar em seu apartamento, pois a área é privativa, portanto, de propriedade exclusiva da pessoa.
Contudo, o Código Civil, em seu art. 1.336, IV, expressamente prevê que são deveres do condômino: dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes.
Então, judiciar a questão deve ser ponderado tecnicamente e ser utilizado somente caso a situação se torne realmente extrema, pois como qualquer demanda contenciosa, enfrentará um processo com produção de provas, além de outros procedimentos e circunstâncias que tornam imprevisível o resultado do pleito.
Feita essa observação, para conter o mau uso, os vizinhos encontram algumas alternativas técnicas, basicamente: notificação extrajudicial, ação cominatória, ação de dano infecto e ação reparatória (as mais corriqueiras).
Constituem mal uso da propriedade e justificam a ação de dano infecto, com fundamento material nos artigos 1.277 a 1.281 do Código Civil, as situações presentes nas quais o dano ainda esteja ocorrendo, ou seja, nas situações presentes e dotadas de continuidade.
A dicção do art. 1.277 do referido Código garante ao proprietário ou o possuidor de um prédio o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha.
Se o dano já se consumou não haverá alternativa senão uma ação de reparação por responsabilidade civil, com supedâneo no artigo 186 do Código Civil.
Pela sutileza na caracterização da infração à lei, cabe uma análise acurada e profunda da situação fática, da disposição condominial, da legislação aplicável, da jurisprudência e do impacto nas relações de convivência e harmonia social.
Notas
[1] Art. 1.228 do CC, § 1º - O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
[2] Art. 1.228, caput: O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.