DELAÇÃO PREMIADA NÃO SERVE COMO JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE DE AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – AUSÊNCIA DE MATERIALIDADE DO ATO ÍMPROBO
A Lei nº 13.964/2019 alterou a redação inicial do art. 17, § 1º, da Lei nº 8.429/92, e permite que, nas ações de improbidade administrativa, haja a celebração de acordo de não persecução cível, nos termos da citada lei.
Esse fato não se discute no presente estudo, visto que o legislador passou a permitir a possibilidade da celebração de transação ou de acordos perante a Lei de Improbidade Administrativa.
Apesar de os benefícios da obtenção da delação premiada ser extensíveis ao contexto da lei de Improbidade Administrativa, por óbvio que os seus efeitos não possuem validade de meio de prova idôneo capaz de produzir indício da prática de ato ímprobo.
Ou seja, não há presunção de idoneidade na declaração do colaborador premiado, que terá, obrigatoriamente, que encontrar confirmação nos autos, elementos de provas externamente produzidos.
Assim, corroborar, aqui, é reforçar o valor probatório da versão produzida pelo colaborador; mediante a apostação de dados de uma fonte distinta (externa) que confirma ou ratifica a veracidade do que fora declarado anteriormente.
Isso porque, somente a versão do colaborador não permite que haja a deflagração de uma investigação preliminar (inquérito civil público ou inquérito policial), visando adquirir provas idôneas sobre o fato relatado.
Em abono ao que foi dito, segue o posicionamento do Min. Gilmar Mendes, na RCL nº 36.542, EXTN – NONA/PR, verbis:
“(...) é por isso que se defende que a verdadeira vocação probatória da colaboração premiada seria a autorização da deflagração de uma investigação preliminar, de modo a adquirir coisas materiais, traços ou declarações dotadas de força probatória, não podendo, portanto, servir para a utilização a priori de medidas restritivas de direitos ou da liberdade dos delitos.”
Na verdade, a versão do colaborador possui valoração inferior aos depoimentos de testemunhas, sendo imprestável às colaborações cruzadas.
Por isso, Guilherme de Souza Nucci, ao discorrer sobre o art. 3-C, § 3º, da Lei nº 12.850/2013, averbou:
“O colaborador deve narrar tudo o que sabe de ilícito, afim de verificar se tem relação com os fatos investigados. Porém, a inserção dessa norma visa evitar que se indague ou exija do colaborador outros ilícitos, que nem estejam sendo investigados. Ou seja, o delator não deve virar testemunha à disposição do órgão acusatório, narrando os fatos ou situações estranhas à própria delação. Logo, admitir a prática criminosa é primeiro passo; após apontar os cúmplices e o que cada um fez; em terceiro, demonstrar a ligação imediata entre as condutas e tudo o que está sendo pelo Estado investigado. Enfim, quer-se afastar aquela conversa informal, mesmo sob pressão, quando o declarante, interessado em acordo, fala demais e não se encaixa, depois, no perfil do colaborador com direito à premiação prevista em lei.”[xiii]
Portanto, não sendo considerado válido pela legislação como uma prova válida, o termo de colaboração, por si só, não poderá ser tido como indício da prática de ato ilícito ímprobo.
Não sendo considerado indício, por certo não poderá ser o único elemento de base de sustentação para a propositura da ação de improbidade administrativa, visto que a mesma, para ser admitida, necessariamente deve vir precedida de prova indiciária da prática do ato ímprobo.
No presente estudo não se discute a possibilidade ou não de validade em âmbito civil da utilização de colaboração premiada, mesmo porque tal matéria foi afetada a repercussão geral, como decidido no RE com Agravo nº 1.175.650/PR:[xiv]
“CONSTITUCIONAL E PROCESSO CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. UTILIZAÇÃO DE COLABORAÇÃO PREMIADA. ANÁLISE DA POSSIBILIDADE E VALIDADE EM ÂMBITO CIVIL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA.
1. Revela especial relevância, na forma do art. 102, § 3º, da Constituição, a questão acerca da utilização da colaboração premiada no âmbito civil, em ação civil pública por ato de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público em face do princípio da legalidade (CF, art. 5º, II), da imprescritibilidade do ressarcimento ao erário (CF, art. 37, §§ 4º e 5º ) e da legitimidade concorrente para a propositura da ação (CF, art. 129, §1º) .
2. Repercussão geral da matéria reconhecida, nos termos do art. 1.035 do CPC.”
Considerando-se que o acordo de colaboração premiada não é a prova da prática de um delito, mas, sim, se presta como início de base de busca de prova, o Ministro Dias Toffoli, no HC nº 12.749/PR,[xv] averbou:
“(...) 3. Considerando-se que o acordo de colaboração premiada constitui meio de obtenção de prova (art. 3º da Lei nº 12.850/13), é indubitável que o relator tem poderes para, monocraticamente, homologá-lo (art. 4º, § 7º, da Lei nº 12.850/13). 4. A colaboração premiada é um negócio jurídico processual, uma vez que, além de ser qualificada expressamente pela lei como “meio de obtenção de prova”, seu objeto é a cooperação do imputado para a investigação e para o processo criminal, atividade de natureza processual, ainda que se agregue a esse negócio jurídico o efeito substancial (de direito material) concernente à sanção premial a ser atribuída a essa colaboração. 5. A homologação judicial do acordo de colaboração, por consistir em exercício de atividade de delibação, limita-se a aferir a regularidade, a voluntariedade e a legalidade do acordo, não havendo qualquer juízo de valor a respeito das declarações do colaborador. 6. Por se tratar de negócio jurídico personalíssimo, o acordo de colaboração premiada não pode ser impugnado por coautores ou partícipes do colaborador na organização criminosa e nas infrações penais por ela praticadas, ainda que venham a ser expressamente nominados no respectivo instrumento no “relato da colaboração e seus possíveis resultados” (art. 6º, I, da Lei nº 12.850/13). 7. De todo modo, nos procedimentos em que figurarem como imputados, os coautores ou partícipes delatados - no exercício do contraditório - poderão confrontar, em juízo, as declarações do colaborador e as provas por ele indicadas, bem como impugnar, a qualquer tempo, as medidas restritivas de direitos fundamentais eventualmente adotadas em seu desfavor. 8. A personalidade do colaborador não constitui requisito de validade do acordo de colaboração, mas sim vetor a ser considerado no estabelecimento de suas cláusulas, notadamente na escolha da sanção premial a que fará jus o colaborador, bem como no momento da aplicação dessa sanção pelo juiz na sentença (art. 4º, § 11, da Lei nº 12.850/13). 9. A confiança no agente colaborador não constitui elemento de existência ou requisito de validade do acordo de colaboração. (...)”
O artigo 17, §6º, da Lei n.º 8.429/92 estabelece que a ação de improbidade administrativa seja instruída com documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da existência do ato ímprobo ou com razões fundamentadas da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas.
A delação premiada não é prova de um delito, ela é o início da busca de provas, que irão confirmar ou rejeitar os termos do conteúdo da mesma, não se equiparando a indício da prática de ato de improbidade administrativa.
A justa causa, como dito pelo Ministro Napoleão Nunes Maia Filho[xvi]
“é o ponto de apoio e mesmo a coluna mestra de qualquer imputação de ilícito, a quem quer que seja.”
Assim ficou ementado o v. acórdão do AgInt no AI em REsp nº 790.275-RJ:
1. Esta Corte Superior tem a diretriz de que a decisão de recebimento da inicial da ação de improbidade também deve ser juridicamente fundamentada, não se dispensando a criteriosa identificação da presença de justa causa.
2. A justa causa é o ponto de apoio e mesmo a coluna mestra de qualquer imputação de ilícito, a quem quer que seja. Se assim não fosse, seriam admissíveis as imputações genéricas, abstratas, desfundamentadas, deslastreadas de elementos fáticos ou naturalísticos, ficando as pessoas ao seu alcance, ainda que não se demonstrem atos subjetivos praticados por elas (AgInt noAResp 961.744/RJ, Rel. p/Acórdão Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe 03.04.2019).
3. Na presente demanda, cinge-se a controvérsia em sindicar a validade do procedimento desempenhado na Ação Civil Pública de Improbidade Administrativa, especialmente quanto aos requisitos de fundamentação da decisão que recebe ou rejeita a petição inicial.
4. Em notável julgado ilustrativo, a 1a. Turma desta Corte Superior, acompanhando voto do ilustre Ministro BENEDITO GONÇALVES, proclamou a nulidade de decisão que recebeu a inicial da ação civil pública, tendo em vista a total ausência de fundamentação, na medida em que limitou-se a dizer de acordo com os documentos, recebo a inicial, cite-se, deixando de apreciar, ainda que sucintamente, os
argumentos aduzidos pelo ora recorrente em sua defesa prévia (AgRg no REsp. 1.423.599/RS, Rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, DJe 16.5.2014).
5. Na espécie, a leitura do aresto fluminense permite verificar há apenas e tão somente extensa teorização acerca dessa importante fase inicial das ações de improbidade, sem que, contudo, se dedicasse efetivamente à espécie, restringindo-se a afirmar apenas que o respeito ao direito de ação insculpido no artigo 5º., XXXV da Constituição Federal, bem como a dilação probatória em contraditório, permitirão aos agravantes, inclusive, comprovar de forma cabal, que não estão envolvidos na situação fática que demandou todo o procedimento administrativo de investigação pelo Ministério Público Estadual (fls. 88). Se assim fosse, se inverteria o ônus da prova e se aboliria a presunção de inocência.
6. Como se vê, o julgado de origem não desce nem o mínimo às particularidades ao caso concreto quanto aos indícios de autoria e à prova da materialidade do fato, para além da justa causa de desate da ação civil pública. Este julgado se prestaria para qualquer ação de improbidade.
7. Nada se sabe a respeito dos argumentos de defesa do acusado e nem mesmo aos fatos da causa, de modo que esta Corte Superior fica impossibilitada de fazer qualquer aferição ou valoração da prova sobre o juízo de admissibilidade das Instâncias Ordinárias, até porque a argumentação do acusado contém severo ataque à sua presença no polo passivo da lide, razão pela qual o Órgão Julgador deve apresentar adequada e especificada resposta aos argumentos, acolhendo-os ou rejeitando-os. Nulificação do acórdão imponente para o caso.
8. Agravo Interno do Órgão Acusador desprovido.”
Não havendo indícios da prática de ato de improbidade em face da colaboração premiada, a petição inicial deve ser rejeitada, com esteio no disposto do § 8º, do art. 17, da Lei nº 8.429/92.
Em abono ao que foi dito, segue o voto condutor do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, nos autos do AgInt no Agravo em REsp nº 790.275/RJ:
7. Assim, se, da narrativa do Órgão Acusador, houver elementos que permitam ao julgador se convencer da ausência das condições de prosseguimento da Ação de Improbidade Administrativa – reconhecendo a inexistência do ato de improbidade, a improcedência da ação ou a inadequação da via eleita (art. 17, § 8o. da LIA) –, deverá rejeitar o processamento do feito.
8. Referido dispositivo (art. 17, § 8o. da LIA) é, sem dúvida alguma, uma conquista do garantismo inserta na própria Lei de Improbidade, pois na lição do ilustre Professor MAURO ROBERTO GOMES DE MATTOS, representa um constrangimento, de qualquer maneira, para qualquer pessoa, ser processado. Uma autoridade pública, quando é processada, tem um desgaste muito maior que qualquer cidadão, porque o simples fato de ser processado tem grande repercussão política na pessoa (O Limite da Improbidade Administrativa. Comentários à Lei 8.429/92. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 553).
9. Efetivamente, as Ações Civis Públicas de Improbidade Administrativa, por possuírem o peculiar caráter sancionador estatal, assemelham-se às ações penais e exigem, dessa maneira, um quarto elemento para o preenchimento das condições da ação - e consequente viabilidade da pretensão do autor: a justa causa, correspondente a um lastro mínimo de provas que comprovem a prática da conduta ímproba (materialidade) e indícios de autoria do imputado.
10. Com efeito, o art. 17, § 8º. da Lei 8.429/1992 permite que o Juiz estanque, de ofício, o curso da lide de improbidade, isso já no pórtico da iniciativa do autor, logo após aquele contraditório preliminar, breve e sumário, se convencido da inexistência do ato de improbidade, da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita.
11. Inegavelmente, a prudência e a diligência esperadas do promovente da sensível Ação de Improbidade também são dirigidas ao Juiz, que, na formação de um juízo preliminar de plausibilidade de sucesso da iniciativa processual, não deve se deixar impressionar pela veemência da argumentação autoral, por mais elevados que sejam os seus propósitos.
12. Não se há de perder de vista que, em todos os ramos do Direito Sancionador, devem ser sempre respeitadas as garantias que cercam o exercício do jus puniendi estatal, culturalmente consagradas no Processo Penal moderno, que agasalha a regra constitucional do devido processo legal que, uma vez desrespeitada, produz inevitavelmente a nulidade de todo o processo em que ocorreu. Corroborando esse entendimento, cumpre novamente trazer à baila a lição do douto Professor MAURO ROBERTO GOMES DE MATTOS:
O prévio juízo de admissibilidade da ação regularmente instruída segue o ritual do contraditório, no melhor estilo democrático processual, em que o autor e réu possuem a liberdade de expor suas razões da maneira mais cristalina possível, para que o magistrado possua elementos sólidos para que, em uma cognição sumária, não exauriente, possa aferir se a ação de improbidade administrativa possui elementos sólidos ou não passa de criação intelectual do seu subscritor, sem viabilidade jurídica concreta (op. cit., p. 558/560).”
Dessa forma, deve ser rejeitada a petição inicial.