Aprovado pela Câmara dos Deputados, em regime de urgência, o texto-base do Projeto de Lei nº 10.887/2018[1], que pretende promover relevantes alterações na Lei nº 8.429/92[2] (Lei de Improbidade Administrativa - LIA), acalorou-se – como se não bastassem as polêmicas atualmente vivenciadas no cenário político-pandêmico brasileiro – o debate sobre a potencial impunidade dos agentes públicos acusados da prática de atos de improbidade administrativa, comumente confundidos e associados pelo noticiário nacional à tipificação penal da corrupção.
Dentre as variadas opiniões expressadas sobre o texto-base aprovado, há um lugar crítico comum a diversos operadores do direito preocupados com o tema: o enfraquecimento do combate à malversação do dinheiro público e a mitigação das armas legais de punição aos agentes praticantes de atos ímprobos.
Em consequência disso, num movimento aparentemente calculado de resposta à Sociedade, um dia após a realização da votação de aprovação – ocorrida em 16/06/2021, o site da Câmara dos Deputados veiculou notícia acerca do Projeto de Lei nº 1.484/2021[3], que visa alterar não só a redação do artigo 23, da LIA (sobre o qual o PL 10.887/2018 também já se debruça), para incluir um quarto inciso, mas também a do artigo 21, da Lei nº 4.717/65[4] (Lei de Ação Popular), para nele incluir um parágrafo único.
As alterações propostas no PL nº 1.484/2021, assinado pelo Deputado Federal Guiga Peixoto (PSL-SP) e ainda pendente de apreciação pela Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania, ostentam um fim claro, qual seja o de positivar o enunciado da tese de imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário por ato (doloso) de improbidade administrativa, alcançado a partir do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, do Tema nº 897 de Repercussão Geral (Recurso Extraordinário nº 852.475[5]).
Contudo, diante desse recente frenesi legislativo sobre a matéria, e considerando a iminência de modificações significativas na LIA pelos citados projetos de lei, o questionamento que surge – em meio a tantos outros – é: ainda que o propósito de proteção à coisa pública seja nobre, à luz do artigo 37, § 5º, da Constituição de 1988 (CF), a Lei de Improbidade Administrativa comporta tratar dos prazos de prescrição (ou da imprescritibilidade) para as ações de ressarcimento por danos ao erário decorrentes da prática de ato de improbidade administrativa? Ademais, caberia, à Lei de Ação Popular tratar da matéria?
Entendo que não e explico o porquê.
Prima facie, há de se perceber que a improbidade administrativa recebe tratamento constitucional através dos §§ 4º e 5º, do artigo 37, da Carta Magna[6], os quais dispõem, respectivamente, sobre as consequências – a serem previstas em lei, qual seja a Lei de Improbidade Administrativa – dos atos ímprobos e os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízo ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.
Em vista disso, o artigo 23, da LIA, em seus incisos, estabeleceu os prazos de prescrição para a proposição das ações destinadas a levar a efeito as sanções previstas no próprio diploma, não tratando, porém, especificamente da questão do ressarcimento ao erário.
Isso posto, aquela ressalva flagrada no trecho final da redação do artigo 37, § 5º, CF é, ainda hoje, o cerne de uma polêmica jurisprudencialmente apaziguada – com o julgamento do Tema nº 897 pelo STF, mas ainda muito latente no campo doutrinário, tendo em vista o viés subjetivista axiológico adotado pela Corte Constitucional naquele exercício jurisdicional.
A análise perfunctória adotada pela Suprema Corte (com a qual este Autor respeitosamente discorda, conforme já publicado na Revista Jurídica da Seção Judiciária de Pernambuco), interpretou, sob o prisma principiológico de proteção à coisa pública, que a imprescritibilidade decorreria diretamente daquela parte final do texto constitucional.
Para a apertada maioria de Ministros do STF favoráveis à imprescritibilidade, a redação do artigo 37, § 5º, CF, seria autossuficiente para sedimentar a incolumidade das ações de ressarcimento ao erário por ato doloso de improbidade administrativa ao decurso do tempo.
Diante disso, talvez buscando corrigir a rota jurisprudencial adotada pelo STF, o Projeto de Lei nº 10.887/2018 (apresentado em 17/10/2018, entre a conclusão do julgamento do Tema nº 897 e a publicação de seu acórdão), em seu texto originalmente apresentado, pretendeu reformular a redação do artigo 23, da LIA, nele inserindo um § 2º, para prever que “a pretensão à condenação ao ressarcimento do dano e à de perda de bens e valores de origem privada prescreve em 20 (vinte) anos a partir do fato”.
Seria, portanto, uma solução – diversa da adotada pelo STF – à questão da prescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário, que passariam a ser prescritíveis pela nova redação do artigo 23, § 2º, da LIA, em prazo vintenário.
Ocorreu, entretanto, que o texto-base aprovado às pressas pela Câmara dos Deputados em 16/06/2021, modificou substancialmente a proposta original, expurgando a sugestão vintenária acima transcrita e propondo, para o caput do artigo 23, um vencimento prescricional de 08 (oito) anos para a aplicação das sanções previstas na Lei, o que gerou um fervor de preocupação na comunidade jurídica.
Além do próprio Autor do PL 10.887/18, o deputado federal Roberto Lucena (PODEMOS-SP), que externou publicamente na imprensa sua preocupação com a prescrição das ações de ressarcimento em 08 anos, o Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, Dr. Roberto Livianu, também manifestou seu entendimento acerca da possibilidade prescrição das pretensões ressarcitórias a partir das modificações à LIA aprovadas pela Câmara.
Penso, porém, respeitando imensamente a opinião das personalidades acima citadas e de quem a ela se filie, que, apesar de preocupante o texto-base aprovado no que cerne à instrumentalização dos órgãos públicos e do Poder Judiciário no combate aos danos à Administração Pública, o temor do prejuízo às pretensões de ressarcimento ao erário esbarrarão na constitucionalidade da nova redação aprovada.
Embora – como já dito neste ensaio – se discorde da conclusão atingida pelo STF no Tema nº 897 de Repercussão Geral, fato é que a Corte Suprema compreende que decorre do próprio texto constitucional a imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário por ato doloso de improbidade administrativa.
Nesse caso, não haveria espaço para disposição desse assunto na Lei de Improbidade Administrativa ou em qualquer outra lei destinada à tutela da coisa pública e de interesses da sociedade, a exemplo da Lei da Ação Popular.
Nesse diapasão, qualquer manobra infraconstitucional de mitigação da compreensão adotada pelo Pretório Excelso ao comando disposto no trecho final do artigo 37, § 5º, CF88, será manifestamente inconstitucional, mantendo-se a interpretação de imprescritibilidade das ações aqui tratadas. Uma ação Direta de Inconstitucionalidade muito provavelmente resolveria o problema.
Outrossim, até a alteração proposta à LIA pelo Projeto de Lei nº 1.484/2021, que insere um quarto inciso em seu artigo 23 para prever que as ações destinadas à aplicação das sanções poderão ser ajuizadas a qualquer tempo quando veiculem pretensão de ressarcimento ao erário por ato doloso de improbidade administrativa, seria rechaçada em eventual enfrentamento de sua constitucionalidade pelo STF, posto que a imprescritibilidade tem assento constitucional, não cabendo ao processo legislativo dispor de maneira distinta.
E imagino não poder ser diferente. Permitir que a lei disponha sobre a (im)prescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário, quando o STF a decidiu inconstitucional por compreensão axiológica da Norma Fundamental – quer se concorde ou não com esse entendimento, seria franquear ao processo legislativo a prerrogativa de eventualmente modificar essa interpretação, inclusive fixando um prazo prescricional, qualquer que seja ele, contrário à hermenêutica desenvolvida pela Corte Constitucional.
Dito isso, apesar de justa a preocupação de operadores do direito quanto à prescrição das ações de ressarcimento ao erário com a aprovação do PL 10.887/18, é de se perceber que a imprescritibilidade tenderia a se manter, posto que matéria constitucional, sobre a qual o Tribunal competente já exerceu cognição exauriente – ao menos por ora.
Doutra banda, há quem discorde frontalmente da conclusão alcançada pelo STF à norma do artigo 37, § 5º, CF88, como o Autor deste ensaio. Entendo, respeitando a relevância acadêmica dos que guardam opinião simpática à imprescritibilidade, que a norma constitucional não parece ter deixado fora do campo de normatização do ‘gênero lei’ o prazo prescricional da ação de ressarcimento ao erário. Excluiu-o, sim, especificamente da lei que “disporá sobre os prazos de prescrição para os ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário”.
Isto é, o prazo de prescrição das ações de ressarcimento ao erário não seria fixado pela lei (LIA) que conferiu eficácia à norma – limitada – do § 5º, do artigo 37, da CF. Isso, sob qualquer hipótese, não significa dizer que as ações de ressarcimento ao erário não encontram prazo prescricional próprio no ordenamento jurídico pátrio. Poder-se-ia extrair esse vencimento temporal, por exemplo, do Código Civil, em seu artigo 205, que prevê a prescrição decenal, nos casos em que a lei não lhe houver fixado prazo menor.
Nesse caso, nem o PL 10.887/2018 poderia dispor, em seu texto-base, a fixação de prazo prescricional – qualquer seja o lapso temporal – para as ações de ressarcimento ao erário, muito menos poderia o PL 1.484/2021 vislumbrá-las imprescritíveis, visto que a Constituição excluiu – ou, respeitando a literalidade do texto, “ressalvou” – do objeto da LIA as ações de ressarcimento ao erário por ato de improbidade administrativa.
Dada essa apontada impossibilidade de alteração legislativa, restaria então à Lei 4.717/65 (Lei de Ação Popular - LAP) – também alvo de alteração pelo PL 1.484/2021 – tratar dos prazos de prescrição para pretensões de ressarcimento ao erário por ato de improbidade administrativa? Não nos parece o desfecho mais adequado à questão.
O texto-base aprovado do PL 10.887/2018 – carente ainda, diga-se, de aprovação pelo Senado, na proposição de nova redação ao artigo 17, da LIA, restringiu apenas ao Ministério Público a legitimidade ativa para a propositura de ações para a aplicação das sanções aos atos ímprobos.
Enquanto isso, o PL 1.484/2021 propõe um parágrafo único ao artigo 21, da Lei de Ação Popular, o qual disporá como “imprescritível a pretensão de ressarcimento ao erário quando o dano resultar de ato doloso previsto na Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992”.
Note-se, por corolário lógico, que o parágrafo único proposto por aquele Projeto de Lei ao artigo 21, da LAP, cujo caput prevê a prescrição de 05 (cinco) anos às ações previstas “nesta lei”, dele não se dissociaria, dedicando-se apenas à espécie “ação popular”.
Até mesmo por isso, a outra conclusão não se chega senão a de que apenas as ações populares de ressarcimento ao erário serão albergadas pelo manto da imprescritibilidade, mantendo-se prescritíveis as pretensões ressarcitórias decorrentes de atos de improbidade administrativa perseguidas através de ações de natureza diversa.
Mas o problema vai além.
Estabelecida a legitimidade ativa exclusiva do Ministério Público para a propositura das ações de ressarcimento ao erário por improbidade administrativa, decorrente da nova redação do artigo 17, da LIA, e considerando que o Parquet não é legitimamente ativo para a propositura de ações populares, assumindo a sua titularidade apenas no caso de desistência do autor-cidadão (art. 9º, da LAP), ter-se-ia – então – que apenas as ações populares de ressarcimento ao erário propostas por cidadãos serão imprescritíveis, suscetíveis ao decurso do tempo todas as demais espécies procedimentais, estas titularizadas pelo Ministério Público.
Em resumo, entendo – amplamente aberto à divergência – que a miscelânea de iniciativas legislativas tendentes a acomodar no direito positivo brasileiro a prescrição/imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário por ato doloso de improbidade administrativa, mesmo que servientes a um interesse nobre de preservação da estabilidade das relações jurídicas (com a prescrição) ou de proteção à coisa pública (no caso da imprescritibilidade), podem produzir um resultado ainda mais desastroso ao tema, renovando incertezas e promovendo desastrosa insegurança jurídica.
De lado a lado as soluções legislativas, no anseio de darem uma resposta à sociedade, parecem querer dar um passo maior que a perna, isto é, resolver um suposto problema de positivação do tempo de vencimento das pretensões ressarcitórias sem antes analisar os limites e possibilidades para a inserção dessa matéria no ordenamento jurídico pátrio.
[1] BRASIL, 2018. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 10.887, de 17 de outubro de 2018. Altera a Lei n° 8.429, de 2 de junho de 1992, que dispõe sobre improbidade administrativa. Brasília: Câmara dos Deputados, 2018. Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0f7x p60be4y316ik0nemtbem2396072.node0?codteor=1687121&filename=PL+10887/2018. Acesso em: 29 jun. 2021.
[2] BRASIL, 1992. Brasília. Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm. Acesso em 29 jun. 2021.
[3] BRASIL, 2021. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 1.484, de 20 de abril de 2021. Altera a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, e a Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965, para dispor sobre a imprescritibilidade da ação de ressarcimento contra o erário. Brasília: Câmara dos Deputados, 2021. Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1995771&filename=PL+1484/2021. Acesso em 29 jun. 2021.
[4] BRASIL, 1965. Brasília. Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4717.htm. Acesso em 29 jun. 2021.
[5] “São imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa.” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 852.475/SP. Relator: Min. Edson Fachin, Julgamento em 08 ago. 2018. Publicação em 25 mar. 2019.)
[6] § 4º - Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
§ 5º A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao.htm. Acesso em: 29 jun. de 2021.)