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Crimes de guerra: genocídio

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26/02/2021 às 14:50

Resumo:


  • O genocídio é uma prática antiga, remontando à Antiguidade, e foi reconhecido como crime de Direito das Gentes em convenções internacionais.

  • O Tratado de Versalhes, de 1918, foi um marco inicial na busca por punir os crimes de guerra, culminando na criação de um Direito Penal Internacional.

  • O conceito de genocídio, nos moldes atuais, foi introduzido por Raphael Lemkin em 1944, e o Estatuto de Londres, constitutivo do Tribunal de Nuremberg, foi importante na tipificação do crime de genocídio dentro dos crimes contra a humanidade.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Principais aspectos relacionados ao genocídio, um dos crimes de guerra mais antigos da história.

1. Evolução histórica:

A prática genocida, isto é, a intenção deliberada de se destruir um grupo étnico, nacional, racial ou religioso, remonta à Antiguidade, havendo citações bíblicas referentes à destruição de determinados povos na China e na Índia. Florestan Fernandes da Silva sustenta que a prática genocida é tão antiga quanto a própria humanidade, confundindo-se com ela, uma vez que a ideia de exterminar um grupo diverso é inerente à condição humana¹. Para Carlos Canêdo, o genocídio ocorreu ao longo de toda história ao redor do mundo². 

Carlos Eduardo Adriano Japiassú afirma que o termo “crimes contra a humanidade” é conhecido desde a IV Convenção de Haia de 1907, referente às leis e aos costumes de guerra terrestre³.

O Tratado de Versalhes, datado de 1918, celebrado entre as potências aliadas e a Alemanha, foi o primeiro  passo  concreto  dado  no   sentido   de   se   buscar  punir a prática de  crimes  de  guerra 4.  Contudo,  o  resultado  não  foi  satisfatório,  de  modo  que  a comunidade internacional passou a clamar pela criação de um Direito Penal Internacional.

Dentro desse panorama, a Organização das Nações Unidas elaborou um projeto de convenção acerca do crime de genocídio, incorporado na Resolução n. 96, de 11 de dezembro de 1946, que dispunha: “Reconhece que o genocídio é um delito  do Direito das Gentes, condenado pelo mundo civilizado, cujos principais autores e cúmplices, sejam pessoas privadas, funcionários ou representantes oficiais do Estado, devam ser castigados, por terem obrado por razões sociais, religiosas, políticas ou outras”.

Em 09 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou, por meio da Resolução n. 260-A, a “Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio”.

O conceito de genocídio, nos moldes que conhecemos, apareceu pela primeira vez com o polonês Raphael Lemkin, em 1944, ao término da Segunda Guerra Mundial. Para ele, o genocídio consiste na destruição de uma nação ou de um grupo étnico.

No Estatuto de Londres, constitutivo do Tribunal de Nuremberg, não houve a previsão expressa do crime de genocídio, que teve seu tipo penal inserido dentro dos crimes contra a humanidade 5. De acordo com Carlos Canêdo, “o Estatuto menciona duas espécies de crimes contra a humanidade: os atos inumanos cometidos contra a população civil, tais como assassinato, extermínio, a redução à escravidão e a deportação; e a persecução por motivos políticos, raciais ou religiosos, encontrando-se  aqui o embrião da configuração jurídica do crime de genocídio.” 6

Dessa maneira, o art. 6º do Estatuto do Tribunal de Nuremberg previu que poderiam ser julgados aqueles que cometeram crimes de guerra, crimes contra a paz e crimes contra a Humanidade, devendo a responsabilidade dos autores ser apurada concomitantemente como indivíduos e como membros de organizações, conforme previsão do art. 4º do mesmo Estatuto.

Inegável evolução foi trazida pelo Estatuto de Roma, no art. 6º que tipificou o crime de genocídio: “Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "genocídio", qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal: a) Homicídio de membros do grupo; b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo.”

    1.1 A Internacionalização dos Direitos Humanos:

Para a doutrina dominante, a internacionalização dos Direitos Humanos, nasce com a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 7, surgindo como consequência imediata às barbáries ocorridas durante a 2ª Segunda Guerra Mundial.

O indivíduo passa a ser concebido como sujeito de Direito Internacional e a ter proteção internacional no que atine aos direitos de primeira dimensão, independentemente de sua nacionalidade.

A Declaração de Viena de 1993 também auxiliou na ideia de universalização dos Direitos Humanos, reconhecendo a interdependência entre Direitos Humanos, democracia e desenvolvimento, apontando a democracia como o regime político mais compatível com a proteção dos Direitos Humanos.

Com o reconhecimento da universalização dos Direitos Humanos e a sua consequente internacionalização, surgiu a necessidade de se complementar a compatibilização entre as jurisdições interna e internacional, de modo a se proporcionar a sua eficácia jurídica.

O Brasil só veio a participar mais incisivamente de políticas de proteção internacional dos direitos humanos apenas com o final do regime militar, isto é, em meados da década de 1980, ratificando e incorporando tratados e convenções internacionais sobre o tema.   

1.2  Convenção para Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio:

Datada de 1948, a Convenção para Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio é composta de um preâmbulo, de dezenove artigos e tem como idiomas oficiais o inglês, o chinês, o espanhol, o francês e o russo.

No nosso país, a convenção foi ratificada pelo Decreto n. 30.822, de 1.952 e, em decorrência dela, foi promulgada a Lei n. 2.889/56.

O preâmbulo declara que o genocídio é um crime de direito dos povos e coloca a  cooperação  internacional  como  necessária  para  libertar  a  humanidade  de  “um flagelo tão odioso”.

O primeiro artigo dispõe que os Estados signatários se comprometem a prevenir e a punir o crime de genocídio, que pode ocorrer em tempos de paz ou de guerra.

Consistem em atos genocidas, de acordo com o segundo artigo, os praticados com a intenção de destruir total ou parcialmente um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Os atos elencados são: a) assassinatos dos membros do grupo; b) atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo; c) submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial; medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo.

São passíveis de punição o genocídio, o acordo com vista a cometê-lo, o incitamento direto e público ao crime, a tentativa de cometê-lo e a cumplicidade (art. 3º).

Qualquer pessoa pode ser punida pelo crime, eliminando justificativas que retirassem a gravidade e a possibilidade de indivíduos imunes à punição (art. 4º).

O artigo quinto preceitua que as partes contratantes têm de adotar medidas legislativas necessárias a assegurar a aplicação das disposições da Convenção e a prever sanções penais eficazes para os responsabilizados pelo crime de genocídio.

Os julgamentos do genocídio devem ocorrer em tribunais competentes do Estado em cujo território o ato foi cometido ou pelo tribunal criminal internacional  que tiver competência quanto às partes contratantes que tenham reconhecido a sua jurisdição (art. 6º).

O artigo sétimo repudia a ideia do genocídio se tratar de crime político, justamente para evitar a recusa da extradição com base nesse argumento.

No artigo oitavo, consta que os Estados contratantes, em caso de genocídio, podem socorrer-se dos órgãos competentes da Organização das Nações Unidas (ONU) para que tomem estes as medidas adequadas.

O artigo nono prevê a submissão à Corte Internacional de Justiça em casos de divergência entre os contratantes, no que diz respeito à interpretação, aplicação ou execução da Convenção.

Os demais dispositivos tratam de aspectos formais da Convenção.


2. Mandados de criminalização e o crime de genocídio:

O mandado de criminalização referente aos crimes hediondos está previsto no art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal: “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. E apenas com o advento da Lei n. 8.072/90 que o genocídio começou a integrar o rol dos crimes hediondos e a receber as consequências relacionadas.

2.1  Bem jurídico:

Para Leila Hassem da Ponte, “partindo-se da concepção – de que o conceito de bem jurídico deve estar atrelado à Constituição Federal –, constata-se que a definição e delimitação do bem jurídico-penal protegido no crime de genocídio não se afigura como tarefa fácil, na medida em que se trata de delito que possui particularidades próprias, podendo ser classificado como crime internacional contra a humanidade, por meio do qual o legislador busca proteger não apenas a vida ou a integridade física ou mental das pessoas atingidas, mas a própria existência de determinado grupo étnico, cultural, religioso ou segmento social. Urge destacar que o crime de genocídio supera a noção de vida em sentido restrito – a vida de um indivíduo –, pois busca punir o ataque à vida de um grupo de pessoas e não a violação à vida do ser humano,  considerado isoladamente, vinculando-se à ideia de limpeza étnica (...) Depreende-se, assim, que as ações que configuram o genocídio não se dirigem, em um primeiro momento, contra a vida ou a integridade do indivíduo, mas sim contra grupo de pessoas na sua totalidade, à qual aquele indivíduo pertence. O bem jurídico protegido, pois seria a vida em comum à qual o indivíduo integra”. 8   

No genocídio, o que se busca é “negar a vida a um grupo”, e no homicídio, “negar a vida a uma pessoa”. 9    

O bem jurídico então tutelado seria um bem jurídico coletivo, isto é, a existência de um grupo nacional, racial, étnico ou religioso.

Há, entretanto, quem discorde disso. João Batista Klautau Leão afirma que são protegidos bens jurídicos individuais, quais sejam, a vida, a integridade física e liberdade, de acordo com o comportamento que se tenha em vista.

Carlos Canêdo, além da vida e da integridade física, cita a humanidade como bem jurídico tutelado.  10     

2.2   Projeto de Reforma do Código Penal:

No Projeto de Reforma do Código Penal, há previsão do Título XVI, Crimes Contra os Direitos Humanos, no qual está inserido o Capítulo I, com a denominação crimes contra a humanidade. Neste capítulo, de forma inovadora, existe a conceituação de crimes contra a humanidade no art. 458:

“São crimes contra a humanidade previstos neste Capítulo os praticados no contexto de ataque sistemático dirigido contra população civil, num ambiente de hostilidade ou de conflito generalizado, que corresponda a uma política de Estado ou de uma organização.

Parágrafo único. Quando presentes as circunstâncias referidas no caput, serão considerados crimes contra a humanidade as condutas descritas nos Títulos dos crimes contra a vida e contra a dignidade sexual”.

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E, por sua vez, o art. 459 do Projeto, com o nomen iuris de genocídio:

“Praticar as condutas descritas nos incisos abaixo com o propósito de destruir, total ou parcialmente, um grupo, em razão da sua nacionalidade, idade, idioma, origem étnica, racial, nativa ou social, deficiência, identidade de gênero ou orientação sexual, opinião política ou religiosa:

I-matar alguém;

II-ofender a integridade física ou mental de alguém;

III-realizar qualquer ato com o fim de impedir ou dificultar um ou mais nascimentos, no seio de determinado grupo;

IV-submeter alguém a condição de vida desumana ou precária; ou

V-transferir, compulsoriamente, criança ou adolescente do grupo ao qual pertence para outro:

Pena – prisão, de vinte a trinta anos, sem prejuízo das penas correspondentes aos outros crimes.

Ainda no Projeto, o art. 460 pune com prisão de dez a quinze anos a associação de três ou mais pessoas para o genocídio. No art. 461, há disposição do crime de extermínio, com a privação de acesso a água, alimentos, medicamentos ou qualquer outro bem ou serviço do qual dependa a sobrevivência de grupo de pessoas, visando causar-lhes a morte (prisão de vinte a trinta anos).


3.  O genocídio no Brasil:

No nosso ordenamento, o genocídio está previsto na Lei nº 2.889/56:

“Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:  a) matar membros do grupo;

b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;

c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;

d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;

e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo (...)”.

As penas aplicadas são as dispostas no Código Penal para tipos diversos. A adoção de tais preceitos secundários é duramente criticada pela doutrina, uma vez que representaria afronta ao princípio da proporcionalidade, por tratar com a mesma pena um autor de crime contra a humanidade e um criminoso comum.  

No artigo segundo da lei, é punida a associação de três ou mais pessoas para o cometimento dos crimes mencionados no artigo anterior.  

Já no artigo terceiro, é punida a incitação pública e direta de alguém ao cometimento do crime.

No artigo quarto, consta uma causa de aumento de 1/3 (um terço) em caso de crime perpetrado por funcionário público ou governante.

A tentativa é punida com pena de 2/3 (dois terços) do respectivo crime (art. 5º).

E, por derradeiro, o artigo sexto preceitua que os crimes tratados na lei não serão considerados crimes políticos para efeito de extradição. 

No Código Penal Militar, o crime de genocídio é previsto no art. 208, quando seu cometimento se dá em tempo de paz, e nos artigos 401 e 402, quando em tempo de guerra.

3.1. Direito Estrangeiro:

Em Portugal, o art. 239 do Código Penal Português, de 1982, tratava do crime de genocídio. Todavia, tal dispositivo foi revogado pela Lei n. 31/2004, que procurou adequar a legislação penal portuguesa ao Estatuto do Tribunal Penal Internacional.

O Código Penal espanhol recebeu forte influência da Convenção para a Prevenção e Repressão do crime de genocídio, mas Carlos Canêdo aponta uma diferença fundamental: na legislação espanhola, a redação está no singular. Assim, de acordo com tal legislação, basta que as condutas características do crime se voltem a um único membro do grupo, desde que a finalidade seja destruir, total ou parcialmente, o grupo. 11   

A Argentina ratificou a Convenção para a Prevenção e Repressão do crime de genocídio. Contudo, ao contrário de toda América do Sul, não disciplinou o tema em sua legislação interna. 12

O Código Penal paraguaio, de 1997, tipificou os crimes de genocídio e de guerra em seu próprio texto, mas a crítica que é feita é que não existe uma previsão de pena máxima para esses delitos, tão somente, menciona-se que a pena de prisão não pode ser inferior a cinco anos. Haveria, portanto, um desrespeito ao princípio da legalidade. 13. Ressalva-se que o art. 38 do Código Penal daquele país dispõe, de maneira genérica, que as penas privativas de liberdade terão duração máxima de vinte e cinco anos.

Em Israel, a Lei n. 5.710/50 faz alusão à Convenção para descrever os atos de genocídio. Entretanto, é prevista a pena de morte. 14

Na Alemanha, a previsão do genocídio está em consonância com o disposto no Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional. 15

Na França, também houve o socorro à Convenção, sendo que o delito de genocídio é tipificado no Código Penal francês. E, ainda, em referido ordenamento, há previsão de responsabilidade penal objetiva, uma vez que pune a simples participação no grupo, sem a necessidade da prática efetiva de um ato. 16

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Sobre o autor
Renne Müller Cruz

Delegado de Polícia em São Paulo. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pelo Complexo Jurídico Damásio de Jesus. Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com a obtenção de Nota Máxima pela Defesa da Dissertação: "O descompasso entre o princípio da intervenção mínima e a Lei das Contravenções Penais".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Renne Müller. Crimes de guerra: genocídio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6449, 26 fev. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88730. Acesso em: 22 dez. 2024.

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