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Sociedade construída sobre o trabalho escravo, uma afronta à dignidade humana

12/05/2021 às 15:00

Resumo:


  • A escravidão contemporânea persiste em diversas formas, com mais de 40 milhões de pessoas sendo vítimas, sendo a maioria mulheres e meninas menores de idade.

  • Condições análogas à escravidão incluem situações degradantes, violência física e psicológica, jornadas exaustivas e servidão por dívida, configurando um crime contra a dignidade humana.

  • Medidas como a "lista suja" do trabalho escravo e a fiscalização são utilizadas para combater o problema, porém, cortes orçamentários e retrocessos ameaçam os avanços alcançados.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo está sendo esvaziada. O Grupo Especial de Fiscalização Móvel, que já foi composto por nove equipes, hoje tem quatro, pois não tem orçamento suficiente. A lista suja vive uma batalha judicial. O governo só a divulga porque assim determinou o Judiciário.

INTRODUÇÃO

No dia 13 de maio de 1888, a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, que formalizou o fim da escravidão no Brasil. Tal fato histórico, amplamente divulgado, seria a princípio o desfecho de um longo processo social, político e econômico em uma fase considerada uma das mais dramáticas para o país. Acrescenta-se a este fato diversas conquistas trabalhistas obtidas nos últimos anos. Entretanto, lado a lado com a modernização de diversas técnicas de trabalho, convivemos com formas diferenciadas de escravidão.

Na forma do Direito, a escravidão se encontra extinta. mas longe da verdade, cunhamos um termo denominado "condições de trabalho análogas à escravidão" que aparentemente ameniza seu real sentido, mas busca denunciar as práticas abusivas da sociedade contemporânea. fazendas onde os moradores são abrigados para a mão de obra, com descontos em moradias precárias, alimentação de baixa qualidade, vestuário, as próprias ferramentas que utilizam em seu labor. Há ainda o tráfico de mulheres para a prostituição forçada, bem como meninas para escravidão doméstica. Não se trata apenas da compra e venda de pessoas, mas o poder sobre seus corpos diante da necessidade das mesmas. Trabalhar de 12 a 17 horas por dia em condições degradantes e insalubres. Dormir no local de trabalho e dividir espaço com baratas.

A escravidão ainda se encontra presente em nossa sociedade, muito mais do que sabemos. O número aproximado de escravos contemporâneos no mundo ultrapassa a assustadora marca de quarenta milhões, sendo que 71% dos escravos são mulheres e meninas menores de idade.

A história do trabalho humano é de terror, conforme teóricos desse campo de pesquisa. A própria palavra "trabalho" origina-se de tripalium, um instrumento utilizado como forma de tortura na antiguidade, ou seja, trabalhar era sinônimo de sofrer. Talvez por isso o trabalho fosse destinado aos escravos, os quais não eram encarados como seres humanos, mas sim como uma "coisa" pela qual os donos possuíam total controle, podendo torturá-los e castigá- los das mais diversas e cruéis formas.


BREVE HISTÓRIA DA EVOLUÇÃO DOS DIREITOS TRABALHISTAS

Os moldes históricos mais antigos os quais podemos comparar com o sistema contemporâneo, começou por volta de 1760 com a Primeira Revolução Industrial, que teve seu início na Europa e transformou as relações de trabalho de forma visionária, transformando-o verdadeiramente em "emprego," no qual quem laborava passava a receber salário pela sua mão de obra. Mas o processo de mecanização dos sistemas de produção implantados culminaram em debates sobre as condições humanas, uma vez que o número de desempregados aumentou e o ambiente para realização de atividades laborativas seriamente precários. Em 1789, na Declaração dos Direitos do Homem e do cidadão, o direito ao trabalho foi reconhecido como algo inalienável: "XVIII Todo Homem pode empenhar seus serviços, seu tempo; mas não pode vender-se nem ser vendido. Sua pessoa não é propriedade alheia. A lei não reconhece domesticidade; só pode existir um penhor de cuidados e de reconhecimento entre o homem que trabalha e aquele que o emprega." No Brasil as discussões sobre os direitos dos trabalhadores e solução de conflitos entre empregados e patrões se iniciaram com o fim da escravidão em 1888, quando a mão de obra gratuita deixou de existir como lei e consequentemente o trabalho assalariado se tornou necessário, somada a importação de imigrantes europeus que em sua cultura trouxeram os ideais já discutidos na Revolução Industrial. Desde a abolição da escravatura, durante quatro décadas já se estabeleciam normas que protegessem os trabalhadores. Em 1891, o decreto n.º 1313 regulamentou o trabalho de menores. A lei da sindicalização rural foi criada em 1903 e em 1907 regulamentada a sindicalização de todas as profissões. Maurício de Lacerda, importante político, escritor e tribuno em 1917 realizou a tentativa da formação de um primeiro Código do Trabalho. Em 1918 foi criado o Departamento Nacional do Trabalho.

Após a Revolução de 1930, e Getúlio Vargas assumindo o poder, se intensificaram todos os esforços em prol da proteção ao trabalhador, com a criação d Ministério do Trabalho, a instituição das Comissões mistas de Conciliação para os conflitos coletivos e Juntas de e Julgamento nos conflitos individuais. Outra conquista de grande monta nesse sentido veio com a Constituição de 1934, a qual incluiu a Justiça do Trabalho, como forma de resolver os conflitos entre empregados e empregadores. A carta constitucional também trouxe as férias anuais remuneradas, indenização por dispensa sem justa causa, a jornada de oito horas e o salário mínimo. A CLT foi criada pelo Decreto-Lei n.º 5.452, de 1º de maio de 1943, e sancionada pelo Presidente Getúlio Vargas durante o período do Estado Novo. Entre as fontes materiais da CLT, podemos citar a Encíclica Rerum Novarum (em português, "Das Coisas Novas") de autoria do Papa Leão XIII, uma mensagem de 1891 a todos os bispos sobre as condições das classes trabalhadores, a Carta del Lavoro, do governo italiano de Benito Mussolini, o 1º Congresso Brasileiro de Direito Social, realizado em São Paulo, no ano de 1941 realizado justamente para comemorar o cinquentenário da Encíclica do Sumo Pontífice e as convenções internacionais de trabalho.

Antigamente, a propriedade legal era permitida, hoje não. Mas era muito mais caro comprar e manter um escravo do que hoje. O negro africano era um investimento dispendioso que poucas pessoas podiam ter. Hoje, o custo é quase zero Paga-se apenas o transporte e, no máximo, a dívida que o sujeito tinha em algum comércio ou hotel. Além do fato de que, se o trabalhador fica doente, é só largá-lo na estrada mais próxima e aliciar outra pessoa. O desemprego é gigantesco no país, e a mão-de-obra, farta. Na escravidão contemporânea, não faz diferença se a pessoa é negra, amarela ou branca. Os escravos são miseráveis, independentemente de raça. Porém, tanto na escravidão imperial quanto na do Brasil de hoje, mantém-se a ordem por meio de ameaças, terror psicológico, coerção física, punições e assassinatos. Ossadas têm sido encontradas em propriedades durante ações de fiscalização, como na fazenda de Gilberto Andrade, família influente da região Sul do Pará.


A DEFINIÇÃO DO TRABALHO ANÁLOGO A ESCRAVIDÃO NO BRASIL

Chamamos de “condições análogas à escravidão” situações que atentam contra a dignidade e a liberdade do trabalhador. Pode ser considerado uma forma moderna de escravidão submeter o empregado a condições degradantes de trabalho, com confinamento, violência física e psicológica e jornadas exaustivas de trabalho. Qualquer forma de explorar a servidão por dívida também configura escravidão – muitas vezes o empregado contrai dívidas de transporte, aluguel ou alimentação com o empregador, que passa a descontar os valores do salário e impedir que ele deixe o emprego.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que existam cerca de 21 milhões de trabalhadores no mundo vivendo em condições análogas à escravidão. As vítimas costumam ser as populações mais vulneráveis – mulheres e meninas forçadas à prostituição, migrantes que se submetem a condições deploráveis com medo de serem deportados e indígenas. Países emergentes e em desenvolvimento da Ásia concentram mais da metade do total desses trabalhadores, que atuam, principalmente, em serviços domésticos, na agricultura e na construção civil.

O trabalho escravo não é caracterizado por meras infrações trabalhistas. Ele é um crime contra a dignidade humana. Numa relação de trabalho, a constatação de qualquer um desses elementos é suficiente para configurar trabalho escravo, de acordo com o artigo 149 do Código Penal brasileiro: Trabalho forçado: o indivíduo é obrigado a se submeter a condições de trabalho em que é explorado, sem possibilidade de deixar o local seja por causa de dívidas, seja por ameaça e violências física ou psicológica. Em alguns casos, o trabalhador se encontra em local de difícil acesso, isolado geograficamente; Jornada Exaustiva: expediente desgastante que vai além de horas extras e coloca em risco a integridade física do trabalhador, já que o intervalo entre as jornadas é insuficiente para a reposição de energia. Há casos em que o descanso semanal não é respeitado. Assim, o trabalhador também fica impedido de manter vida social e familiar. Servidão por dívida: Fabricação de dívidas ilegais referentes a gastos com transporte, alimentação, aluguel e ferramentas de trabalho. Esses itens são cobrados de forma abusiva e descontados do salário do trabalhador, que permanece cerceado por uma dívida fraudulenta. Em muitos casos, todo o seu salário é simplesmente retido, assim como os seus documentos pessoais; Condições degradantes: um conjunto de elementos irregulares que caracterizam a precariedade do trabalho e das condições de vida sob a qual o trabalhador é submetido, atentando contra a sua dignidade.

Não é apenas a ausência de liberdade que faz um trabalhador escravo, mas sim de dignidade. Todo ser humano nasce igual em direito à mesma dignidade. E, portanto, nascemos todos com os mesmos direitos fundamentais que, quando violados, nos arrancam dessa condição e nos transformam em coisas, instrumentos descartáveis de trabalho. Quando um trabalhador mantém sua liberdade, mas é excluído de condições mínimas de dignidade, temos também caracterizado trabalho escravo, esse é o conceito. Cabe à sociedade toda conhecer e indignar-se com essa realidade e buscar interações para superação e supressão de realidade que não serve ao povo brasileiro e nos distancia dos nossos objetivos constitucionais.

Em outras palavras, o trabalho escravo acontece quando o trabalhador não consegue se desligar do patrão por dívida ou violência e ameaça e acaba sendo forçado a trabalhar contra a sua vontade, havendo violação de direitos humanos, com sobrecarga de trabalho e sem condições básicas de saúde e segurança. O Brasil assinou a Convenção 105 e 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) comprometendo-se a abolir toda forma de trabalho forçado ou obrigatório.

Atualmente, apesar da grande quantidade de trabalhadores escravizados no país, o Brasil é ainda considerado internacionalmente um dos países mais avançados em esforços governamentais e não governamentais para acabar com esse problema. Um exemplo é a PEC 57 A de 1999, denominada "PEC do Trabalho Escravo," que apesar de aprovada 15 anos após sua proposta, com sua emenda gerou uma nova redação no artigo 243 da Constituição Federal.

Nas letras da lei, a escravidão está extinta, porém, em muitos países, principalmente onde a democracia é frágil, há alguns tipos de escravidão, em que mulheres e meninas são capturadas para serem escravas domésticas ou ajudantes para diversos trabalhos. Há ainda o tráfico de mulheres para prostituição forçada, principalmente em regiões pobres da Rússia, Filipinas e Tailândia, dentre outros países.

A expressão escravidão moderna possui sentido metafórico, pois não se trata mais de compra ou venda de pessoas. No entanto, os meios de comunicação em geral utilizam a expressão para designar aquelas relações de trabalho nas quais as pessoas são forçadas a exercer uma atividade contra sua vontade, sob ameaça, violência física e psicológica ou outras formas de intimidações. Muitas dessas formas de trabalho são acobertadas pela expressão trabalhos forçados, embora quase sempre impliquem o uso de violência.

Há diversos acordos e tratados internacionais que abordam a questão do trabalho escravo, como as convenções internacionais de 1926 e a de 1956, que proíbem a servidão por dívida. No Brasil, foi somente em 1966 que essas convenções entraram em vigor e foram incorporadas à legislação nacional. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) trata do tema nas convenções número 29, de 1930, e 105, de 1957. Há também a declaração de Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho e seu Seguimento, de 1998.

O Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, lançado no início de 2003, reúne 76 medidas de combate à prática. Entre elas, projetos de lei como o que expropria terras em que for encontrado trabalho escravo e transfere para a esfera federal os crimes contra os direitos humanos, limitando assim as influências locais nos processos.

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Mas mesmo fiscalização, multas, prisão dos envolvidos, cortes em linhas de crédito atacam as conseqüências, deixando muitas vezes a causa em aberto. O trabalhador resgatado não vê opções para a sobrevivência e acaba caindo de novo na armadilha. Escravidão no Brasil é sintoma de algo maior: desigualdade.


DISPOSITIVOS UTILIZADOS PARA A DIMINUIÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO E SUA POSSÍVEL EXTINÇÃO

Para combater o trabalho escravo no Brasil, o Ministério do Trabalho criou a “lista suja” do trabalho escravo, que relaciona as empresas e empregadores flagrados por fiscais submetendo seus empregados a condições análogas à escravidão. Uma norma do Conselho Monetário Nacional (CMN), considerada um modelo pela ONU, proíbe que bancos e instituições financeiras ofereçam crédito e empréstimos a quem estiver na “lista suja”.

Os dados oficiais do Programa Seguro-Desemprego registrados de 2003 a 2018 indicam que, entre os trabalhadores libertados, 70% são analfabetos ou não concluíram nem o 5º ano do Ensino Fundamental. Os trabalhadores rurais libertados são, em sua maioria, migrantes internos, que deixaram suas casas com destino à região de expansão agrícola e se empregaram em atividades como a pecuária, a produção de carvão, o desmatamento e o cultivo de cana-de- açúcar, soja, algodão e outras lavouras.

Já no meio urbano, desde de 2010 têm crescido o número de trabalhadores escravizados em setores como a confecção têxtil, os quais são, em sua maioria, migrantes internacionais oriundos de países da América Latina, como Bolívia, Paraguai e Peru. Nesse período também foram registrados casos recorrentes na construção civil, com libertações de migrantes internos. O recente fluxo de haitianos e venezuelanos para o Brasil também já tem reverberado em libertações de trabalhadores desses países em território nacional. No geral, os migrantes saem de suas cidades e países atraídos por falsas promessas de trabalho, ou migram forçadamente por causa de sua precariedade socioeconômica.


ALGUNS CASOS REGISTRADOS

O Ministério Público do Trabalho, entrou com ações para responsabilizar os sete maiores bancos do país pela constante concessão de crédito a empresas que comprovadamente fizeram uso de trabalho escravo ou foram denunciadas por sérias violações aos direitos humanos. Banco do Brasil, Bradesco, Santander, BTG Pactual, Caixa Econômica Federal, Itaú e Safra responderão em primeira instância, na Justiça do Trabalho de São Paulo, por negligenciar o risco socioambiental no financiamento dessas empresas. Com base em uma suspeita e fiscalização do Banco Central, realizada em 2011, Banco do Brasil, Bradesco e Santander tiveram o sigilo de suas transações quebrado durante a investigação do MPT, em 2017. A quebra identificou uma média de quatro financiamentos por banco a empresas que constavam na lista suja do trabalho escravo.

Em três propriedades rurais na região de Piracicaba, interior de São Paulo, auditores-fiscais do Ministério do Trabalho encontraram cerca de 80 cortadores de cana sem carteira assinada e que faziam jornadas excessivas. Ganhando por produção, os trabalhadores cortavam cana até o corpo não aguentar. Na cozinha do alojamento, um homem caído no chão agonizava com dores de cãibras. Só conseguiu levantar com a ajuda dos colegas, que mostraram preocupação, mas não estranhamento, pois as dores fazem parte do dia a dia de um cortador de cana. O médico que o socorreu diagnosticou esgotamento por excesso de trabalho.

A Polícia Civil prendeu um casal suspeito de manter uma mulher de 63 anos em cárcere privado por aproximadamente 20 anos em Vinhedo, São Paulo. A corporação recebeu uma denúncia de estelionato contra os suspeitos, mas, quando chegou à residência, encontrou a vítima, obrigada a cuidar da mãe da mulher presa, de 88 anos, sem receber nenhum salário ou benefício pela função. Os suspeitos retinham o documento da mulher com eles e entregaram aos policiais na delegacia. A idosa vivia em dois cômodos sem acesso à rua e não tinha nenhum contato com o mundo externo. O casal usava uma conta aberta no nome da mulher de 63 anos para aplicar golpes em comércios no bairro.

Uma operação conjunta de órgãos públicos apurou a prática de trabalho análogo ao escravo na sede de uma igreja adventista no Gama, região administrativa de Brasília. De acordo com o Ministério Público federal, o total de vítimas ficou estimado entre 200 a 300 pessoas. As apurações revelaram que a líder da seita e alguns de seus obreiros, sob a justificativa de garantir a entrada dos fiéis no reino dos céus e a salvação de suas almas, obrigavam as vítimas a trabalhar sem receber qualquer pagamento. Os relatos se dão conta de que os fiéis vendiam pães e livros na cidade. Além disso, segundo a investigação, fiéis precisavam pagar R$ 10 diariamente para ter direito a morar na comunidade. As roupas utilizadas pelos moradores também precisavam ser compradas lá dentro, assim como a comida consumida por todos. A área de confecção e costura tinha mobiliários inadequados, com cadeiras quebradas, sem encosto e iluminação precária. Por outro lado, o local onde eram produzidos os pães vendidos pelos fiéis precisou ser interditado. A medida foi aplicada porque se verificaram irregularidades nas instalações elétricas do espaço e nos equipamentos utilizados pelos trabalhadores, expondo a riscos de incêndio no espaço. Vale destacar a apuração de que eram produzidos 700 pães por dia, com a finalidade de vendê-los e auferir verba para a comunidade religiosa.

Recentemente a grife Amissima, que vende roupas com valores acima de R$ 1.000,00 foi denunciada por trabalho análogo à escravidão, somando-se a outras 37 marcas que utilizaram mão de obra análoga à escravidão. Todas as informações sobre elas podem ser conferidas no aplicativo Moda Livre, que avalia desde 2013 as ações adotadas para combater o trabalho escravo entre os fornecedores e que acaba de ser atualizado. Criado em 2013, o Moda Livre avalia as ações adotadas por marcas e varejistas para combater o trabalho escravo entre fornecedores. Também tem dados atualizados sobre as grifes responsabilizadas por esse crime durante fiscalizações do governo federal. As informações do aplicativo mostram que grande parte do varejo de moda no Brasil ainda não controla adequadamente os locais onde as suas roupas são fabricadas. A maior marca nacional a ingressar na lista é a Via Veneto. Roupas da sua marca feminina eram costuradas por bolivianos em jornadas de mais de 12 horas em uma oficina pequena, escura e com forte odor devido à ausência de limpeza. Na fiscalização, cinco trabalhadores imigrantes foram resgatados, todos bolivianos. Entre eles, uma adolescente de 15 anos. Na zona leste de São Paulo, os costureiros trabalhavam sem registro em carteira de trabalho e dormiam no próprio local de trabalho. Alguns, na cozinha.

Mais de 400 costureiros e costureiras foram encontrados em condições análogas às de escravos no Brasil. A maioria dos casos ocorre em pequenas confecções terceirizadas. As vítimas mais comuns são migrantes sul-americanos que trabalham em oficinas em condições degradantes. São locais suscetíveis a incêndios, marcados pela falta de higiene e que muitas vezes também servem de moradia aos trabalhadores. Eles recebem valores muito baixos por peça costurada e são submetidos a jornadas exaustivas para conseguir guardar algum dinheiro. Muitos se vêem obrigados a trabalhar para pagar dívidas fraudulentas com os patrões para quitar o financiamento da viagem de seus países até o Brasil.

A fabricante de Coca-Cola, a Spal Indústria Brasileira de Bebidas, que integra o grupo Femsa. Fundado no México e presente em 11 países, é considerado o maior engarrafador de Coca-Cola do mundo. No Brasil, são 10 unidades para engarrafamento e 43 centros de distribuição. Os caminhoneiros e ajudantes de entrega da Coca-Cola realizavam, em média, 80 horas extras por mês. Situações extremas chegavam a 140 horas extras por mês. Além de dias inteiros de trabalho ininterrupto na mesma semana em que o funcionário já acumulava o cansaço por fazer jornadas de 12 e 14 horas. Em alguns casos, a sequência de jornadas exaustivas terminava em afastamento por atestado médico. Um motorista relatou que após encerrar o trabalho às 0h30 chegou em casa 2h com a obrigação de retornar ao trabalho às 6h30. Ele disse aos auditores que tomou banho, jantou e ficou vendo televisão. “Se dormisse não conseguiria levantar no horário de trabalho”, informou em seu depoimento aos fiscais. “Sabia que, se não fosse trabalhar, receberia advertência no outro dia”, disse à fiscalização.

Quinze homens e rapazes resgatados em Muzambinho, Sul de Minas estavam há meses trabalhando com a colheita do café na fazenda Córrego da Prata, em péssimas condições, que se estenderam para os equipamentos de trabalho. Na colheita do café é necessária uma máquina para realizar o trabalho, de valor médio de R$ 2 mil. Cada trabalhador da fazenda foi obrigado a comprar a sua e pagar pela gasolina que gastava. Uma situação totalmente irregular. O artigo 458 da Constituição Federal diz que ferramenta de trabalho não é salário e que ela deve ser fornecida pelo patrão.

Uma dona de casa da zona rural de Rubim, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais foi flagrada com uma empregada doméstica de 68 anos em situação análoga à escravidão. A vítima lavava roupa, cozinhava, limpava a casa sem direito a folga e sem receber pagamento há oito anos, tal qual os escravos no Brasil Colônia.


O RETROCESSO EM RELAÇÃO AS MEDIDAS ESTABELECIDAS

A Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo está sendo esvaziada. O Grupo Especial de Fiscalização Móvel, que já foi composto por nove equipes, hoje tem quatro equipes, pois não tem orçamento suficiente. A Lista Suja vive uma batalha judicial. O governo só divulga porque tem que cumprir uma decisão judicial mediante ação civil do Ministério Público.

A reincidência de trabalhadores que retornam ao ciclo da escravidão é maior entre aqueles com baixo grau de instrução — a taxa para os trabalhadores analfabetos é o dobro daquela dos que possuem ensino fundamental completo. Segundo a OIT, as dificuldades de acesso às políticas públicas, especialmente educação e outros direitos, aumentam a situação de vulnerabilidade social dos trabalhadores, facilitando o seu aliciamento e a exploração do seu trabalho.

O número de operações de fiscalização para a erradicação do trabalho escravo caiu 23,5%. Já o total de trabalhadores resgatados também apresentou queda em 2017. Foram 341 pessoas encontradas em situação análoga à de escravos e retiradas das frentes de trabalho, número mais baixo desde 1998 (159 resgates). Em relação a 2016, a queda foi de 61,5%. Considerando que o trabalho escravo é baseado em denúncias e fiscalizações, os números mais baixos não representam necessariamente uma menor incidência do crime no país.

Segundo o Ministério do Trabalho, as unidades regionais da pasta tiveram corte orçamentário nas atividades rotineiras de fiscalização, o que afetou o combate ao trabalho escravo. Quando denúncias de casos graves foram recebidas, o ministério afirma que providenciou recursos orçamentários de outras fontes para atendimento das denúncias.

Se por um lado, a carência na inspeção enfraquece o combate ao trabalho análogo ao escravo, por outro, o aumento do desemprego, da informalidade e as mudanças recentes na legislação trabalhista tornaram as relações de trabalho mais vulneráveis. Entre outras mudanças, a reforma trabalhista, por exemplo, flexibilizou as regras para a terceirização. Depois da sanção da reforma, as relações formais de trabalho também foram fragilizadas. A judicialização de causas trabalhistas em todo o país caiu entre 40 e 50% porque, pelas novas regras, o trabalhador é obrigado a arcar com o custo dos honorários periciais e advocatícios caso perca a causa.

Deputados e senadores donos de fazendas ou que são apoiados por fazendeiros querem mudar o texto da lei. Pretendem excluir as frases “condições degradantes” e “jornada exaustiva”. Isso pode dificultar o combate a esse crime.


CONCLUSÃO

O regime escravagista deixou na nossa mentalidade traços excludentes e de profunda desigualdade social. O Brasil tem ainda, na atualidade, a ferida aberta da prática do trabalho análogo à escravidão. São marcas perceptíveis no contexto político atual.

Não adianta ter conhecimento sem consciência. Não adianta ter verdade sem liberdade. As leis podem trazer retrocesso. As várias formas de exclusão não ficam claras na legislação. Por isso, é preciso haver uma reflexão de todos. Não basta entender, tem que compreender o contexto histórico.

A participação da sociedade como um todo é fundamental. Os que ainda não estão excluídos, os que ainda acreditam no mito de que nesta sociedade somos livres aceitam e endossam o que dizem os poderosos e sua imprensa: que os excluídos não são como eles, que são um povo imundo e sujo, diferente, com má sorte e maus hábitos. O mito interiorizado é que os excluídos procuraram a situação que sofrem.

A raiz do problema do trabalho escravo contemporâneo sempre vai ser a desigualdade social. Não são pessoas ricas ou de classe média que estão sujeitas a trabalho escravo. São pessoas oriundas de classes mais pobres, em regiões menos desenvolvidas, que acabam se sujeitando a situações de exploração por falta de opção, pela falta de uma atuação do Estado que seja eficaz para diminuir essa desigualdade social


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MARTINS, Sérgio Pinto. CLT Organizada, 24ª Ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2018. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 20a Ed. São Paulo: Saraiva, 2016

ONU, Declaração Universal dos Direitos Humanos. CONVENÇÃO de Viena sobre o Direito dos Tratados MBEMBE, Achille. Necropolítica, 1º Ed. São Paulo: N - 1, 2018

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Sobre o autor
Jorge Antonio Costa Linhares

Profissional com mais de 20 anos em atuação nas áreas de Recursos humanos, departamento pessoal, Direito do trabalho e Previdenciário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LINHARES, Jorge Antonio Costa. Sociedade construída sobre o trabalho escravo, uma afronta à dignidade humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6524, 12 mai. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90305. Acesso em: 18 dez. 2024.

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