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O caso Mariana Ferrer: existe estupro culposo?

03/11/2020 às 18:03

Resumo:


  • Recentemente houve manifestações contrárias à sentença que absolveu réu de crime de estupro de vulnerável.

  • A legislação brasileira tipifica o crime de estupro de vulnerável no art. 217-A do Código Penal, protegendo pessoas em situação de vulnerabilidade.

  • O crime de estupro de vulnerável é considerado hediondo e só é punido a título de dolo, não sendo admitida forma culposa.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O crime de estupro de vulnerável somente é punido a título de dolo (intenção), não se admitindo forma culposa (sem intenção). Logo, não existe crime de estupro culposo.

Recentemente as redes sociais foram tomadas por manifestações contrárias à uma sentença proferida pelo juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, o qual, acatando manifestação do promotor de justiça Thiago Carriço, absolveu o réu do crime de estupro de vulnerável que teria sido praticado contra a vítima Mariana Ferrer, em 16 de dezembro de 2018, no Beach Club Café de La Musique, conforme a descrição inicial do fato na denúncia.

A irresignação se deve ao fato de que o promotor teria argumentado que o réu não teria como saber que a vítima estava em situação de vulnerabilidade, circunstância que passou a ser tratada como estupro culposo, acarretando a absolvição do réu, contrariando, inclusive, a tese inicial apresentada pelo Ministério Público.

Não se pretende neste artigo discutir a prova produzida nos autos, do que não temos conhecimento – e nem poderíamos ter – já que os crimes contra a dignidade sexual, em regra, se apuram em segredo de justiça, nos termos do art. 234-B do Código Penal. Sobre o assunto, Rogério Sanches esclarece que “o aludido dispositivo, importante que se diga, foi inserido no Código Penal vigente pela Lei n. 12.015/2009, objetivando exatamente a preservação da intimidade dos envolvidos, e não apenas da vítima, quando da prática de crimes contra a dignidade sexual”.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.767.902) caminha no mesmo sentido da doutrina coalescida, tendo decidido que “o art. 234-B do Código Penal determina o segredo de justiça nos processos de apuração dos crimes contra a dignidade sexual, não fazendo distinção entre vítima e acusado. Deve o processo correr integralmente em segredo de justiça, preservando-se a intimidade do acusado em reforço à intimidade da própria vítima”.

Nosso objetivo neste estudo é comentar o tipo penal do crime de estupro de vulnerável, notadamente seus elementos objetivo e subjetivo. Essa figura típica está descrita no art. 217-A, caput, do Código Penal, o qual tipifica a conduta de “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos” e, no §1°, o que se denomina de crime equiparado, estabelece que “incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”. A pena em ambos os casos é de reclusão, de oito a quinze anos.

Conforme André Estefam , “a conjunção carnal se traduz no ato libidinoso em que ocorre a introdução do pênis na vagina (cópula vaginal), ainda que parcialmente. Atos libidinosos (diversos da conjunção carnal) são aqueles que tenham natureza sexual, como a felação, o coito anal, o beijo em partes pudendas, as carícias íntimas, etc.”.

Nesse passo, anote-se que o estupro não requer contato físico entre agressor e vítima. O Superior Tribunal de Justiça já sedimentou o entendimento de que “a maior parte da doutrina penalista pátria orienta no sentido de que a contemplação lasciva configura o ato libidinoso constitutivo dos tipos dos artigos 213 e 217-A do Código Penal, sendo irrelevante, para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e ofendido” (AgRg no REsp 1.819.419).

No que se refere ao crime do art. 217-A do Código Penal, a lei visa tutelar da dignidade sexual de pessoas em situação de vulnerabilidade, i.e., indefesas por natureza ou condição pessoal. Nesse passo, as condutas incriminadas buscam proteger (a) vítima menor de catorze anos; (b) vítima alienada ou débil mental; e (c) vítima incapaz de oferecer resistência. Nos dizeres de Nucci , “considera a lei inviável, logo, proibida, a relação sexual mantida com tais vítimas”. Dessa forma, restando caracterizada a vulnerabilidade da vítima, é inválido o seu eventual consentimento.

Assim, a prática conjunção carnal ou outro ato libidinoso com as pessoas protegidas pelo dispositivo, configura o crime estudado, independente de a vulnerabilidade ser permanente ou temporária, pois o dispositivo não faz distinção, haja vista que a condição de vulnerável deve ser aferida no momento do crime. A lei é taxativa, de modo que, havendo a pratica de ato sexual com vítima vulnerável, haverá crime.

Registre-se que o simples “estado de sono” da vítima é suficiente para que se configure o crime de estupro de vulnerável (STJ, HC 389.610), descrito no art. 217-A, §1°, do CP, pois há situação de vulnerabilidade temporária, não podendo o agente aproveitar-se dessa circunstância para a satisfação da sua libido. Nesse passo, anote-se que o crime se configura ainda que a origem da incapacidade não tenha sido provocada pelo agente, o que se aplica, além do “estado de sono”, nos casos de embriaguez, quando a vítima não puder, em razão dessa circunstância, oferecer resistência.

Frise-se que o crime de estupro de vulnerável é crime hediondo, conforme art. 1°, inc. VI, da Lei 8.072/90, ocupando o topo da pirâmide de desvaloração axiológica das condutas criminosas, sendo que o tratamento jurídico dispensado a fatos dessa natureza é mais rigoroso do que aquele dispensado aos demais crimes que não possuem esse rótulo.

Não é demais lembrar, ainda, que, como forma de evitar decisões judiciais em descompasso com a lei penal, em 2018, foi editada a Lei 13.718, acrescentando o §5°, ao art. 217-A, o qual preconiza que “as penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime”. Parece estranho, mas a Lei 13.718 veio para dizer o óbvio, i.e., aquilo que a lei já dizia.

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Quanto ao elemento subjetivo do estupro de vulnerável, o crime somente é punido a título de dolo (intenção), não se admitindo forma culposa (sem intenção). Assim, ou o fato se encaixa na descrição típica e se configura o crime, de forma dolosa, ou não. O fato é que não existe estrupo culposo. Essa invenção não encontra previsão na legislação.

Para que se possa afastar a responsabilização do agente por erro de tipo é necessário que exista prova cabal de que este não saiba – e não tenha condições de saber – estar diante de uma pessoa protegida pela lei penal, i.e., não saiba que se relaciona sexual ou libidinosamente com pessoa vulnerável, o que é elemento constitutivo do tipo penal (art. 20, CP). Nesse caso, restaria afastado o dolo de praticar crime.

Fora desse cenário – que é matéria de prova processual – resta asseverar que ou a conduta é dolosa e a subsunção se configura, ou não há dolo e o fato é atípico. Não existe estupro culposo, salvo se a sua definição for aquele em que não há a intenção de condenar o estuprador.

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Sobre o autor
William Garcez

Delegado de Polícia (PCRS). Pós-graduado com Especialização em Direito Penal e Direito Processual Penal. Professor de Direito Criminal da Graduação e da Pós-graduação da Fundação Educacional Machado de Assis (FEMA) e de cursos preparatórios para concursos públicos: Ad Verum/CERS (2018), Casa do Concurseiro (2019), CPC Concursos (2020), Mizuno Cursos (2021) e Fatto Concursos (2023). Professor de Legislação Criminal Especial do curso de Pós-graduação do IEJUR - Instituto de Estudos Jurídicos (2022) e da Pós-graduação da Verbo Jurídico (2023). Organizador e autor de artigos e obras jurídicas. Palestrante. Instagram: @prof.williamgarcez

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCEZ, William. O caso Mariana Ferrer: existe estupro culposo?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6334, 3 nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86489. Acesso em: 23 dez. 2024.

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