3. O papel das regiões autônomas no planejamento urbano
As regiões autônomas são também denominadas regiões autônomas dos Açores e da Madeira, e configuram um caso de administração autônoma territorial. Fernanda Paula Oliveira e José Eduardo Figueiredo Dias recordam que as regiões autônomas não têm autonomia apenas do ponto de vista administrativo, mas também no que respeita ao exercício da função legislativa (através de decretos legislativos regionais) e da função política. No entanto, não é por terem mais poderes, para além dos administrativos, que deixam de ser pessoas coletivas de direito público[21].
A Constituição da República Portuguesa diz, em seu artigo 225º, que o regime político-administrativo próprio dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, fundamenta-se nas suas características geográficas, económicas, sociais e culturais e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares (nº 1). Esta autonomia visa à participação democrática dos cidadãos, o desenvolvimento económico-social e a promoção e a defesa dos interesses regionais, bem como do reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses.[22]
Trata-se de um modelo de gestão que privilegia os traços marcantes das culturas presentes nestas duas ilhas, estabelecendo um quadro de organização administrativa que favorece a autogestão, estando esta adstrita, no entanto, aos contornos estatais definidos no Texto Constitucional Português. As regiões autônomas, neste sentido, possuem autonomia administrativa e legislativa para se auto gerirem, mas não possuem soberania, uma vez que esta pertence, unicamente, ao Estado português como um todo.
Sobre a questão da soberania e da autonomia política e administrativa das ilhas da Madeira e Açores, José Casalta Nabais recorda que o Estado português se apresenta, antes de mais, moldado pelo princípio do Estado unitário. O que significa que temos apenas um Estado, não se verificando, por conseguinte qualquer divisão, em termos verticais, do exercício da soberania, havendo um único centro estadual e cujos órgãos cabe o exercício de toda a soberania[23].
Neste sentido, a Constituição portuguesa afirma que a autonomia político-administrativa regional não afeta a integridade e soberania do Estado e exerce-se no quadro da Constituição (nº 3)[24].
As regiões autônomas possuem autonomia legislativa para legislarem sobre ordenamento de seu território, entre outras matérias, desde que estas não estejam reservadas aos órgãos de soberania (art. 228º da Constituição da República). A Constituição Portuguesa assevera que os órgãos de soberania asseguram, em cooperação com os órgãos de governo próprio, o desenvolvimento económico e social das regiões autónomas, visando, em especial, à correção das desigualdades derivados da insularidade (art. 229º, nº 1)[25]. Esta última disposição tem por objetivo estabelecer um canal para a correção de distorções entre o Estado Central e as Regiões Autónomas, derivadas de processos históricos e de espacialidades próprios. Tal anseio tem como finalidade garantir, diretamente, a unidade do território português e, indiretamente, do território europeu, mesmo que uma separação geográfica imponha uma separação de fato.
Das lições de Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos extrai-se que o Estado português é um Estado unitário regional periférico (art. 6º, 288º, alínea o da CRP); não existe, portanto, uma pluralidade de entes dotados de soberania na ordem interna, mas sim regiões periféricas com autonomia administrativa, política e legislativa. Esta forma de Estado justifica a existência e a estrutura de administrações públicas regionais dos Açores e da Madeira[26].
Jorge Miranda fala em complementaridade, interdependência e colaboração do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais (arts. 65º, nº 4, 229º, nº 1, alínea c, e 257º da Constituição, bem como arts. 73º, nº 3, 248º e 267º, nº 1, segunda parte)[27] no que tange ao ordenamento do território e a tutela do meio ambiente, sendo estas tarefas inatas de cada uma destas parcelas administrativas do todo soberano estatal.
Deste modo, a unidade do Estado português é limitada, desde logo, pela autonomia insular, o que comporta o reconhecimento, a nível político, das regiões autónomas, dotadas de um regime jurídico-administrativo próprio, traduzido em os Açores e a Madeira terem a seu cargo, na respectiva região autónoma, as funções, legislativa e política (ou “governamental”), bem como a correspondente função administrativa, que são exigidas pela promoção e defesa dos interesses regionais. O que configura o Estado português como um Estado parcialmente regionalizado[28].
Como decorre de preceitos constitucionais, o urbanismo, como função pública pertence, ou é da responsabilidade simultânea do Estado, das Regiões Autónomas e das Autarquias Locais. A razão de ser desta repartição de atribuições, como já destacamos em momento anterior, decorre do fato de o urbanismo convocar, simultaneamente, interesses gerais, estaduais ou nacionais – cuja tutela é cometida pela Constituição ao Estado -, interesses das Regiões Autónomas [artigo 6º, nº 2, 225º, nº 2, e 228º, da Constituição] e interesses locais, cuja responsabilidade cabe aos municípios, de harmonia com o princípio da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização administrativa (artigos 6º, 235º, e 237º da Constituição). Trata-se, pois, de um domínio onde se verifica uma concorrência de atribuições e competências entre a Administração estadual, regional (das regiões autónomas) e municipal[29].
Esta gestão administrativa coordenada, como opera sem entraves, oportuniza a realização do princípio da boa administração. Este princípio, que por muito tempo, segundo Suzana Tavares da Silva, esteve associado unicamente a gestão financeira do Estado, hoje é entendido em um espectro mais amplo, que abarca toda a gama de atuações do Estado, tendo como “farol” o Texto Constitucional pátrio. Neste sentido, esta autora ensina que, hoje, o princípio da boa administração encerra uma multiplicidade de dimensões (e não apenas a boa gestão financeira) materiais e procedimentais atinentes à globalidade das atuações dos órgãos da União, pretendendo acolher diversos fundamentos para recurso contra os atrasos procedimentais, incumprimentos e outras manifestações de “má-administração”, entre as quais incluem também os casos em que exista má fé das entidades administrativas, violação do dever de diligência, falta de fiscalização ou controle deficiente, entre outros[30].
Por outro lado, como ainda recorda esta autora, a boa administração surge também associada à good governance (livro branco – COM 2001/428), ou seja, à forma como as competências (poderes) são exercidos no nível europeu, pressupondo-se o respeito por um conjunto de parâmetros pré-definidos: linguagem acessível nas decisões; coerência nas medidas reveladas pela coordenação na prossecução de uma finalidade comum; participação democrática na formação de decisões; clara delimitação de poderes e esferas de atuação, com correspondente identificação do grau de responsabilização[31].
O papel das regiões autónomas no planejamento e ordenamento dos espaços urbanos e territoriais encontra-se bem claro, a teor do artigo 65º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa, que dispõe que o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais, definem as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planejamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo, e procedem às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística[32].
Tal atribuição, como já afirmamos em momento anterior, está demonstrada, de forma clara, também na Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo (Lei nº 48/98, de 11 de agosto), em seu artigo 8º, quando este afirma que o Estado, as Regiões Autónomas e as autarquias locais devem promover, de forma articulada, políticas ativas de ordenamento do território e de urbanismo, nos termos das suas atribuições e das competências dos respectivos órgãos, de acordo com o interesse público e no respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos[33].
Eis que está bem identificada a função e as tarefas das regiões autônomas, no que tange ao ordenamento e planejamento dos espaços urbanos e territoriais que estejam sob sua jurisdição. Por fim, resta consignar que a atuação administrativa das regiões autônomas, assim como deve proceder ao Estado central e às autarquias locais, deve ocorrer de modo a concretizar os princípios gerais da política de ordenamento do território e do urbanismo.
Referências
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