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Vínculo empregatício dos entregadores de aplicativo

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3 Dos entregadores de aplicativos: relação de emprego ou trabalhador autônomo?

3.1 A linha tênue entre trabalhador autônomo e empregado celetista

As empresas, detentoras dos aplicativos, reconhecem os entregadores como “colaboradores”, mas, antes de classificar tal relação, é importante observar as diferenças entre os regimes de trabalhador autônomo e celetista.

O trabalhador autônomo é aquele que exerce sua atividade profissional sem vínculo empregatício e, em sua rotina de trabalho, organiza, sem qualquer subordinação, sua atividade econômica. Consoante explana o jurista Maurício Godinho Delgado, conceituando o autônomo como “aquele que exerce, habitualmente e por conta própria, atividade profissional remunerada, explorando, assim, em proveito próprio, sua força de trabalho mesma”.

O trabalhador celetista é aquele cuja relação de emprego é regida pela Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, independentemente de o empregador ser do setor público ou privado. Estes trabalhadores possuem os direitos trabalhistas assegurados e a carteira profissional assinada.

Já as novas modalidades de trabalho descritas possuem, como característica, a existência de uma aproximação entre o trabalhador autônomo e o empregado celetista, o que causa grandes controvérsias quanto ao seu real enquadramento, ocasionando um crescimento no número de trabalhadores descobertos de seus direitos trabalhistas.

A redação da CLT, resultante da reforma trabalhista de 2019, explanada no novel art. 442-B determina que “ a contratação do autônomo, cumpridas por todas estas formalidades legais, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, afasta a qualidade de empregado prevista no artigo 3º desta Consolidação”. Diante disso, pode-se dizer que, ao trabalhador autônomo, consolidam-se relações jurídicas que não se encontram, em princípio, sob a proteção da legislação trabalhista, dando ensejo ao que se denomina “fraude de pejotização”, mascarando uma típica relação de emprego.

3.2 O serviço de delivery e os entregadores por aplicativos

O serviço de delivery é contratado por clientes que realizam os seus pedidos pelos aplicativos - Apps, sem necessidade de se deslocarem de suas casas para adquirir qualquer produto de que necessitam, que lhe são entregues pelos entregadores, caracterizado pela comodidade e segurança. Tal serviço abrange motoqueiros e ciclistas que transportam alimentos em suas bags. Eles cadastram-se nos Apps e, após confirmação do seu cadastro, podem iniciar as entregas, sendo que as empresas não fornecem nenhum material para o desempenho de tal função, ou seja, o entregador deverá arcar com todos os encargos decorrentes do serviço.

As empresas de delivery elaboram termos de uso para que os entregadores assinem e concordem, ficando claro que as empresas não têm responsabilidade por qualquer prejuízo ou danos decorrentes ou relativos a atividades de entrega. Trabalham de segunda-feira a domingo sem qualquer contrato, em jornadas que podem ultrapassar as 24 horas seguidas, arriscando-se entre carros e ônibus, sem garantias ou proteções legais e, muitas vezes, por menos de um salário mínimo.

Assim, as plataformas digitais disponibilizam, aos entregadores, um contrato constituído de forma unilateral, conforme a vontades das empresas, não sendo possível discutir as cláusulas. Os “Termos e Condições” de uso das plataformas exigem que os trabalhadores se cadastrem na condição de autônomo, afastando, com isso, qualquer obrigação empregatícia.

Foi realizada uma pesquisa pelo site Terra em 2019, que demonstra que 3,8 milhões de brasileiros têm, nos Apps, a sua principal fonte de renda, motivo pelo qual se submetem às precárias condições de trabalhos impostas pelas empresas detentoras dos aplicativos.

Em 2019, as empresas de aplicativos já eram os maiores empregadores do Brasil, com 3,8 milhões de pessoas vivendo do trabalho dessas plataformas, mesmo não tendo o reconhecimento de qualquer vínculo ou relação trabalhista.

3.3 Do vínculo de emprego entre os entregadores e as empresas contratantes, detentoras dos aplicativos

O reconhecimento do vínculo de emprego pressupõe a existência dos cinco elementos elencados no art. 3º, da CLT, que são: trabalho por pessoa física, pessoalidade, não-eventualidade, onerosidade e subordinação, sendo que a ausência de um ou mais requisitos enseja a descaracterização do vínculo.

Hoje, os entregadores são considerados trabalhadores autônomos, por exercerem suas atividades profissionais sem vínculo empregatício (= por conta própria) e com assunção de seus próprios riscos. A prestação se dá de forma eventual e não habitual, conforme explica ALMEIDA (2019, p.43):

A CLT não se aplica a trabalhadores autônomos, já que esse tipo de trabalhador autônomo requeira o reconhecimento de seu vínculo de emprego, fato esse extremamente corriqueiro nos dias de hoje, pois em virtude da alta carga tributária imposta na contratação de empregados alguns empregadores contratam efetivos empregados e mascaram essa relação de emprego denominando-os, dentre outros, de autônomos, deverá fazê-lo na Justiça Laboral.

Entretanto, as condições fáticas, às quais os entregadores são submetidos, nem sempre atendem às características que revestem o trabalho autônomo, ou seja, dentre outras, a liberdade e independência de desenvolverem suas atividades e a fixação livre do preço do serviço por parte do prestador.

Todavia, o vínculo existente entre os entregadores e as empresas dos aplicativos atendem todos aqueles requisitos necessários para o reconhecimento do vínculo empregatício:

  • a) os entregadores cumprem as ordens que lhe são impostas pelo empregador (= empresas de aplicativos), caracterizando, assim, a subordinação;
  • b) a prestação de serviço é realizada de maneira contínua, em que existe a expectativa de continuidade da relação existente entre empregado e empregador, caracterizando, assim, a habitualidade;
  • c) há a contraprestação recíproca entre empregado e empregador, em que o entregador presta o serviço e o empregador lhe paga uma contraprestação em dinheiro, caracterizando-se a onerosidade;
  • d) o entregador, quando não pode fazer o serviço, não o faz substituir por outro, caracterizando-se, com isso, a pessoalidade; e,
  • e) por fim, os entregadores, contratados para prestar os serviços, são pessoas físicas e não jurídica, caracterizando o requisito de ser pessoa física.

3.3.1 Os entregadores por aplicativos e a subordinação trabalhista por algoritmo

Com o surgimento de novas modalidades nas relações de trabalho, surgem, também, discursões acerca de como interpretar e aplicar a subordinação jurídica, que é um dos requisitos para se configurar o vínculo empregatício.

Em relação aos entregadores, os patrões são as empresas detentoras dos aplicativos, que ditam as regras e as obrigações.  Assim, depois de programadas as entregas, aqueles ficam impossibilitados de agirem livremente, pois são monitorados pelos aplicativos, situação jurídica denominada “subordinação por algoritmo”, conforme explica ALOISI (2016):

De forma semelhante à dos trabalhadores de depósito que utilizam sistemas automatizados de direção, os trabalhadores de plataforma são designados para a próxima tarefa pelos algoritmos do aplicativo, que também são projetados para medir a velocidade e a dedicação do trabalhador na realização das tarefas, incluindo o cálculo da pontuação e das avaliações que os clientes atribuem aos trabalhadores, Mas pontuações ou desempenho abaixo dos padrões do algoritmo podem levar à exclusão do trabalhador da plataforma e, portanto, ao “desligamento”, facilitado pelo suposto status de autônomo desses trabalhadores.

Após tal programação, os trabalhadores precisam estar conectados e disponíveis para obedecer aos comandos e ordens enviadas pelos aplicativos. Essas ordens devem ser obedecidas e cumpridas, já que os trabalhadores recebem avaliações, quem podem ser positivas ou negativas conforme seu desempenho.

Apesar de restar bem evidenciada a tentativa dos empregadores de mascarar qualquer relação empregatícia, não há, pois, como descaracterizar o não reconhecimento de tal vínculo entre os entregadores delivery e as empresas de aplicativos, já que todos os requisitos legais foram demonstrados.

3.4 O tema na jurisprudência: um estudo de caso

Relativamente ao tema, já existem decisões tanto que reconhecem quanto que negam o vínculo empregatício entre os entregadores e as empresas de aplicativos de entrega. A maioria das jurisprudências ainda negam tal vínculo, ao argumento de que o requisito da subordinação não está presente na prestação dos serviços Todavia, já existem decisões reconhecendo tal relação, como a descrita na  jurisprudência a seguir:

RAPPI BRASIL. SERVIÇO DE ENTREGAS. EXISTÊNCIA DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO ENTRE OPERADORA DA PLATAFORMA E ENTREGADOR. Existe vínculo empregatício entre a operadora da plataforma virtual Rappi e os entregadores. Há pessoalidade, haja vista a necessidade da realização de cadastro pessoal e intransferível, não podendo o trabalhador substabelecer a execução do serviço (entrega) a outrem. Há onerosidade, porquanto a relação não se assenta na graciosidade, existindo entre as partes direitos e obrigações de cunho pecuniário. Não-eventualidade, há fixação jurídica do trabalhador perante a tomadora, com continuidade na prestação de serviços, o qual, por sua vez, é essencial ao desenvolvimento da atividade econômica vendida pela empresa (comércio e entrega de bens). Em relação à subordinação, na economia 4.0, "sob demanda", a subordinação se assenta na estruturação do algoritmo (meio telemático reconhecido como instrumento subordinante, consoante art. 6º, CLT), que sujeita o trabalhador à forma de execução do serviço, especificamente, no caso da Rappi, impondo o tempo de realização da entrega, o preço do serviço, a classificação do entregador, o que repercute na divisão dos pedidos entre os trabalhadores. Presentes os requisitos da relação jurídica empregatícia. Recurso autoral provido. (TRT-210009633320195020005 SP, Relator: FRANCISCO FERREIRA JORGE NETO, 14ª Turma – Cadeira 1, Data de Publicação: 05/03/2020)

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O caso acima refere-se à pretensão de Tercio Dercule Raposo ao reconhecimento do vínculo empregatício com a empresa do aplicativo, ação que foi distribuída para a 5ª Vara do Trabalho de São Paulo, cujo juízo julgou improcedentes os seus pedidos. Recorrendo a parte ao Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, os Magistrados da 14ª Turma do Egrégio Tribunal Regional do Trabalho reconheceram o vínculo empregatício, na ocupação de motociclista.

É necessário destacar a evidente finalidade da atividade empresarial: serviço de entrega realizado por entregadores por meio das plataformas digitais, pois, o aplicativo é apenas um instrumento para que se atinja tal finalidade. Na hipótese de um serviço exclusivamente digital, os entregadores teriam que realizar um cadastro com seus dados e, para a prestação dos serviços, era fornecido um cartão corporativo pré-pago de uso intransferível, além de ser necessário, para iniciar o aplicativo, que fosse enviado uma foto de próprio rosto.

Os entregadores, com isso, teriam que estar à disposição da empresa de segunda a sexta-feira, das 12:00 às 19:00, havendo a orientação de dias e horários para a prestação do serviço, e, caso a taxa de aceitação de pedidos fosse baixa, haveria punição com a redução de pontuação e o bloqueio de novos pedidos. Também haveria punição no caso de reclamação de clientes, não entrega de produtos, restando tais fatos demonstrados pelo então reclamante, evidenciado que ele não possuía plena autonomia para exercer livremente o seu trabalho.

Ante a verificação de todos os elementos, ficou reconhecido o vínculo empregatício entre Tercio Dercule Raposo e a Rappi Brasil Intermediação de Negócios Ltda.


4 Das ações civis públicas propostas pelo Ministério Público do Trabalho do Estado de São Paulo – MPT/SP em face das empresas de aplicativos

Diante deste cenário de incertezas trabalhistas, o MPT/SP propôs ação civil pública (ACPCiv 1001058-88.2018.5.02.0008) em face dos aplicativos Loggi Tecnologia Ltda e L4B Logística LTDA., por entender que elas atuam com ilegalidade ao se omitirem sobre o vínculo de trabalho com os motoboys, que “os condutores profissionais são marionetes de um aplicativo” e que o desiquilíbrio no mercado promove dumping social[1] sobre a empresas tradicionais, conforme a Lei Federal 12.529/2011, que estrutura a concorrência.

Em fevereiro de 2019, o MPT/SP propôs uma outra ação civil pública, agora contra o IFOOD, pelo mesmo motivo: burlar a relação de emprego. Os procuradores do trabalho pediram o reconhecimento do vínculo e uma indenização por dano moral coletivo.

Em resposta, as empresas asseveram que os condutores autônomos não são contratados por eles, mas aderem à plataforma voluntariamente. A empresa apenas presta serviços de intermediação digital para os condutores autônomos e, deles, recebe uma comissão, visto que cria um ambiente de negócio virtual para que os tomadores de serviços possam contratar diretamente aqueles para o transporte de pequenas cargas. Assevera que a mera intermediação de mão de obra é lícita e, portanto, o pleito de declaração de relação de emprego e abstenção de contratação de autônomo estará contrário a lei.

O MPT/SP reconhece que tais trabalhadores possuem todos os requisitos da relação de emprego, previstos nos arts. 2º e 3º da CLT, e não podem ser contratados ou mantidos como autônomos, por meio de contratos de prestação de serviço, de parceria ou qualquer outra forma de contratação civil ou comercial. Além disso, a ausência do risco pela atividade empresarial face à desconsideração do vínculo empregatício acaba por gerar uma concorrência desleal em relação às demais empresas, o chamado dumping social.

[1] Dumping social é uma prática dos empregadores para usar de mão de obra mais barata do que a normalmente disponível em seu local de produção.

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