Em julgamento realizado no final de 2020 (REsp 1.894.715/MS), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reformou acórdão do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul que havia julgado extinta, em vista da cláusula arbitral do contrato de afretamento, uma ação movida pelo armador contra o afretador para pagamento de valores devidos no âmbito do contrato de afretamento.
Os fundamentos para permitir que o processo seguisse foram que o afretador teria renunciado tacitamente à cláusula arbitral ao ajuizar, anteriormente, ações judiciais contra o armador perante a Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul e, ainda, que isso corresponderia a um comportamento contraditório que violaria o princípio da boa-fé objetiva (nemo potestvenire contra factum proprium).
Um armador apresentou para protesto, junto a um cartório de protestos, algumas faturas não pagas pelo afretador referentes a valores devidos no âmbito do contrato de afretamento. O protesto é uma exigência, em certos casos, para que o credor possa requerer a falência do devedor e, além disso, também torna a dívida pública para o mercado, entre outras consequências.
Para evitar o protesto, o devedor deve pagar a dívida dentro de um prazo após ser notificado pelo cartório ou obter uma decisão impedindo o protesto. No caso em questão, segundo o acórdão do STJ, o afretador teria ajuizado uma ação cautelar de sustação de protesto para obter uma liminar impedindo sua realização e, posteriormente, uma ação declaratória de inexigibilidade da dívida. O acórdão, contudo, não indica o resultado desses processos.
Posteriormente, o armador ajuizou uma ação monitória perante a Justiça do Mato Grosso do Sul para a cobrança das mesmas faturas. O afretador alegou a incompetência do Juízo estatal em favor da arbitragem prevista no contrato de afretamento. O Juízo de 1ª instância e o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul decidiram que as ações anteriores não equivaleriam a uma renúncia, pois, em sua defesa na ação monitória, o afretador havia expressamente requerido a solução do litígio por meio de arbitragem.
O Superior Tribunal de Justiça, como mencionado, anulou a decisão do Tribunal do Mato Grosso do Sul e permitiu que o processo prosseguisse. Considerou que o afretador havia renunciado tacitamente à cláusula arbitral ao iniciar as ações anteriores e, também, que este era um comportamento contraditório que violaria o princípio da boa-fé objetiva. Ele não levou em consideração, no entanto, o fato de que as discussões de todos os processos tinham como objeto as mesmas faturas, de forma que se presume que o resultado seria o mesmo se a ação do armador estivesse relacionada a outras obrigações decorrentes do contrato de afretamento.
O acórdão do STJ não surpreende, mas serve como alerta de que todo cuidado deve ser tomado ao buscar a intervenção do Poder Judiciário quando há cláusula arbitral no contrato com o réu.
O ajuizamento de ação judicial para obter tutela de urgência não importa em renúncia à cláusula arbitral, conforme expressamente previsto no artigo 22-A da Lei de Arbitragem (Lei 9.307/96). O Superior Tribunal de Justiça já decidiu tal questão especificamente em relação a uma ação cautelar de sustação de protesto em 2017 (REsp 1.694.826/GO).
No entanto, o autor de uma tal ação judicial deve iniciar a arbitragem dentro de 30 dias e, após formado, o tribunal arbitral terá competência para confirmar, revogar ou alterar a ordem provisória do Poder Judiciário, de acordo com os artigos 22-A e 22-B da Lei. Tais dispositivos foram incluídos na referida Lei na reforma de 2015, mas apenas positivaram o que a jurisprudência já entendia anteriormente.
No caso, o afretador optou por ajuizar a ação principal perante a Justiça e esse acórdão do STJ mostra claramente que o ato de provocar a Justiça estatal para a obtenção de uma tutela definitiva, mesmo que declaratória, deve ser interpretado como uma renúncia à cláusula arbitral, deixando o autor da ação exposto a enfrentar litígios na Justiça pela(s) outra(s) parte(s) do contrato.