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O papel das autarquias locais, das freguesias e das regiões autônomas no planejamento urbano em Portugal

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As competências e responsabilidades acerca do planejamento urbano em Portugal são bem repartidas entre autarquias locais, freguesias e regiões autônomas, servindo de exemplo ao federalismo no Brasil, ainda que se trate de um Estado unitário.

1. O papel das Autarquias locais no planejamento urbano

As autarquias locais, segundo a estrutura do direito administrativo português, são pessoas coletivas públicas, de base territorial (assentam numa fração do território), que asseguram a prossecução de interesses próprios do respetivo agregado populacional, através de órgãos próprios, por estes eleitos. Por isso se diz que são pessoas coletivas públicas de população (visam a satisfação de interesses próprios das pessoas aí residentes. São autarquias locais, no continente, as freguesias, os municípios e, ainda, as regiões administrativas (ainda não criadas em Portugal) e, nas Regiões Autônomas, as freguesias e os municípios[1].

Como explica Fernando Alves Correia, as atribuições dos municípios, também chamados concelhos, são os fins ou os interesses próprios da respectiva população, isto é, os assuntos ou as tarefas que se relacionam, especifica e diretamente, com aquela comunidade local, e que por ela devem ser prosseguidos em auto-responsabilidade. É o direito e a capacidade efetiva de os municípios regularem e gerirem, sob sua responsabilidade, nos termos da Constituição e da lei (arts. 6º, nº 1, 235º, nº 2, e 237º, nº da CRP), uma parte importante dos assuntos públicos caracterizam, de harmonia com o art. 3º, nº 1, da Carta Europeia de Autonomia Local (1985), e o conceito de autonomia local (ou de autonomia das autarquias locais, que engloba a autonomia dos Municípios). A autonomia das autarquias locais é um elemento essencial da estrutura unitária do Estado português (art. 6º, nº 1, da CRP) e constitui um limite material da revisão da Constituição [al. n) do art. 288º da CRP][2].

Ainda segundo o supracitado autor, não há uma linha de separação rigorosa entre os interesses nacionais, prosseguidos pelo Estado, e os interesses municipais, realizados pelos Municípios. Muitas tarefas administrativas constituem, na verdade, um condomínio de atribuições do Estado e dos Municípios, na medida em que elas co-desenvolvem, simultaneamente, interesses gerais, estaduais ou nacionais e interesses locais, em particular dos Municípios (como sucede com as matérias de ordenamento do território e do urbanismo – art. 65º, nº 4 da CRP). Além disso, muitas delas são (ou devem ser) levadas a cabo em regime de colaboração ou de cooperação entre o Estado e os Municípios[3].

O ordenamento do território e do urbanismo, nas lições de João Miranda, constituem duas matérias em que se revela complexa a delimitação das áreas de intervenção das várias entidades públicas portadoras de interesses públicos. Conforme já explicitamos, foi reconhecido pelo Tribunal Constitucional, no Ac. nº 432/93, de 13 de julho, que o ordenamento do território e do urbanismo são domínios abertos à intervenção concorrente do Estado e das autarquias. Ainda segundo este autor, não se pode hoje convocar o princípio da autonomia local para defender a existência de matérias exclusivamente da competência dos órgãos autárquicos, tanto mais que o critério dos assuntos locais para delimitar as matérias que as autarquias intervêm isoladamente deve ser posto de lado em função da dificuldade em apurar o seu sentido. Raríssimas são as competências dos órgãos dos municípios que não têm uma repercussão supralocal e, por outro lado, qualquer intervenção do Estado no território não pode descurar as competências dela decorrentes para os municípios abrangidos[4].

Para João Miranda, no domínio específico do planejamento, a Constituição portuguesa aponta também em seu artigo 65.º, nº 4, para a intervenção concorrente de várias entidades públicas. Com efeito, postula que o Estado, as regiões autônomas e as autarquias locais, definem as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planejamento[5].

Ainda segundo este autor, pode-se dizer que, tendencialmente, existe uma linha de continuidade entre as políticas de ordenamento do território e de urbanismo, devendo esta última política desenvolver as linhas gerais traçadas pela primeira. Não se deve, porém, retirar desta prioridade lógica do ordenamento do território sobre o urbanismo que o primeiro pode consumir o segundo, sob pena de se cair no erro de considerar que tudo é ordenamento do território.

O art. 8.º, nº 1 da Lei n.º 31/2014, de 30 de maio dispõe que o Estado, as regiões autônomas e as autarquias locais têm o dever de promover a política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo, no âmbito das respetivas atribuições e competências, previstas na Constituição e na lei[6].

Compete ao Estado (Administração Central): Através do Governo, sob coordenação do ministro do ordenamento do território: a) elaborar o Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território (o qual já foi elaborado, através da Lei n.º 58/2007, de 4 de setembro); b) elaborar os Planos Setoriais[7] (Plano Setorial da Rede Natura 2000); c) elaborar os Planos Especiais[8] de Ordenamento do Território; d) elaborar os Planos Regionais[9] de Ordenamento do Território, sob deliberação das Comissões de Coordenação Nacional do Porto, Coimbra, Lisboa, Évora e Faro.

Compete às Regiões Autônomas obedecerem às diretrizes traçadas no programa nacional da política de ordenamento do território, além de elaborar Planos Intermunicipais e Municipais de Ordenamento do Território.

Como recorda André Folque, no âmbito das autarquias locais, as competências estão repartidas entre a Assembleia Municipal e a Câmara Municipal que, como órgão executivo do município, a Câmara Municipal tem relevantes competências urbanísticas, bem como o presidente da Câmara[10].

As atribuições do Município – reguladas, atualmente na Lei n.º 75/2013 – são definidas, nos termos dos artigos 6º, nº 1, e 237º, nº 1, da CRP, de harmonia com os princípios da descentralização administrativa (ou seja, mediante a transferência de um núcleo substancial de tarefas do Estado para os Municípios, tendo por finalidade reforçar a sua atuação, aprofundar a participação dos cidadãos na vida pública, promover a eficiência e a eficácia da gestão pública e assegurar os direitos dos administrados) e da subsidiariedade (isto é, com base no reconhecimento de as funções administrativas devem ser exercidas pelo nível da administração melhor colocado para as prosseguir com racionalidade, eficácia e proximidade aos cidadãos)[11].

O papel das autarquias locais no planejamento urbano mostra-se não apenas relevante, mas imprescindível a um correto ordenamento dos espaços urbanos e territoriais, uma vez que os municípios (em especial) apresentam-se como as unidades administrativas, com melhores condições para o reconhecimento das necessidades da população neles residentes, de modo que as políticas públicas por si empreendidas, ou por si elaboradas, detém maiores chances de realizar, com eficiência, os objetivos constitucionalmente previstos para a concretização um efetivo Estado de Direito Democrático.

Esta proximidade da população frente aos órgãos responsáveis pela elaboração e execução de políticas de ordenamentos dos espaços urbanos e territoriais é colocado como a essência do princípio da subsidiariedade. Sobre ele, J.J. Gomes Canotilho leciona que, em articulação com a cláusula da integração europeia (art. 7º/6) e com o princípio do Estado Unitário (art. 6º/1), o princípio da subsidiariedade adquiriu (depois da revisão de 1992, no que respeita a União Europeia, e depois da revisão de 1997, no que se refere à estrutura vertical-territorial do Estado Unitário) dimensão estruturante da ordem constitucional portuguesa. O princípio da subsidiariedade densificado a nível de relações Estado-membro/União Europeia, e do Estado Unitário/regiões e autarquias locais, é expressão de um princípio geral de subsidiariedade que pode formular-se assim: as comunidades ou esquemas organizatório-políticos superiores só deverão assumir as funções que as comunidades menores não podem cumprir da mesma forma, ou de forma mais eficiente. O princípio da subsidiariedade se articula com o princípio da descentralização democrática: os poderes autonómicos regionais e locais das regiões autônomas e das autarquias locais devem ter competências próprias para regular e tratar as tarefas e assuntos das populações das respectivas áreas territoriais.[12]

Rui Manoel Amaro Alves ensina que o quadro jurídico português atribui um papel importante aos Municípios no planejamento e ordenamento do território e na promoção do desenvolvimento. O elenco das funções que o Estado tem atribuído às Autarquias Locais, no quadro dos princípios da descentralização, subsidiariedade e parceria, tem vindo a aumentar ao longo do tempo. O desempenho dessas funções tem sido realizado no quadro de uma partilha contratual, em que a vontade do Estado prevalece sobre a das Autarquias Locais, que se veem obrigadas a anuir, sob pena de sofrerem sanções ou não conseguirem financiamentos[13].

Como explica Paulo V. D. Correia, os governos a nível central e local devem ter a vontade política necessária a, permanentemente, desenvolverem e porem em prática políticas de solo adequadas, tanto para o espaço urbano, quanto para o espaço rural, que devem constituir, de fato, a pedra angular dos seus esforços com vistas à melhoria da qualidade de vida em estabelecimentos humanos (Nações Unidas/HABITAT, Vancouver, 1976)[14].

A Lei nº 75/2013, de 12 de setembro, importante por tratar do regime jurídico das autarquias locais, dispõe, em seu artigo 3º, que a estas prosseguem as suas atribuições através do exercício pelos respetivos órgãos das competências legalmente previstas, designadamente: a) de consulta; b) de planejamento; c) de investimento; d) de gestão; e) de licenciamento e controlo prévio; f) de fiscalização[15].

As autarquias locais concorrem, pela própria existência, para a organização democrática do Estado. Justificadas que são pelos valores da liberdade e da participação, as autarquias conformam um “âmbito de democracia” (Ruiz Miguel), num sistema que conta precisamente com um princípio básico de que toda a pessoa tem o direito de participar na adoção das decisões coletivas que a afetam. A Constituição define-as como “pessoas coletivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam à prossecução de interesses próprios das populações respectivas” (cfr. Constituição da República Portuguesa, art. 237º). Não lhes traça um figurino de mera administração autônoma do Estado. Deixa claro o “sentido político que adquire o exercício das suas funções” (Jorge Miranda), que as autarquias “constituem também uma estrutura do poder político” (Gomes Canotilho e Vital Moreira). No programa constitucional (cf. Constituição da República Portuguesa, “princípios fundamentais”, artigo 6º, e título VII, “poder local”), as normas que organizam o poder autárquico assumem uma justificação eminentemente democrática[16].

Por fim, pode-se afirmar que compete às autarquias locais, em síntese: a) elaborar os Planos Intermunicipais de Ordenamento do Território; b) elaborar os Planos Municipais de Ordenamento do Território, compreendendo os Planos Diretores Municipais, os Planos de Urbanização e os Planos de Pormenores (os quais podem ter como modalidades: os planos de intervenção no espaço rural, os planos de pormenor de reabilitação urbana e o plano de pormenor de salvaguarda).


2. O papel das freguesias no planejamento urbano

Como já destacado em linhas anteriores, as freguesias são parte da estrutura das autarquias locais, juntamente com os municípios e as regiões administrativas (que ainda não foram criadas).

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As freguesias dispõem de atribuições nos domínios do equipamento rural e urbano, do abastecimento público, do ambiente e salubridade, do desenvolvimento e do ordenamento urbano e rural, entre outros[17]. Estas atribuições estão alicerçadas na Lei 75/2013, de 12 de setembro – lei que estabelece o regime jurídico da transferência de competências do Estado para as autarquias locais, entre outras questões.

Esta lei em comento, Lei nº 75/2013, de 12 de setembro, dispõe de informações preciosas acerca do papel das freguesias na gestão pública como um todo, e, em especial, no ordenamento dos espaços urbanos e territoriais. Dispõe, em seu artigo 7º, que as freguesias possuem atribuições nos seguintes domínios: 1) a promoção e salvaguarda dos interesses próprios das respetivas populações, em articulação com o município; 2) outras, designadamente nos seguintes domínios: a) Equipamento rural e urbano; b) Abastecimento público; c) Educação; d) Cultura, tempos livres e desporto; e) Cuidados primários de saúde; f) Ação social; g) Proteção civil; h) Ambiente e salubridade; i) Desenvolvimento; j) Ordenamento urbano e rural; k) Proteção da comunidade[18].

O nº 3 do mesmo artigo 7º assevera que as atribuições das freguesias abrangem, ainda, o planejamento, a gestão e a realização de investimentos nos casos e nos termos previstos na lei.

Em relação às juntas de freguesia, o artigo 16º, deste mesmo diploma (Lei nº 75/2013, de 12 de setembro), dispõe serem suas competências (nº 1), com o recorte que atende ao objetivo desta obra: a) Elaborar e submeter à aprovação da assembleia de freguesia as opções do plano e a proposta do orçamento, assim como as respetivas revisões; b) Executar, por empreitada ou administração direta, as obras que constem das opções do plano e tenham dotação orçamental adequada nos instrumentos de gestão previsional aprovados pela assembleia de freguesia; c) Aprovar operações urbanísticas em imóveis integrados no domínio patrimonial privado da freguesia, após parecer prévio das entidades competentes;  d) Discutir e preparar com instituições públicas, particulares e cooperativas que desenvolvam a sua atividade na circunscrição territorial da freguesia protocolos de colaboração, designadamente quando os respetivos equipamentos sejam propriedade da freguesia e se salvaguarde a sua utilização pela comunidade local; e) Submeter à assembleia de freguesia, para efeitos de autorização, propostas de celebração dos protocolos de colaboração referidos na alínea anterior; f) Pronunciar-se sobre projetos de construção e de ocupação da via pública, sempre que tal lhe for requerido pela câmara municipal; g) Participar, nos termos acordados com a câmara municipal, no processo de elaboração dos planos municipais de ordenamento do território; h) Colaborar, nos termos acordados com a câmara municipal, na discussão pública dos planos municipais do ordenamento do território; i) Facultar a consulta pelos interessados dos planos municipais de ordenamento do território; j) Gerir e manter parques infantis públicos e equipamentos desportivos de âmbito local; l) Proceder à manutenção e conservação de caminhos, arruamentos e pavimentos pedonais; m) Proceder à administração ou à utilização de baldios sempre que não existam assembleias de compartes[19].

Como destaca José Casalta Nabais, a freguesia, embora formalmente constitua uma autarquia independente da formada pelo município em que se integra materialmente, porém, não passa de uma estrutura de desconcentração personalizada do respectivo município. O que é evidente no respeitante às freguesias localizadas na sede da autarquia municipal, sobretudo quando se trata de cidades ou centros urbanos importantes. Pois, relativamente a essas freguesias, não se vislumbram quaisquer interesses locais específicos e diferentes dos do município. Na verdade, tais freguesias servem basicamente como estruturas de desconcentração (personalizada) dos serviços municipais, designadamente nos municípios de maior dimensão[20].

Eis, em síntese, o papel das freguesias no ordenamento dos espaços urbanos e territoriais, no que tange a um planejamento para o desenvolvimento sócio-ambiental e econômico de áreas, na menor escala do planejamento estatal. As freguesias, na realidade brasileira, correspondem aos bairros de uma cidade. Uma das principais diferenças entre as freguesias, na realidade portuguesa, e os bairros, na realidade brasileira é que, neste último caso, o Estado brasileiro não concede aos bairros responsabilidades específicas em termos de ordenamento territorial ou urbano, pois as menores unidades de planejamento e de execução da política urbana brasileira são os municípios. Os bairros, podem, em seu interesse, e como forma de melhor organizar-se, instituir associação de moradores ou associação de bairro, que possuem a natureza jurídica de pessoa jurídica de direito privado, mesmo que com interesse público a ser reconhecido pelo Poder Público. No entanto, sua atuação não vincula a Administração Pública e nem é vinculada por esta, uma vez que não há definição de competências constitucionais para os bairros no direito brasileiro.

Por fim, vale frisar que as Freguesias (na realidade portuguesa) não têm atribuições em matéria de planejamento, embora, como vimos, tenham algumas na área da intervenção urbana.

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Sobre o autor
Carlos Sérgio Gurgel da Silva

Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal), Mestre em Direito Constitucional pena Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Especialista em Direitos Fundamentais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte (FESMP/RN), Professor Adjunto IV do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Advogado especializado em Direito Ambiental, Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RN (2022-2024), Geógrafo, Conselheiro Seccional da OAB/RN (2022-2024), Conselheiro Titular no Conselho da Cidade de Natal (CONCIDADE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Carlos Sérgio Gurgel. O papel das autarquias locais, das freguesias e das regiões autônomas no planejamento urbano em Portugal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6544, 1 jun. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90904. Acesso em: 16 abr. 2024.

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