4 A ADI 6.492: perspectivas e expectativas
O ministro Luiz Fux, relator do feito, indeferiu a cautelar requestada pelo requerente por entender ausentes os pressupostos autorizadores de sua concessão. Pedimos licença para achegar algumas passagens dessa decisão:
A presente ação direta de inconstitucionalidade versa alegada inconstitucionalidade de dispositivos legais inseridos no contexto do novo marco legal do saneamento básico, considerados os princípios federativo e da universalização do acesso aos serviços públicos essenciais. Não estão presentes, in casu, os requisitos necessários para concessão da tutela de urgência. O saneamento compreende o abastecimento de água potável, o esgotamento sanitário, a limpeza urbana e o manejo de resíduos sólidos, e drenagem e manejo das águas pluviais urbanas. Além de fundamental para a dignidade humana, o acesso universal ao saneamento configura premissa básica de saúde pública e agrega benefícios ao meio ambiente, ao mercado de trabalho e à produtividade de uma economia. Sua essencialidade foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas, ao declará-lo um direito humano essencial para o gozo pleno da vida e de todos os outros direitos humanos (Res. A/RES/64/292 da ONU). Nada obstante, os números ostentados pelo Brasil são vergonhosos: mais de 35 milhões de brasileiros não têm acesso à agua tratada, mais de 100 milhões não dispõem da cobertura da coleta de esgoto (46,85%) e somente 46% do volume gerado de esgoto no país é tratado, como apontam os dados oficiais recentes trazidos aos autos. A realidade alarmante de precariedade sanitária no Brasil exige uma atuação imediata, concertada e eficiente do poder público. O perigo de dano, que se configuraria no risco de perecimento do direito em caso de demora na prestação jurisdicional, afasta-se desde logo pelo cenário lastimável em que atualmente se encontra o acesso da população brasileira a esses serviços. A manutenção do status quo perpetua a violação à dignidade de milhares de brasileiros e a fruição de diversos direitos fundamentais. É como reconhece o próprio Requerente, ao aduzir que “quanto à irreparabilidade dos danos emergentes dos atos impugnados, evidencie-se que a situação atual per se já está a causar um amplo espectro de danos à população brasileira”. Some-se que a norma estipula um cronograma de implementação, cujos prazos dilargados afastam a necessidade de urgente suspensão de sua eficácia por tutela de urgência. Mesmo a obrigatoriedade de implantação de disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos até 31 de dezembro de 2020, de que trata o artigo 11 da Lei 14.026/2020, pode ser adiada pelos Municípios, respeitadas as condições legais. Sem que esteja presente o periculum in mora, não há que se conceder a medida acauteladora requerida. Tampouco resta evidenciada, in casu, a probabilidade do direito, no que se refere a um suposto conflito federativo. Como reiteradamente afirmado por este Tribunal, a Federação não pode servir de escudo para se deixar a população à míngua dos serviços mais básicos à sua dignidade, ainda que a pluralidade e especificidades locais precisem ser preservadas. A Constituição Federal expressamente estabelece, de um lado, a competência privativa da União para instituir diretrizes para o saneamento básico (art. 21, XX) e para instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos (art. 21, XIX) e, de outro, a competência comum aos entes para promover a melhoria das condições do setor (art. 23, IX). A par dessas previsões, são implicados ao saneamento diversos outros temas que competem a todos os entes, o que fundamenta a atribuição ao Sistema Único de Saúde da participação na formulação da política e da execução das ações de saneamento básico (art. 200, IV). Em que pese o saneamento seja tradicionalmente reconhecido como serviço público de interesse local, o que confere titularidade aos municípios (art. 30, V, da CRFB), por vezes o interesse comum determina a formação de microrregiões e regiões metropolitanas para a transferência de competências para Estados (art. 25, §3º, CRFB) ou o estabelecimento pela União de critérios técnicos de cooperação - mormente quando os Municípios, isoladamente, não detêm condições de prestar o serviço em todas as suas fases de forma eficiente e com a melhor relação qualidade e custo para o consumidor (BARROSO, Luís Roberto. Saneamento básico: competências constitucionais da União, Estados e Municípios. Revista de Informações Legislativas. Brasília a. 38 n. 153 jan./mar. 2002, pp. 265-267).
Da leitura desse excerto, conquanto seja uma análise preliminar e perfunctória, podemos perceber que a tendência do relator é no sentido de julgar improcedentes os pedidos deduzidos na petição inicial. Com efeito, o Partido Democrático Trabalhista – PDT ajuizou a citada ADI 6.492 e, no mérito, requereu no ponto que de fato interessa:[9]
V) Seja a presente Ação Direta de Inconstitucionalidade conhecida e julgada procedente para que seja declarada, ao final, a inconstitucionalidade dos artigos Art. 3º, 5º, 7º e 11º e 13º, dentre outros por arrastamento, todos da Lei 14.026/2020, todos da Constituição Federal de 1988, com eficácia erga omnes e efeito vinculante em relação à Administração Pública e ao Poder Judiciário, e, consequentemente, a sua extirpação do ordenamento jurídico pátrio. Outrossim, para que também se possa conferir interpretação conforme à Constituição à nova redação conferida pela Lei nº 14.026/2020 ao art. 22, IV, da Lei 11.445/2007 para que além da licitante vencedora não poder excluir das avenças os Municípios que não darão lucro, as tarifas subam de acordo com o salário mínimo, para fins de conferir efetivo prestígio aos princípios constitucionais que orbitam pela temática posta à apreciação, notadamente para que o discurso da universalização do serviço de saneamento básico não repouse apenas na seara retórica, de modo a garantir que os cidadãos não sejam onerados com a intensificação da mercancia da água, direito fundamental inalienável e irrenunciável.
O requerente sustenta as suas pretensões, basicamente, em dois fundamentos: a) suposta violação do princípio constitucional da autonomia federativa dos Municípios e b) a ameaça ao direito público subjetivo coletivo ao saneamento básico, universal e de boa qualidade.
Sem embargo dos bem lançados argumentos deduzidos na petição inicial, em nossa avaliação os pleitos devem ser rechaçados e os fundamentos normativos, assim como os argumentos jurídicos, esgrimidos pelo requerente ne se sustentam, seja em face da Constituição, seja em face dos pertinentes julgados do STF, como bem assinalou o ministro Luiz Fux no seu despacho indeferindo a liminar requestada. Tenha-se, ademais, que o próprio requerente reconhece a situação caótica, desumana e incivilizada do atual estágio do modelo de saneamento básico brasileiro e que urge uma ação urgente e contundente da República (União, Estados, Municípios e Distrito Federal) em sintonia com os agentes privados do mercado em favor de uma guinada nesse tema.
Nessa perspectiva, as novas atribuições cometidas à ANA não agridem a autonomia constitucional federativa dos Municípios, posto que estes continuam como titulares do serviço público de saneamento básico, mas devem estar em harmonia com as diretrizes nacionais que serão estabelecidas pela ANA, em conformidade com a Constituição e com a legislação infraconstitucional. E também não há qualquer ameaça ao direito público subjetivo coletivo à universalização e qualidade dos serviços de saneamento básico, mormente para as populações de baixa renda, sobretudo porque seja na legislação, seja na prática regulatória e fiscalizatória da Agência, há uma forte preocupação com o usuário/destinatário dessa civilizatória e humanizadora prestação de serviços, na linha democrática de atuação subsidiária do Estado.
5 Conclusões
A Lei 14.026/2020, que atualiza o marco legal do saneamento básico, consiste em poderoso avanço civilizatório da sociedade brasileira, fruto de um saudável concerto político para enfrentar e resolver o dramático problema de universalização e de boa qualidade desse serviço público.
A tradição jurisprudencial do STF reconhece a titularidade do serviço aos Municípios, mas não proíbe que esses se reúnam para que consigam prestá-lo de modo universal e com boa qualidade para as suas respectivas populações, sobretudo em face da complexidade e dos altos investimentos necessários para essa finalidade.
Com lastro na Constituição, na jurisprudência do STF e na realidade, acreditamos que a ADI 6.492 deverá ser julgada improcedente, pois a ANA, ao contrário de usurpar as competências municipais ou de colocar em risco esse direito público subjetivo coletivo, será a principal fiadora e garante da sua expansão nacional e da boa qualidade para os seus usuários, mormente para as populações mais carentes.
Notas
[3] JEREISSATI, Tasso. Relatório e voto no Projeto de Lei n. 4.162/2019. Senado Federal. Brasília, 2020 (www.senado.leg.br).
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.492. Plenário. Relator ministro Luiz Fux. Brasília, 2020 (www.stf.jus.br).
[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.842. Plenário. Relator ministro Luiz Fux. Redator ministro Gilmar Mendes. Brasília, 1998 (www.stf.jus.br).
[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.454. Plenário. Relatora ministra Cármen Lúcia. Brasília, 2010 (www.stf.jus.br).
[7] ZULIANI, Geninho. Relatório e voto. Projeto de Lei n. 3.261/2019 (posteriormente apensado ao Projeto de Lei n. 4.162/2019). Câmara dos Deputados. Brasília, 2019 (www.camara.leg.br).
[8] Para comprovar essa asserção visite www.camara.leg.br e www.senado.leg.br e lance o termo “saneamento básico” como argumento de busca.
[9] AGRA, Walber de Moura. Petição inicial. Ação direta de inconstitucionalidade n. 6.492. Supremo Tribunal Federal. Brasília, 2020 (www.stf.jus.br).