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Extinção de contrato coletivo de assistência à saúde:

obrigação da operadora de oferecimento de planos individuais aos beneficiários

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29/09/2006 às 00:00
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4. A regra dos arts. 30 e 31 da Lei 9.656/98

A importância da manutenção da assistência à saúde aos consumidores de planos coletivos foi uma preocupação do legislador, ao estabelecer o marco regulatório da prestação dos serviços de saúde suplementar. Na Lei n. 9.656/98, de fato, encontramos duas situações específicas em que o legislador revelou sua preocupação em não deixar desamparado o contribuinte de plano coletivo. A primeira é a perda do vínculo trabalhista (rescisão ou exoneração do contrato de trabalho sem justa causa), disciplinada no art. 30, e, a segunda, refere-se à hipótese de aposentação do empregado. Em ambas as situações, é garantida ao contribuinte o direito de manter a condição de beneficiário, nas mesmas condições anteriores à dispensa ou aposentadoria (desde que preenchidas algumas condições).

Essas regras, como se disse, revelam a preocupação do legislador em não deixar desamparado o consumidor de plano de saúde na modalidade de contratação coletiva. O legislador teve em mente a intenção de prolongar a obrigação da operadora, quanto à continuidade na prestação dos serviços ao empregado demitido ou aposentado, de forma a não frustrar suas expectativas de segurança quanto à eliminação de riscos à sua saúde, que tinha ao ingressar no contrato coletivo. O legislador, é sabido, não incluiu regra protetiva semelhante para os casos da própria extinção do contrato coletivo, obrigando a operadora a oferecer planos individuais aos beneficiários originários (do plano coletivo). Certamente não divisou, na época da edição da lei, que a extinção do contrato coletivo por desligamento da empresa empregadora (estipulante) poderia vir a ser situação com certa freqüência. Mas, ainda que não tenha feito referência expressa à hipótese de extinção do contrato coletivo, por retirada ou inadimplência da empresa estipulante, ao Juiz cabe aplicar o mesmo princípio protetivo presente nos artigos 30 e 31 da Lei 9.656/98, utilizando-se de interpretação analógica. O Juiz não pode se substituir ao legislador, mas quando este não regula situação específica, aquele pode formular a regra de direito aplicável ao caso concreto, recorrendo à analogia, como lhe permite o art. 126 do CPC.

A necessidade de se proteger o consumidor de plano coletivo extinto reclama a aplicação, por analogia, dos dispositivos legais que lhe conferem continuidade na fruição dos serviços de saúde a cargo da operadora. Para evitar que certos eventos, a exemplo do desligamento da empresa estipulante, coloquem em risco a continuidade e qualidade do atendimento à saúde dos usuários, o jurista tem que fazer opção pela construção da solução jurídica mais justa.


5. A Resolução n. 19 do CONSU

Ainda que o legislador brasileiro, ao regular os planos e seguros privados de assistência à saúde, não tenha tratado da situação específica da extinção do plano por desligamento ou inadimplência da empresa ou associação estipulante, os princípios e regras de proteção ao consumidor impõem a continuidade da prestação dos serviços a cargo da operadora, por meio de oferecimento de apólices individuais aos beneficiários titulares do plano extinto.

O Conselho de Saúde Suplementar - CONSU, órgão instituído pela Lei n.º 9.656/98, para desempenhar as atribuições normativas da prestação do serviços de saúde suplementar – antes da criação da ANS [15] -, levou em consideração a importância da manutenção da assistência à saúde aos consumidores de planos coletivos e baixou resolução estabelecendo como obrigação das operadoras a absorção do universo de consumidores oriundos de planos coletivos liquidados ou encerrados. De fato, a Resolução n. 19 do CONSU [16] estabelece no seu art. 1º. que:

"As operadoras de planos ou seguros de assistência à saúde, que administram ou operam planos coletivos empresariais ou por adesão para empresas que concedem esse benefício a seus empregados, ou ex-empregados, deverão disponibilizar plano ou seguro de assistência à saúde na modalidade individual ou familiar ao universo de beneficiários, no caso de cancelamento desse benefício, sem necessidade de cumprimento de novos prazos de carência".

O parágrafo segundo desse mesmo artigo estende a obrigação da operadora, quanto à continuidade da prestação dos serviços de assistência à saúde, a todo o grupo familiar vinculado ao beneficiário titular.

Como se vê, se por qualquer motivo o plano coletivo vem a ser encerrado, aos beneficiários deve ser assegurada a opção pela continuidade da prestação dos serviços em planos individuais, devendo o empregador (estipulante) informar aos seus empregados no prazo oportuno para que possam exercer essa opção (art. 2º. e parágrafo único).

A Resolução n. 19 do Consu contém apenas um único dispositivo que deve ser afastado, por ser contrário às disposições e princípios da Lei 9.656/98 e do CDC. Trata-se do seu art. 3º., que dispensa da obrigação da continuidade da prestação dos serviços, em caso de cancelamento do contrato coletivo, as operadoras que não mantenham plano na modalidade individual ou familiar. Tal artigo é incompatível com o princípio da conservação do contrato de consumo de longa duração e representa uma válvula de escape para operadoras, para fugirem às suas obrigações de continuidade da prestação do serviço de assistência à saúde. Entendemos inclusive que a ANS deve negar autorização para funcionamento de operadora que pretenda atuar no mercado somente oferecendo plano de contratação coletiva, justamente para evitar prejuízo para consumidores em caso de cancelamento do plano.

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6. O dever da operadora de oferecer planos individuais na hipótese de cancelamento do contrato coletivo - a posição da jurisprudência

A jurisprudência mais abalizada já vem reconhecendo que a operadora, em todo e qualquer caso em que ocorra o encerramento ou cancelamento do plano coletivo, por razões outras que não a falta de pagamento ou desistência por parte dos beneficiários, está obrigada a dar continuidade à prestação dos serviços de assistência à saúde, através de novos planos individuais. Expressiva dessa posição é o aresto abaixo ementado:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL – CONTRATO DE PLANO DE SAÚDE – NOVA CONTRATAÇÃO – MERA CONTINUAÇÃO DO CONTRATO ORIGINALMENTE PACTUADO – APROVEITAMENTO DE CARÊNCIA DO PLANO ANTERIOR.

Quando há encerramento do plano de saúde coletivo e esse vem a ser cancelado, tem o segurado o direito de optar pela continuação de cobertura de plano individual. As empresas que atuam no setor de planos de seguro e assistência à saúde suplementar devem garantir ao consumidor, no caso de cancelamento de seguro de saúde empresarial, um plano de saúde individual ou familiar e aproveitar o prazo de carência já contado durante o plano de saúde empresarial. Recurso improvido. Unânime (TJDF, Ap. Cív. 2001.01.1.103462-7, 6ª. Turma Cível, rel. Des. Otavio Augusto, j. 08.11.04).


7. Conclusão

A operadora não se libera do vínculo com os beneficiários do plano, vínculo esse criado com a contratação original, mas que se perpetua em relação a cada um dos consumidores. O plano coletivo, embora negociado e contratado exclusivamente com a empresa estipulante, gera um vínculo para com outras pessoas, os segurados, que têm direitos de exigir a prestação dos serviços contratados em seu favor.

Quando a empresa que assume a "co-participação" no pagamento do plano torna-se inadimplente, deixando de pagar a parcela (ou parcelas) do prêmio a que está obrigada, a operadora assume a responsabilidade de disponibilizar planos de saúde individuais para os segurados, com o mesmo padrão de atendimento e cobertura, desde que estes complementem o preço, assumindo integralmente os custos com o pagamento da mensalidade. Se ocorre, por outro lado, a hipótese de a empresa empregadora contratante, ao final do prazo inicial de vigência do contrato coletivo de saúde, não mais desejar permanecer com a obrigação da "co-participação" - que é a parte efetivamente paga por ela como contraprestação aos serviços de saúde prestados aos seus empregados -, pode livrar-se do vínculo a partir de então (do término do prazo inicial de vigência), mas a operadora permanece vinculada, com essa mesma obrigação - de oferecer planos individuais aos beneficiários do plano extinto-, com idêntica amplitude de cobertura, assumindo os empregados o percentual antes suportado pela empresa (estipulante) empregadora.

O direito de permanência do vínculo com a operadora, em qualquer caso, se estende aos dependentes dos titulares do plano de saúde coletivo cancelado.

A transferência do contrato coletivo para contratos individuais deve manter integralmente as condições contratuais, sem restrição de direitos ou prejuízos para os beneficiários.

Os novos contratos individuais não podem impor carências ou cobertura parcial temporária aos beneficiários, exceto com relação às carências ainda não cumpridas e coberturas não previstas no contrato coletivo anterior.

Os novos contratos individuais devem incluir cláusula que garanta a manutenção do valor da contraprestação pecuniária que vinha sendo praticada pela operadora anteriormente, por ocasião da vigência do plano coletivo, proporcionalmente a cada beneficiário.

A partir da transferência, os contratos devem obedecer à sistemática prevista para os planos de contratação individual ou familiar, no que se refere ao percentual de reajuste. O reajuste da prestação mensal do plano/seguro saúde, sob a nova apólice, só poderá ocorrer nos mesmos percentuais estabelecidos pela ANS para planos individuais, aplicáveis na data base prevista como de reajuste anual do plano.


Notas

  1. Para efeito deste artigo, não fazemos distinção prática ou jurídica entre plano ou seguro saúde, pela razão de que a MP 1.976, que alterou dispositivos da Lei 9.656/98, passou a definir os planos e os seguros-saúde como uma categoria contratual única, alterando o art. 1º da referida lei para denominá-los simplesmente de "plano privado de assistência à saúde", definindo-o como a "prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso e pagamento direto ao prestador", "por conta e ordem do consumidor" (esta parte final foi resultado da MPV n. 2.177-44, de 24.8.2001) (art. 1º., I).
  2. Faça-se referência a julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte que entendeu pela validade da rescisão de seguro-saúde coletivo por iniciativa da seguradora, em razão da falta de interesse na manutenção da apólice (Agravo de Instrumento n. 2002.002900-4-Natal, 1ª. Câm. Cível, rel. Des. Armando da Costa Ferreira, ac. un., DOE/RN de 12.03.03). Ainda pode ser citado acórdão do Tribunal de Alçada de Minas Gerais, no sentido de que "em se tratando de contrato coletivo, perfeitamente possível a denúncia por parte da seguradora, visto que o art. 13, parágrafo único, inciso II, da Lei 9.656/98 protege somente o contrato individual" (Ap. Cível n. 409.675-1-Belo Horizonte, 6ª. Câm. Cível, rel. Juiz Valdez Leite Machado, ac. un., j. em 27.11.03).
  3. Conforme art. 1º da Resolução CONSU n. 14, publicada no DO n. 211, de 04.11.98
  4. Art. 2º da Res. Consu 14.
  5. Art. 2º, par. únic. da Res. Consu 14.
  6. Art. 3º da Res. Consu 14.
  7. Art. 4º da Res. Consu 14.
  8. A aplicação indistinta do CDC aos planos e seguros saúde de contratação individual ou coletiva está em consonância com as conclusões de artigo que publicamos anteriormente, sob o título "A Natureza Jurídica do Plano de Saúde Coletivo", no site Jus Navigandi (www.jus.com.br), em jul. 2004.
  9. Sobre essa característica marcante dos planos e seguro saúde, escrevi: "Essa espécie de contrato caracteriza-se por criar uma "catividade" ou dependência dos clientes desses serviços (consumidores). São contratos que envolvem não uma obrigação de dar (para o fornecedor), mas de fazer; normalmente são serviços privados ou mesmo públicos, autorizados pelo Estado ou privatizados, mas sempre prestados de forma contínua, cuja execução se protrai no tempo. Não são simples contratos de trato sucessivo, pois além da continuidade na prestação assume destaque o dado da "catividade". Baseiam-se mais numa relação de confiança, surgida do convívio reiterado, gerando expectativas (para o consumidor) da manutenção do equilíbrio econômico e da qualidade dos serviços. O consumidor mantém uma relação de convivência e dependência com o fornecedor por longo tempo (às vezes por anos a fio), movido pela busca de segurança e estabilidade, pois, mesmo diante da possibilidade de mudanças externas na sociedade, tem a expectativa de continuar a receber o objeto contratualmente previsto. Essa finalidade perseguida pelo consumidor faz com que ele fique reduzido a uma posição de cliente-"cativo" do fornecedor. Após anos de convivência, pagando regularmente sua mensalidade, e cumprindo outros requisitos contratuais, não mais interessa a ele desvencilhar-se do contrato, mas sim de que suas expectativas quanto à qualidade do serviço oferecido, bem como da relação dos custos, sejam mantidas. Também contribui para seu interesse na continuação da relação contratual, a circunstância de que esses serviços (de longa duração) geralmente são oferecidos por um só fornecedor ou por um grupo reduzido de fornecedores, únicos que possuem o poder econômico, o know how ou a autorização estatal que lhes permite colocá-lo (o serviço) no mercado. Nessa condição, a única opção conveniente para o consumidor passa a ser a manutenção da relação contratual" (ob. cit.).
  10. Planos de Saúde e os Direitos do Consumidor, Belo Horizonte: Del Rey, 2002. Citado por Cláudia Lima Marques.
  11. Contratos no Código de Defesa do Consumidor – O novo regime das relações contratuais. 5ª. Edição. Editora Revista dos Tribunais.
  12. Plano de Assistência e Seguros de Saúde. Ed. Livraria do Advogado: Porto Alegre, p. 60/62).
  13. Representadas nas seguintes ementas: "PLANO DE SAÚDE – ART. 13, PARÁGRAFO ÚNICO, INCISO II, LEI N. 9.656/98 – CONTRATO COLETIVO INAPLICABILIDADE – DENUNCIA SEGURADORA – POSSIBILIDADE. Em se tratando de contrato coletivo, perfeitamente possível a denúncia por parte da seguradora, visto que, o art. 13, parágrafo único, inciso II, da Lei 9.656/98 protege somente o contrato individual" (Tribunal de Alçada de MG, 6ª. Câm. Cív., Ap. Cív. n. 409.675-1, rel. Juiz Valdez Leite Machado, ac. un., j. 27.11.03) e "SEGURO-SAÚDE – Medida cautelar – Concessão de liminar para determinar a continuidade do contrato de seguro saúde coletivo – Cláusula resolutória expressa – Impedimento legal à rescisão unilateral que somente se aplica à contratação individual ou familiar – Parágrafo único do artigo 13 da Lei 9.656/98 – Ausência do fumus boni júris reconhecida – Recurso provido para revogar a decisão que concedeu a liminar" (Agravo de Instrumento n. 255.12-4-SP – 1ª. Câmara de Direito Privado do TJSP, rel. Elliot Akel, m.v., 08.10.02).
  14. Redação dada pela MPV n. 2.177-44, de 24.8.2001.
  15. A Lei 9.961, de 28 de janeiro de 2000, criou a ANS, estabelecendo que essa autarquia especial passasse a desempenhar as funções de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades relacionadas à assistência suplementar à saúde (artigos 1º. e 4º.)
  16. Publicada no DO n. 57, de 25.03.99.
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Sobre o autor
Demócrito Reinaldo Filho

Juiz de Direito. Doutor em Direito. Ex-Presidente do IBDI - Instituto Brasileiro de Direito da Informática.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REINALDO FILHO, Demócrito. Extinção de contrato coletivo de assistência à saúde:: obrigação da operadora de oferecimento de planos individuais aos beneficiários. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1185, 29 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8983. Acesso em: 24 abr. 2024.

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