4. DO RELAXAMENTO/REVOGAÇÃO DAS PRISÕES CAUTELARES POR EXCESSO DE PRAZO
4.1. Da definição de relaxamento e de revogação
Antes do efetivo estudo acerca do excesso de prazo sobre as prisões cautelares, importante diferenciar relaxamento de revogação, tratando-se da aplicação destes institutos nas prisões cautelar.
Sobre o relaxamento, segundo Pacelli, “significa unicamente uma via de controle da legalidade da prisão, independentemente da modalidade, não se restringindo à hipótese de flagrante delito, embora sua aplicação prática, em regra, ocorra em relação a essa.”[52]
O relaxamento da prisão está consagrado na Constituição Federal, no artigo 5º, inciso LXV, que afirma que “prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”.
Assim, a prisão será ilegal quando não seguir os preceitos legais a que está vinculada. Como exemplo, temos uma conversão de flagrante em prisão preventiva em crimes culposos, sendo o agente primário; uma prisão em flagrante sem que o agente esteja em situação flagrancial, conforme o artigo 302 e 303 do CPP; da decretação de prisão temporária, fora das hipóteses do artigo 1º da Lei nº 7.960/89.
Já a revogação das prisões cautelares se dará quando não estiverem mais presentes os motivos ensejadores da prisão. A exemplo, cita-se a revogação da prisão preventiva, já que não estão mais presentes os requisitos do artigo 312 do CPP.
Assim, podemos afirmar que o relaxamento será cabível nas prisões ilegais, em qualquer das três espécies, enquanto o revogação será a medida cabível nas prisões legais, mas que já não preenchem os motivos ensejadores, sendo aplicadas na prisão preventiva e temporária.
Quanto ao tema deste trabalho, em respeito aos entendimentos contrários, seguindo o doutrinado por Pacelli, acreditamos que uma prisão cautelar, quando viciada pelo excesso de prazo, é ilegal e, por isso, passível de relaxamento. Como o festejado autor explica:
De outro lado, vale registrar que, havendo excesso de prazo na prisão preventivamente decretada, o tribunal, por via de habeas corpus ou mesmo de recurso nominado, deverá cassar a decisão, determinando o relaxamento da prisão, cuja continuidade já seria ilegal. É de se observar, ainda, que, ao contrário do relaxamento, a revogação da prisão preventiva, que tanto pode ser decidida pelo juiz que decretou quanto pelo tribunal, em grau de revisão (reforma), deverá ter por fundamento a falta do motivo para que subsista, nos termos do art. 316 do CPP. Nessa oportunidade, entendendo o juiz ou o tribunal que o caso não é de revogação, mas de substituição da cautela, poderá ser imposta outra medida cautelar do art. 319, CPP.
Como se trata de controle judicial da ilegalidade na imposição de restrição da liberdade individual, o relaxamento será cabível, como é óbvio, em qualquer procedimento e para quaisquer crimes, quando houver excesso de prazo ou outra irregularidade na constrição da liberdade (ver Súmula 697, STF).[53]
Assim, definida a conceituação de relaxamento e revogação nas prisões cautelares, passemos agora a definição de excesso de prazo.
4.2. Do excesso de prazo e dos prazos processuais previstos no Código de Processo Penal como base para a sua definição
Primeiramente, importante apontar que a definição de tempo é extremamente subjetiva.
Aury Lopes Júnior, comparando a noção de tempo, traz a baila os estudos de Einsten:
Com EINSTEIN e a Teoria da Relatividade, opera-se uma ruptura completa dessa racionalidade, com o tempo sendo visto como algo relativo, variável conforme o deslocamento do observador, pois ao lado do tempo objetivo está o tempo subjetivo.
Sepultou-se de vez qualquer resquício dos juízos de certeza ou verdades absolutas, pois tudo é relativo: a mesma paisagem podia ser uma coisa para o pedestre, outra coisa totalmente diversa para o motorista, e ainda outra coisa diferente para o aviador. A percepção do tempo é completamente distinta para cada um de nós. A verdade absoluta somente poderia ser determinada pela soma de todas observações relativas.[54]
Assim também ocorre em um processo. A definição do tempo, e ainda mais se este é razoável, é diferente para cada uma das partes, para seus advogados, para os membros do Ministério Público, e para o próprio Magistrado. Um processo com duração de 06 meses pode ser razoável para aqueles que estão “acostumados” aos trâmites jurisdicionais, mas certamente será demasiadamente demorado para as partes, que aguardam ansiosas seu desfecho.
E o caso se agrava para aqueles que estão presos cautelarmente. Diferente daqueles que já foram condenados e cumprem prisão-pena, com prazo já estabelecido, os primeiros aguardam julgamento sem terem a certeza se serão absolvidos ou condenados, e muito menos com prazo previamente estabelecido para a sua liberdade.
A legislação brasileira não traz parâmetros do que seria um processo de razoável duração. Mas, como afirma o professor Luis Guilherme da Costa Wagner Júnior, “se não sabemos ainda ao certo qual o prazo razoável para a duração de um processo, por certo temos clara condições de identificar o inverso, ou seja, o que não é razoável em termos de demora processual.”[55]
Vivemos, como afirma Aury Lopes Júnior, a doutrina do não-prazo, tendo que se recorrer à construção doutrinária e jurisprudencial para, ao menos, temos por base a definição de excesso de prazo.
É certo que na prisão em flagrante (24 horas para manifestação do juízo sobre o relaxamento, liberdade provisória ou conversão em preventiva) e na prisão temporária (05 ou 30 dias, nos crimes hediondos, prorrogáveis por igual período), temos um prazo determinado que, não cumprido, dá ensejo ao relaxamento da prisão cautelar. Contudo, não temos na prisão preventiva não na lei qualquer definição de prazo para sua duração.
Para definição de um prazo razoável, Aury Lopes Júnior aponta quatro vetores, quais sejam: complexidade do caso; atividade processual do interessado (imputado), que obviamente não poderá se beneficiar de sua própria demora; a conduta das autoridades judiciárias como um todo (polícia, Ministério Público, juízes, servidores etc); princípio da razoabilidade.[56]
Ainda mais, não podemos deixar de basilar os prazos previstos no Código de Processo Penal como vetores para a caracterização de um processo em tempo razoável. Com as alterações trazidas pela Lei nº 11.719/08, o prazo, anteriormente de 81 dias, por construção doutrinária e jurisprudencial, passou a ser de 86 dias, no rito ordinário. Como melhor explica Pacelli:
A contagem do prazo terá início com a prisão do acusado, seja ela preventiva, seja ela decorrente de flagrante delito, convertida (em preventiva) em razão da existência de seus requisitos (art.310,II, parágrafo único, CPP). É que, a partir da prisão, terá início a contagem de prazo para o encerramento do inquérito policial (dez dias na Justiça Estadual; 15 dias, prorrogáveis, na Justiça Federal), seguindo-se os demais atos processuais (oferecimento da denúncia e início da instrução criminal).
A nosso aviso, a nova contagem, no rito ordinário, chegará aos 86 dias, como regra (e de 107 dias, na Justiça Federal), ressalvadas circunstâncias específicas de cada caso concreto:
a) 10 (dez) dias, ou 15 (quinze) na Justiça Federal, prorrogáveis, para a conclusão das investigações;
b) 5 (cinco) dias para o oferecimento da denúncia;
c) 10 (dez) dias para a resposta escrita (art. 396, CPP);
d) Até 60 (sessenta) dias para a audiência de instrução (art. 400, CPP), a serem acrescidos do prazo de 24 horas para a decisão de recebimento da peça acusatória, e, eventualmente, do prazo de prisão temporária (Lei nº 7.960/89).
No processo do Tribunal do Júri, o prazo de conclusão do procedimento reservado à acusação e à instrução preliminar é de 90 dias (art. 412, CPP), aos quais se somaria o prazo de prisão anterior (preventiva e temporária, se houver) ao recebimento da denúncia ou queixa.
Eventuais atrasos na conclusão da instrução, se não imputáveis à defesa, não deverão ter o condão de ampliar o aludido prazo.
Todavia, quando se tratar de instrução complexa ou de pluralidade excessiva de réus, o rito ordinário poderá ser ampliado em mais 20 dias, sendo 5 para cada parte e 10 para o juiz sentenciar. Pensamos, porém, que mesmo nessas situações, ressalvadas casos excepcionais (gravidade do crime e dificuldade comprovada de produção da prova), não se deverá ampliar o prazo de 86 dias.[57]
Sentenciado o acusado, terminando assim a instrução, não há mais de se falar em excesso de prazo, como afirma a Súmula 21 (Pronunciado o réu, fica superada a alegação do constrangimento ilegal da prisão por excesso de prazo na instrução) e 52 (Encerrada a instrução criminal, fica superada a alegação de constrangimento por excesso de prazo) do Superior Tribunal de Justiça. Contudo, ante aos princípios constitucionais em jogo, e principalmente com o estado atual do Poder Judiciário, deficitário para cumprir a função que lhe fora outorgada, é de se reanalisar tais enunciados. Como afirma Luis Flávio Gomes:
Essa súmula, no entanto, não pode ter validade absoluta. Bem andou o STJ que a reinterpretou no RHC 20.566-BA. Réu que aguarda julgamento há mais de 3 anos evidentemente tem que ser posto em liberdade. A súmula não condiz, em muitos casos, com o princípio da proporcionalidade. Mostra-se inconstitucional, portanto, em muitas situações.
(...)
Cuidando-se de processo da competência do Tribunal do Júri, depois da pronúncia não se reconhecia o excesso de prazo (STJ, Súmula 21). Essa súmula deve merecer nova leitura para que seja adequada ao quadro axiológico constitucional. Na verdade, qualquer tipo de excesso de prazo não justificado ou desarrazoado deve sempre dar ensejo à revogação da prisão. As súmulas 52 e 21 do STJ foram elaboradas sob a visão eminentemente legalista. Não passaram pelo crivo de dos controles de constitucionalidade e convencionalidade. O valor de tais súmulas deve ser relativizado. O excesso de prazo e o abuso não se compatibilizam com o princípio da proporcionalidade. São inconstitucionais e inconvencionais. Tais súmulas deveriam ser canceladas. Toda medida cautelar que dura muito tempo deveria ser revisada obrigatoriamente pelo juiz. Esse dever de revisão das medidas cautelares ainda não existe.[58]
Ainda, há discussão doutrinária se tais prazos processuais deveriam ser contados isoladamente (onde o desrespeito a um deles já caracterizaria o excesso de prazo) ou globalmente (pela soma de todos os prazos processuais, onde ficaria caracterizada o excesso quando o total fosse ultrapassado). Pacelli bem explica o tema:
Por se tratar de somatório de prazos específicos, isto é, estipulados para a prática de atos processuais isolados, é perfeitamente ponderável a observação segundo a qual o excesso de prazo estaria caracterizado pelo descumprimento de qualquer um deles. Em outros termos: a contagem seria feita de modo isolado, e não globalmente.
Anota, porém, o já citado Delmanto Júnior, em obra obrigatória sobre o tema (1998, p. 218), que o entendimento francamente majoritário é no sentido da contagem global. Por contagem global deve-se reconhecer a possibilidade de manutenção da prisão, ainda que superado determinado prazo processual pela acusação, durante a instrução, ao entendimento de que, em tese, seria possível a compensação do prazo então superado, nas etapas seguintes.
Estamos em que semelhante ponto de vista pode até ser aceitável, mas unicamente como exceção, nunca como regra. Determinadas infrações penais, quando, por exemplo, praticadas com violência e/ou grave ameaça, envolvendo um número elevado de autores e partícipes, sobretudo quando reunidos em quadrilha, certamente poderiam justificar a superação de um excesso de prazo, desde que ainda possível a sua recuperação nas etapas procedimentais posteriores. Nessa situação, a complexidade da investigação e o risco potencial decorrente da soltura dos agentes reclamariam a adoção de critérios de maior flexibilidade na interpretação da lei.[59]
Por fim, impossível não trazer a crítica de Aury Lopes Júnior sobre a inércia do Poder Legislativo em estipular um prazo para a conclusão do processo penal:
Mas, concretamente, não existe nada em termos de limite temporal das prisões cautelares. Infelizmente, a cada dia, alastra-se mais no processo penal uma praga civilista, chamada de relativismo das garantias processuais.Isso vai da relativização da teoria da nulidade, passando pelas garantias processuais e fulminando até mesmo direito fundamentais. O mais interessante é a alquimia de ‘relativizar’ o que deveria ser radicalizado no viés da intagibilidade, e manter a lógica newtoniana naquilo que, sim, deveria ser relativo (tempo, verdades etc.).
Inexiste um referencial de duração temporal máxima e, cada vez mais, os Tribunais avalizam a (de)mora judicial a partir dos mais frágeis argumentos, do estilo: complexidade (apriorística?) do fato, gravidade (in abstrato), clamor público (ou seria opinião publicada?), ou a simples rotulação de ‘crime hediondo’, como se essa infeliz definição legal se bastasse, autolegitimando qualquer ato repressivo.
É óbvio que o legislador deve, sim, estabelecer de forma clara os limites temporais das prisões cautelares (e do processo penal, como um todo), a partir dos quais a segregação é ilegal, bem como deveria consagrar expressamente um ‘dever de revisar periodicamente’ a medida adotada.
No mesmo sentido, DELMANTO JUNIOR é categórico ao afirmar a necessidade de a lei estipular prazos claros e objetivos para a prisão cautelar.
Cumpre esclarecer que não basta fixar limites de duração da prisão cautelar. Sempre destacamos a existência de penas processuais, para além da prisão cautelar (punição processual mais forte, mas não única), e que resultam de todo o conjunto de coações que se realizam no curso do processo penal. Essa é uma questão inegável e inerente ao processo penal.
Estabelecida existência de uma coação estatal, devemos recordar que ela deve esta precisamente estabelecida em lei. É a garantia básica da nullacoactiosine lege, princípio basilar de um Estado Democrático de Direito, que incorpora a necessidade de que a coação seja expressamente prevista em lei, previamente e com contornos claramente definidos. Nisso está compreendido, obviamente, o aspecto temporal.
Como ensina CLAUDIO BRANDÃO, se é através da Legalidade que se limita a intervenção penal, é porque ela tem a função de garantir o indivíduo do próprio Direito Penal (e processual), delimitando o âmbito de atuação do Estado na inflição da pena. Neste espeque, podemos fazer a iliação de que é a Legalidade que torna o homem a figura central de todo o Ordenamento Penal, valorizando-o em sua dignidade.
Então, as pessoas têm o direito de saber, de antemão e com precisão, qual é o tempo máximo que poderá durar um processo concreto. Essa afirmação com certeza causará espanto e até um profundo rechaço por algum setor atrelado ainda ao paleopositivismo e, principalmente, cegos pelo autismo jurídico. Basta um mínimo de capacidade de abstração para ver que isso está presente – o tempo todo – no Direito e fora dele. É inerente às regras do jogo. Por que não se pode saber, previamente, quanto tempo poderá durar, no máximo, um processo? Porque a arrogância jurídica não quer esse limite, não quer reconhecer esse direito do cidadão e não quer enfrentar esse problema.
Além disso, dar ao réu o direito de saber previamente o prazo máximo de duração do processo ou de uma prisão cautelar é uma questão de reconhecimento de uma dimensão democrática da qual não podemos abrir mão.[60]
Como continua Aury Lopes Júnior, o Paraguai trouxe um bom exemplo de duração de um processo. Neste país, um processo penal que ultrapasse 03 anos será extinto. Explicando melhor o doutrinador:
Um bom exemplo de limite normativo interno encontramos no Código de Processo Penal do Paraguai (Ley 1286/1998), que, em sintonia com a CADH, estabelece importante instrumento de controle para evitar a dilação indevida.
O prazo máximo de duração do processo penal será de 3 anos, após o qual o juiz o declarará extinto (adoção de uma solução processual extintiva).Também fixa um limite para a fase pré-processual (a investigação preliminar), que, uma vez superado, impedirá o futuro exercício da ação penal pela perda do poder de proceder contra alguém (ius ut procedatur).
Por fim, cumpre destacar a resolução ficta, insculpida nos arts. 141 e 142 do CPP paraguaio, através do qual, em síntese, se um recurso contra uma prisão cautelar não for julgado no prazo fixado no Código, o imputado poderá exigir que o despacho seja proferido em 24h. Caso não o seja, se entenderá que lhe foi concedida a liberdade.
Igual sistemática resolutiva opera-se quando a Corte Suprema não julgar um recurso interposto no prazo devido. Se o recorrente for o imputado, uma vez superado o prazo máximo previsto para a tramitação do recurso, sem que a Corte tenha proferido uma decisão, entender-se-á que o pedido foi provido. Quando o postulado for desfavorável ao imputado (recurso interposto pelo acusador), superado o prazo sem julgamento, o recurso será automaticamente rechaçado.
O Código de Processo Penal paraguaio é, sem dúvida, um exemplo a ser seguido, pois em harmonia com as diretrizes da CADH. Trata-se, como o Brasil, de um país sul-americano, com graves deficiências na Administração da Justiça, especialmente na Justiça Penal, mas com um importante diferencial: em vez de reformas pontuais, inconsistentes e eivadas de dicotomias (uma verdadeira colcha de retalhos), muito mais sedantes e simbólicas do que realmente progressistas, partiram para um novo código, norteado pela CADH. São vantagens de uma codificação que, além de corajosamente avançada, possui um princípio unificador.[61]
Assim, tomando por base os ensinamentos esposados, afirmamos que o excesso de prazo estará caracterizado quando feridos os prazos previstos no Código de Processo Penal, observados os vetores apontados por Aury Lopes Júnior, e principalmente o princípio da proporcionalidade, caso a caso.
4.3. Da dilação indevida da prisão cautelar: manifesto constrangimento ilegal
Definido no tópico anterior o excesso de prazo, podemos afirmar que uma prisão cautelar que esteja viciada por tal excesso, na verdade, trata-se de uma dilação indevida, caracterizando manifesto constrangimento ilegal.
Por dilação indevida, têm-se, na definição de Aury Lopes Júnior:
Por dilação entende-se a (de)mora, o adiamento, a postergação em relação aos prazos e termos (inicial-final) previamente estabelecidos em lei, sempre recordando o dever de impulso (oficial) atribuído ao órgão jurisdicional (o que não se confunde com poderes instrutórios-inquisitórios). Incumbe às partes o interesse de impulsionar o feito (enquanto carga no sentido empregado por James Goldschmidt) e um dever jurisdicional em relação ao juiz.
Já o adjetivo ‘indevida’, que acompanha o substantivo ‘dilação’, constitui o ponto nevrálgico da questão, pois a simples dilação não constitui o problema em si, eis que pode estar legitimada. Para ser ‘indevida’, deve-se buscar o referencial ‘devida’, enquanto marco de legitimação, verdadeiro divisor de águas.[62]
Os principais motivos ensejadores do excesso de prazo, trazendo a dilação indevida, segundo Luis Flávio Gomes, são o excesso de trabalho do órgão jurisdicional, a defeituosa organização da Administração da Justiça, sua carência material e de pessoal, o comportamento da autoridade judicial, a conduta processual das partes, a complexidade do assunto, servindo ainda de base a duração média dos processos de mesma espécie.[63]
Contudo, o próprio doutrinador faz críticas a esses motivos:
Duas observações mais merecem citação: o excessivo volume de trabalho pode isentar o juiz pessoalmente de responsabilidade, mas de modo algum escusa o atraso da prestação jurisdicional; de outro lado, os defeitos de estrutura e de organização da Justiça não podem ser invocados como desculpa para a morosidade, o que significaria desconhecer o próprio conteúdo essencial do direito a um processo sem dilações indevidas.
O dever judicial constitucionalmente fixado de assegurar a liberdade, a justiça e a segurança dentro de um prazo razoável traz implícita a necessidade de um dotação orçamentária que possibilite o exercício da função jurisdicional com certo grau de satisfação, tal como exige o Estado Constitucional e humanista de direito.[64]
Aury Lopes Júnior também critica o excessivo volume como “desculpa” para o excesso de prazo, já que “não constitui causa de justificação a sobrecarga de trabalho do órgão jurisdicional, pois inadmissível transformar em ‘devido’ o ‘indevido’ funcionamento da Justiça.”[65]
Assim, caracterizado o excesso de prazo e a dilação indevida, fica evidenciado o constrangimento ilegal do paciente, podendo ser sanado, exofficio, pelo Magistrado, ou através do manejo de habeas corpus.
Sobre este último, o chamado remédio heroico está previsto tanto na Constituição Federal (art. 5º, LXVII) quanto no Código de Processo Penal (art. 647 e seguintes). Esta ação autônoma será cabível quando o paciente sofre violência ou coação em sua liberdade de coação, por ato ilegal ou abuso de poder.
Ainda mais, o artigo 648, inciso II, é claro ao prever a impretação de habeas corpus “quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei”.
Assim, com o manifesto ato ilegal (dilação indevida do processo), causando constrangimento ilegal ao paciente (que é tolhido de sua liberdade sem um prazo definido), o relaxamento se impõe.
4.4. Do entendimento jurisprudencial sobre o tema
Superada a definição de excesso de prazo, e demonstrado que sua caracterização traz a dilação indevida do processo e, por corolário lógico, constrangimento ilegal, impondo-se o relaxamento (ou revogação) da prisão cautelar, vejamos agora o entendimento jurisprudencial sobre o tema.
O Supremo Tribunal Federal sumulou entendimento sobre a problemática em análise.
A Súmula 697 desta Colenda Câmara afirmava que “a proibição de liberdade provisória nos processos por crime hediondos não veda o relaxamento da prisão processual por excesso de prazo.”.
Tal entendimento, conforme exposto anteriormente, afirmava a possibilidade da ilegalidade pelo excesso de prazo, independente do tipo de crime imputado ao agente. Contudo, tal súmula restou prejudicada, com a edição da Lei nº 11.464, de 28 de março de 2007, que suprimiu a vedação de liberdade provisória nos crimes hediondos.
Sobre o tema em análise, o STF já se manifestou pelo relaxamento da prisão, quando evidenciado o excesso de prazo, mesmo se tratando, como autoridade coatora, o próprio Superior Tribunal de Justiça:
HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. DEMORA NO JULGAMENTO DE HABEAS CORPUS PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. EXCESSO INJUSTIFICADO. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL. AFRONTA À GARANTIA CONSTITUCIONAL DA DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERIZADO. ORDEM CONCEDIDA. 1. É direito público subjetivo do Paciente que o julgamento de habeas corpus impetrado no Superior Tribunal de Justiça ocorra em prazo razoável. O reconhecimento da razoabilidade reclama o exame pormenorizado das peculiaridades que envolvem a situação, não havendo meios de se estabelecer, aprioristicamente, um prazo definido para a totalidade dos casos. Precedentes. 2. A determinação ao Superior Tribunal de Justiça para que aprecie habeas corpus deve ocorrer em situações excepcionais, caracterizadas por uma injustificável dilação, evitando que se estabeleça um critério discriminatório na ordem de julgamentos daquela instância. Precedente. 3. A inexistência de justificativa plausível para a excessiva demora na realização do julgamento de mérito do habeas corpus impetrado no Superior Tribunal de Justiça configura constrangimento ilegal por descumprimento da norma constitucional da razoável duração do processo (art. 5º, inc. LXXVIII, da Constituição da República), viabilizando, excepcionalmente, a concessão de habeas corpus. 4. Ordem concedida para determinar à autoridade impetrada que apresente o habeas corpus para julgamento até a quinta sessão da Turma subsequente à comunicação da presente ordem (art. 245, parágrafo único, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça).[66]
Mas podemos afirmar, haja sua competência constitucional de protetor das leis federais, que foi o Superior Tribunal de Justiça quem mais se manifestou sobre o tema, seja através de súmulas, seja através de jurisprudências.
Como anteriormente citada, a Súmula 21 afirma que “pronunciado o réu, fica superada a alegação do constrangimento ilegal da prisão por excesso de prazo na instrução”.
Juntamente com a Súmula 52, que afirma que “encerrada a instrução criminal, fica superada a alegação de constrangimento por excesso de prazo”, ambas as súmulas, a primeira de 06/12/1990, e a segunda de 17/09/1992, trazem o entendimento que seria incabível o excesso de prazo quando encerrada a instrução. Como afirmado no tópico 5.2, para que se evite a tautologia, tais súmulas merecem revisão sobre o crivo do Direito Processual Penal e Constitucional moderno.
Já a Súmula 64 do STJ afirma que “não constitui constrangimento ilegal o excesso de prazo na instrução, provocado pela defesa”. Por óbvio, sendo a própria defesa e o acusado os responsáveis pelo excesso, impossível o relaxamento da prisão, sob pena de “premiar” a ação destes que vão de encontro ao princípio da razoável duração do processo.
No mais, o STJ tem entendido pelo cabimento do relaxamento da prisão por excesso de prazo, como demonstram os recentes julgadosabaixo colacionados:
PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO DUPLAMENTEQUALIFICADO E RESISTÊNCIA. PRISÃO PREVENTIVA. EXCESSO DE PRAZO.RECONHECIMENTO. PRISÃO QUE PERDURA POR QUASE 5 ANOS. AUSÊNCIA DERESPONSABILIDADE DA DEFESA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. OCORRÊNCIA.ORDEM CONCEDIDA. 1. A celeridade processual é ideia-força imanente ao EstadoDemocrático de Direito. Hipótese em que a prisão processual searrasta por quase 5 anos.2. Por mais que os fatos envolvam 6 réus, com expedição de cartasprecatórias e interposição de recursos, tais particularidades, persi, não são suficientes para justificar a delonga de quase 5 anospara a prolação da sentença.3. Ordem concedida para relaxar a prisão do paciente, mediante termode comparecimento a todos os atos do processo.[67]
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. ROUBO CIRCUNSTANCIADO E QUADRILHA ARMADA. PRISÃO PREVENTIVA DECRETADA NOS AUTOS DE RECURSO EM SENTIDO ESTRITO INTERPOSTO PELO PARQUET. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. REITERAÇÃO DELITIVA. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. TESE DE EXCESSO DE PRAZO NA FORMAÇÃO DA CULPA. DEMORA INJUSTIFICÁVEL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. RECURSO ORDINÁRIO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. A imposição da custódia cautelar encontra-se suficientemente fundamentada, em face das circunstâncias do caso que, pelas características delineadas, retratam, in concreto, a periculosidade do agente, a indicar a necessidade de sua segregação para a garantia da ordem pública, considerando-se, sobretudo, a existência de indicativos nos autos no sentido de que a atividade delituosa era reiterada, o que evidencia a perniciosidade da ação ao meio social. Precedentes. 2. É certo que o julgamento da ação penal não tem prazo fixado na lei processual. Todavia, em se tratando de réu preso, a demora injustificável e desarrazoada para a formação da culpa, considerando-se, sobretudo, a data da prisão cautelar do Recorrente (09/09/2009), sem previsão para a conclusão do feito, consubstancia constrangimento ilegal sanável pela via do habeas corpus. 3. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade não podem ser invocados para justificar a evidente ineficiência do Estado-Juiz, que, decorridos quase quatro anos da prisão cautelar do Acusado, sequer iniciou a instrução criminal. 4. Recurso ordinário parcialmente provido para determinar a expedição de alvará de soltura em favor do Recorrente, se por outro motivo não estiver preso, a fim de que responda ao processo-crime em liberdade, sem prejuízo de que outras medidas cautelares sejam adotadas pelo Juízo condutor do feito, conforme salientado no voto.[68]
Ambos os casos colacionados trazem prisões que se arrastaram por prazo totalmente inadmissível com as garantias constitucionais inerentes a cada pessoa. Veja-se ainda que os crimes, apesar de serem graves (no primeiro caso, homicídio qualificado, e no segundo, roubo em concurso com quadrilha), não impediram o reconhecimento do excesso de prazo na prisão cautelar.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, apesar de a temática em análise não ser recente, têm se mostrado relutante para o reconhecimento do constrangimento ilegal pelo excesso de prazo. Como na jurisprudência trazida:
Habeas corpus: Impetração que tem por objetivo a revogação da prisão preventiva por excesso de prazo na formação da culpa e pela ausência dos requisitos necessários para a manutenção da custódia cautelar. Inadmissibilidade. Demora que não pode ser imputada à desídia do Juízo. Caso de notória complexidade. Observância do princípio da razoabilidade. Afastamento da alegação de excesso de prazo. Paciente denunciado porque, em tese, teria infringido o artigo 180, § 1º, por três vezes, c.c. o artigo 288, caput, e 311, todos do Código Penal. Indícios de autoria e prova da existência dos crimes. Gravidade em concreto dos delitos imputados. Necessidade da custódia para garantia da ordem pública e da paz social. Constrangimento ilegal não caracterizado. Ordem denegada, com recomendação.[69]
No caso supracitado, o paciente estava preso cautelarmente desde 01/03/2012, continuando detido até a data do writ, em 22/11/2012, ou seja, há mais oito meses, sem que o feito tivesse encerrado. Em que pese os fundamentos esposados pelo Doutos Desembargadores, entendemos que caracterizado o excesso de prazo.
Trazemos também outro recente julgado do Tribunal de Justiça Paulista:
Habeas corpus - Formação de quadrilha, receptação e adulteração de sinal identificador de veiculo. Prisão preventiva analisada em impetração anterior. Reiteração.Não conhecimento. Relaxamento da prisão preventiva, por excesso de prazo na formação da culpa. Constrangimento ilegal não caracterizado. Processo complexo, com vários réus, razoável número de testemunhas e necessidade de expedição de cartas precatórias. Aplicação do princípio da razoabilidade. Ordem conhecida em parte, com denegação na parte conhecida.[70]
Neste caso, os pacientes foram presos cautelarmente, em 22/03/2012, continuando encarcerados até a data do julgamento do habeas corpus, em 13/12/2012, ou seja, há mais de 08 meses, sem que também houvesse o fim da instrução processual. Contudo, diferente do outro acórdão colacionado, neste a votação não foi unânime, conforme o voto do Desembargador Relator Otávio Henrique. Trazendo a baila parte de seu brilhante voto:
Nas informações prestadas pela Autoridade Judiciária apontada como coatora, Sua Excelência indicou que foram expedidas cartas precatórias para oitiva das testemunhas arroladas pelas partes, aguardando-se o retorno das mesmas.
Tais Cartas Precatórias foram expedidas com o prazo de trinta (30) dias (fls. 215/218), na data de 13.06.12 e, até agora, cerca de seis meses, nada foi apresentado quanto ao cumprimento das mesmas, exceto o informe de fls. 148, que dá conta de que uma delas será cumprida à 23.04.13, ou seja, muito além do prazo fixado e também da agilidade necessária em se tratando de PACIENTES presos desde 22.03.12.
A falta de estrutura do Poder Judiciário não pode causar dano à liberdade dos PACIENTES, que, sem nada contribuir para este excesso, ficarão presos por mais de um ano e seis meses sem qualquer solução de culpabilidade dirimida.
No mesmo sentido, diante do exposto, não se pode falar na presença da razoabilidade temporal para o seguimento normal da Ação Penal, posto que tal requisito inexiste no caso em pauta, na minha ótica, em detrimento dos PACIENTES.
Este excesso de prazo viola o principio constitucional da Dignidade Humana e a ultrapassagem do tempo deve servir como fundamento para a sua preservação e as solturas ora determinadas, na minha ótica.
Os crimes podem ser graves (artigos 180, § 1º, 71 e 288, do Código Penal), situação que exige maior desempenho na elucidação dos mesmos, fato que aqui não ocorreu.[71]
Como bem apontou o I. Desembargador, a demora do Poder Judiciário não pode trazer prejuízo aos cidadãos, sob pena de ofensa ao princípio maior, qual seja, o da Dignidade da Pessoa Humana.
Lembra-se que o que se discute não é a gravidade do caso, mesmo porque nem ao menos houve eventual condenação, ainda que de primeiro grau, mas sim a dilação indevida do processo, utilizando os parâmetros anteriormente citados, e o consequente constrangimento ilegal.
Ainda que em menor quantidade quando comparada as denegações do writ impretados, ainda encontramos entendimentos no TJSP reconhecendo o constrangimento ilegal gerado pelo excesso de prazo, conforme recente julgado:
HABEAS CORPUS FURTO QUALIFICADO EXCESSO DE PRAZO CARACTERIZAÇÃO CONSTRANGIMENTO ILEGAL OCORRÊNCIA Delonga injustificada para o deslinde do feito Encerrada a audiência de instrução, determinou-se a realização de diligências, com a expedição de ofício para requisitar o laudo pericial do local do crime Depois de sucessivas requisições, cobrando a vinda do estudo técnico, não há notícia da juntada aos autos do laudo pericial, à qual se condicionou a prolação da sentença Violação ao princípio da duração razoável do processo APLICAÇÃO DAS NOVAS MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO CABIMENTO Presentes os pressupostos autorizadores da segregação provisória, impõe-se a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, previstas na novel Lei 12.403, de 2011, para garantia da ordem pública Imposição de compromisso de comparecimento periódico em juízo ORDEM DE HABEAS CORPUS CONCEDIDA, COM DETERMINAÇÃO.[72]
Nesta decisão, o paciente havia sido preso em flagrante em 16/02/2012, por um furto qualificado, sendo reincidente. A primeira audiência de instrução e julgamento ocorreu em 10/07/2012, sendo requerida diligência para a cobrança de laudo pericial acerca do rompimento do obstáculo. Tal laudo não foi juntado até o dia de 05/11/2012. Assim, o paciente ficou quase quatro meses encarcerado da data da audiência, não havendo justificativa para tal excesso de prazo, sendo evidenciado o constrangimento ilegal e sendo concedida a ordem do writ.
Assim, confirmando todo o acima exposto, pouco importa as condições subjetivas e a gravidade em abstrato do crime, mas sim, a demonstração do excesso de prazo, quando feridos os prazos previstos no CPP e observado os vetores apontados por Aury Lopes Júnior, quais sejam, a complexidade do caso, atividade processual do interessado (imputado), a conduta das autoridades judiciárias, e, principalmente, o princípio da razoabilidade, impõe-se o relaxamento da prisão cautelar.