2. A ABORDAGEM DO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO AS INICIATIVAS DO ESTADO BRASILEIRO PARA O SEU ENFRENTAMENTO
A Constituição Federal (1988) no seu artigo 1º da CF/88 determina expressamente como fundamentos da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana (inciso III) e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (inciso IV). Deste escopo e de toda a normativa ao longo do texto constitucional, extrai-se o compromisso constitucional em se repelir qualquer possibilidade de submissão de seres humanos a condições de trabalho análogas à escravidão.
Conforme abordado na seção anterior o retorno da centralidade dos direitos humanos no Direito Internacional gerou, segundo Piovesan (2006) um movimento de “constitucionalismo global”, onde as constituições pelo mundo “adequaram” seus textos aos valores ligados a dignidade da pessoa humana. A Constituição Brasileira de 1988 também sofreu os efeitos desse movimento e carrega essa axiologia.
O estado brasileiro é signatário de vários instrumentos internacionais que tratam dos direitos humanos. A Convenção sobre a Escravatura das Nações Unidas, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Presidencial nº 58.563, de 1º de junho de 1966, pactua que os países signatários deveriam abolir completamente a escravidão sob todas as suas formas.
Em 1969, foi promulgada a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, mais conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, estampou o compromisso do estado brasileiro em erradicar a escravidão e a servidão em todas as suas formas.
A Convenção nº 29 da OIT, no seu artigo 2º, estabeleceu que o trabalho forçado, ou obrigatório, é aquele trabalho praticado sob ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente, ou seja, não é voluntário.
De acordo com a referida Convenção, “a expressão trabalho forçado ou obrigatório significa todo trabalho exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer sanção e para o qual não se ofereceu espontaneamente, caracterizando o vício de vontade, quer na aceitação do trabalho, quer em sua continuação, quer em seu término”.
Por conseguinte, a Convenção nº 105 da OIT, de 1957, que trata da abolição do trabalho forçado, dispõe em seu art. 1º, caput, que “todo país membro da OIT que ratificar a referida convenção compromete-se a abolir toda forma de trabalho forçado ou obrigatório e dele não fazer uso (...)”.
No início dos anos 90, o governo brasileiro, reconheceu a existência do trabalho escravo contemporâneo em seu território, perante a comunidade internacional. Registre-se iniciativas do estado como uma resposta a esse reconhecimento, algumas importantes ações começaram a ser tomadas com a edição do Decreto n. 1.538.
O decreto 1.538 criou estruturas governamentais para o combate ao crime do trabalho escravo, com destaque para o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado - GERTRAF e o Grupo Especial de Fiscalização Móvel - GEFM 5, coordenado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). O Grupo Especial de Fiscalização Móvel - GEFM, subordinado à Secretaria de Inspeção do Trabalho – SIT do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE, foi criado e começou a atuar no resgate dos trabalhadores.
Em 2003, foi lançado o 1º Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, o qual previa a implementação de várias ações em conjunto com as instituições governamentais e as organizações sociais, como parte da implementação da chamada “política anti-escravidão”. A partir do 1º Plano Nacional, vários estados se organizaram para criar os planos estaduais, sendo eles: o Maranhão, Piauí, Tocantins, Bahia, Mato Grosso e Pará.
O governo criou a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo – CONATRAE, como um órgão colegiado, cuja funções básicas são: monitorar a execução do Plano Nacional e a tramitação de leis relacionadas a erradicação do trabalho escravo; acompanhar e avaliar os projetos de cooperação técnica firmados entre o Governo brasileiro e os organismos internacionais e propor a elaboração de estudos e pesquisas e incentivar a realização de campanhas relacionadas à erradicação do trabalho escravo.
Há que se destacar a edição, pelo MTE, da Portaria nº 1.153, de 13 de outubro de 2003, que garante a concessão do seguro-desemprego aos trabalhadores escravos resgatados nas fiscalizações, desde que comprovem que não estão recebendo nenhum outro benefício da Previdência Social, exceto auxílio-acidente e pensão por morte, e não possuam renda própria para seu sustento e de sua família.
O MTE, por meio da Portaria no. 540/2004, criou um cadastro de empresas e pessoas físicas autuadas pela exploração do trabalho escravo, a chamada “lista suja”, que é atualizada semestralmente. O Instituto Ethos, o IOS- Instituto da oportunidade social e a ONG Repórter Brasil elaboraram e mantêm o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo.
O pacto, de 2005, consiste num acordo no qual os signatários, empresas e indústrias, comprometem-se em abolir de suas cadeias produtivas a utilização de mão de obra escrava, de forma a não aceitar fornecedores que façam uso desta prática, impondo restrições comerciais e financeiras às empresas e pessoas incluídas na “lista suja”. O pacto visa ainda à formalização das relações de trabalho de todos os fornecedores das empresas signatárias, o que implica o cumprimento das obrigações previdenciárias, assistência à saúde e garantias de segurança ao trabalhador.
Em 2008, foi aprovado o 2º Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. Por fim, em 29 de outubro de 2009, foi promulgada a Lei nº 12.064, que criou o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo (dia 28 de janeiro de cada ano) e a Semana Nacional de Combate ao Trabalho Escravo (que incluirá o dia 28 de janeiro).
Nesse mesmo contexto, foi sancionada a Lei nº 10.803/2003, a qual alterou a redação do art. 149. do Código Penal Brasileiro- CPB, e passou a prever pena de reclusão de dois a oito anos e multa, além da pena correspondente à violência, para o crime de redução de trabalhadores a condições análogas à escravidão.
Uma grande mudança constitucional foi inserida pela PEC- Projeto de Emenda Constitucional n° 81, a qual alterou a redação do artigo 243 da CF/88, passando a prever a expropriação (ato sancionatório de confisco sem indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei) das propriedades rurais e urbanas de qualquer região do país onde forem localizadas a exploração de trabalho escravo, na forma da lei, destinando-as à reforma agrária e a programas de habitação popular.
3. A PRECARIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DO TRABALHO NA AMAZÔNIA BRASILEIRA
3.1. O contexto histórico da utilização de mão-de-obra escrava na colonização e ocupação da Amazônia
No território da Amazônia brasileira, especialmente no sudeste do estado do Pará, várias forças cooperaram para a existência de trabalho escravo contemporâneo. Inegável a proposição de que a sua incidência não seja fruto das relações que se travaram em determinado contexto histórico geopolítico, econômico e social e que, reverberam nos tempos atuais.
A análise histórica remete à uma leitura crítica de que o mesmo Estado que hoje se esforça para eliminar essa prática deletéria, desde os tempos da escravidão tradicional, foi um dos maiores protagonistas, da gênese gestada e legitimada dessa conduta danosa, “absorvida culturalmente” com status de normalidade.
A exploração de mão-de-obra escrava na Amazônia, remonta das primeiras atividades econômicas desenvolvidas. Seja pela exploração dos nativos (índios e caboclos) ou dos milhares de trabalhadores, principalmente vindos do nordeste e centro-oeste, atraídos pelas promessas e perspectivas de vida melhor, sobretudo na época áurea da borracha, no final do século XIX, quando a Amazônia ostentava o status de uma das maiores exportadoras de látex para o mundo.
Os seringueiros enfrentavam diariamente os percalços de adentrar na floresta para extração da borracha, vitimados pela malária e o endividamento permanente, sob a prática do aviamento6, submetiam-se à condição análoga a de escravo.
Consoante análise do professor José de Souza Martins (2009), “o trabalho análogo nos dias atuais, deve ser apreendido a partir da década de 40, com a expansão da fronteira agrícola, quando a Amazônia transformou-se num imenso cenário de ocupação territorial massiva, violenta e rápida” (MARTINS, 2009:74).
As análises mais pontuais acerca das questões agrárias7 conflituosas envolvendo trabalhadores rurais e ocorridas em solo amazônico remontam para a intensificação do processo migratório, a partir da década de 70 do século XX, em pleno auge do governo militar, revelando um terreno fértil de violação de direitos, seja pela questão da reforma agrária propositalmente mal resolvida, seja pelos vários episódios desencadeados e atraídos pelo processo de colonização “planejado” e dirigido pelo estado, e que lógico, posteriormente se daria de forma espontânea.
Nas palavras de Sauer (2005): “aqui, toda a sorte de violação de direitos humanos é encontrada, desde simples ameaças ao direito de livre circulação até assassinatos das lideranças dos movimentos de resistência no campo” (SAUER, 2005).
O grande impulso a essa migração ocorreu, a partir dos governos militares, com a transformação da Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia (SPVEA) em Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), a qual efetivou uma nova lógica de valorização da região (CHAVES, 2006).
A propaganda governamental vendia as facilidades de se conseguir emprego na Amazônia. O marketing militar exaltava a instalação de projetos agropecuários e a colonização às margens da Transamazônica, ecoou longinquamente (PEREIRA, 2015: 63).
Com o advento do regime militar em 1964, o sentido dessa abertura da Amazônia toma uma nova dimensão, prioritariamente política- mais precisamente geopolítica, de integração nacional -, onde o desenvolvimento da Amazônia era visto sob o ângulo de diversos objetivos, com a elaboração de muitos planos para a consecução dos mesmos: desde a abertura da rodovia transamazônica, a política de incentivos fiscais aos interessados em “investir” na Amazônia, até mesmo a propaganda escancarada governamental de migração.
Contudo, não eram apenas os interesses geopolíticos, propriamente ditos, que motivaram o plano de integração nacional. Duas experiências, pois, tinham particularmente traumatizado os militares no período anterior, configurando-se para eles como dupla ameaça, externa e interna, à segurança do país (HÉBBETE, 2004: 276).
Conforme a leitura de Jean Hébbete8, no plano externo, o grande isolamento amazônico poderia servir de espaço propício às invasões, levando em consideração o contexto da participação do Brasil na Guerra Fria (uma participação mesmo que ínfima poderia atrair uma possível retaliação). Era necessário, portanto, “povoar” para proteger o território contra as possíveis agressões estrangeiras. “Povoar” significava “proteger”.
Já no plano interno, a ameaça surgia de uma consciência militante crescente no país. Na segunda metade da década de 50 e nos primeiros anos de 60, germinou-se, entre os camponeses, uma transformação qualitativa na percepção de sua realidade, com rápida repercussão sobre seu comportamento político (HÉBBETE, 2004: 276).
Foi nessa época o nascimento das ligas camponesas e os primeiros sindicatos rurais- aquelas com certa influência do partido comunista, estes sob o impulso da hierarquia católica (SINGER apud HÉBBETE, 2004: 276). Data de 1975 o surgimento da Comissão Pastoral da Terra- CPT, uma comissão ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), criada para assessorar e dinamizar as atividades que eles já vinham desenvolvendo no apoio aos posseiros da região amazônica (PEREIRA, 2015: 67).
Somada a essas duas tensões já se avistava que a tão temida ameaça comunista do contexto da Guerra Fria não se limitava apenas aos muros europeus, porém passível de surgir de toda a parte, da Rússia, mas também de Cuba, da Bolívia. A obsessão por ocupação alçava-se mais latente, visto que a estrutura social brasileira, e a fundiária se apresentavam como terreno propício.
O governo prematuro, anterior ao dos militares, de João Goulart, o “Jango”, já demonstrava indícios de uma postura progressista, voltada para as causas sociais. Infortunadamente, a situação econômica do país não era favorável e o governo enfrentou desde o início uma forte oposição no Congresso Nacional.
Houve demora em implantar as reformas de base - e o que se viu nos primeiros dois anos de governo foi o aumento da inflação e do custo de vida -, em parte porque os setores conservadores passaram a controlar o preço dos produtos com o intuito de desestabilizar o projeto de Jango (RIBEIRO, 2007: 14).
O boicote de fato não ocorreu despropositadamente. O golpe militar já vinha sendo ensaiado desde alguns anos, estimulados pela ideologia da Segurança Nacional, elaborada na e em torno da Escola Superior de Guerra (HÉBETTE, 2004: 277). O anúncio da reforma agrária, declarado por Jango, em atendimento à pressão camponesa, foi ensejo para os setores da burguesia brasileira e Forças Armadas se aliarem massivamente ao golpe militar de 1964.
O governo militar decidiu socializar os custos da ocupação capitalista da Amazônia, transferindo para toda a sociedade o preço da não-realização de uma reforma agrária, isto é, a opção por um modelo concentracionista de propriedade, e não por um modelo distributivista (MARTINS, 2009:76), esse último, como já frisado, reivindicado nas pressões sociais anteriores ao golpe de estado.
Segundo Airton Pereira (2015: 75), diversos autores9 sustentam que a concessão de incentivos fiscais a grandes empresários e a implementação de grandes eixos rodoviários como as rodovias transamazônica (BR-230) e a Cuiabá-Santarém (BR-163) fizeram parte dos planos mais importantes do governo militar pós-64 para a exploração econômica e domínio territorial dos chamados “novos espaços” na Amazônia.
Estrategicamente o “vazio demográfico” deveria ser rapidamente ocupado. Se por um lado, o governo incentivou a movimentação de trabalhadores rurais “sem trabalho” para as novas áreas de colonização ao longo das rodovias federais como a Transamazônica, com o discurso de “distensionar” os conflitos sociais no Nordeste e no Sudeste do Brasil, por outro, agiu contraditoriamente concedendo grandes extensões de terras e dinheiro farto a grupos econômicos para a instalação de suas fazendas na Amazônia (PEREIRA, 2015).
Na prática, ocorreu uma “transferência” de problemas sociais de outras regiões, acrescendo-se e miscigenando-se aos problemas locais, criando tipos próprios, genuinamente localizados no território amazônico.
Como desmembramento da política de integração, na década de 70, o governo do General Medici decidiu tornar “transitável” a Amazônia, pretendendo instalar ao longo da Transamazônica 100 mil famílias até 1974 para oferecer “terras sem homens a homens sem terra” (MARTINS, 2009:77).
A distribuição de terras para os trabalhadores foi dificultada, pela burocracia exercida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), todavia a entrega para grandes latifundiários foi facilitada. A evidência obriga a reconhecer que a colonização oficial foi um projeto precipitado, mal planejado e sem adequação com a capacidade de gestão e de acompanhamento dos órgãos governamentais.
Em face desse contexto, a partir de uma digressão história, observa-se que a modalidade de ocupação adotada pelo governo era um tanto quanto contraditória. O agronegócio, principal atividade incentivada pelo governo é caracterizada por ser uma atividade econômica que dispensa mão-de-obra e esvazia territórios (MARTINS, 2009: 74).
De fato, o mais adequado seria um projeto de reforma agrária que distribuísse “terra para homem sem terra”. Sem contar, que em consequência da modalidade de ocupação proposta, tribos indígenas sofreriam, como sofreram, fortes reduções demográficas no contato com o branco e suas enfermidades, além do esfacelamento cultural. Sem contar, também, que milhares de camponeses teriam de ser expulsos de suas terras de trabalho, como de fato o foram, para que nelas fossem abertas grandes pastagens. Muitos deles acabaram migrando para cidades da própria região, para viver da miséria da subocupação e das favelas. (MARTINS, 2009: 75).
Outro ponto de contradição do modelo de ocupação desenvolvimentista adotado pelos militares diz respeito ao próprio slogan “integrar para não entregar”. O medo do governo de não entregar as riquezas ao estrangeiro na prática se confunde, vez que integrar para não entregar revelou-se contraditório, na medida em que na prática, houve uma transferência imensa de capital (via subsídios fiscais) e das riquezas da Amazônia para boa parte do capital estrangeiro.
De fato não se constatou à época uma atitude governamental que se atentasse para o extremo grau de vulnerabilidade a que estavam expostos os trabalhadores, merecedores portanto, da proteção estatal, pelo contrário, houve uma escusa de deveres, de forma a não atender às obrigações gerais de respeito, proteção e garantia dos direitos humanos, fatos que são demonstrados por meio da incitação de migrantes à região para, na prática, “entregá-los” aos grandes latifundiários/siderúrgicas, etc..
Essa digressão permite-nos realizar a correlação, o que no linguajar popular local se diz: o primeiro a se comportar como “gato” foi o Governo, aliciando os trabalhadores para a Amazônia, posteriormente de forma “natural” outros indivíduos se incumbiram dessa tarefa.
Trocando em miúdos, se na década de 70, no início da colonização, o governo brasileiro era o maior propagador do deslocamento desses trabalhadores para a região amazônica, nos anos que se seguiram o Governo deixou de impulsionar, pois a migração já acontecia “espontaneamente” entrando em cena os “gatos10” aliciadores.
Os conflitos por terra se intensificaram, nessa configuração da ocupação da terra na Amazônia, quando os trabalhadores passaram a ser expulsos de suas posses11. Na verdade, as instituições da justiça e da polícia foram severamente debilitadas, quando se tornaram abertamente coniventes com a escravidão de trabalhadores e com a expulsão de camponeses da terra, como ainda é tradição em muitas regiões do país.
Entretanto, a estratégia de ocupação do “vazio demográfico” do norte do Brasil, representada por slogans do tipo “uma terra sem homens para homens sem terras”, não correspondeu ao sonho de uma legião de migrantes pobres que chegavam diariamente à Amazônia de todas as partes do Brasil.
O governo utilizou a floresta como forma de desviar a atenção dos movimentos organizados dos principais focos de tensão fundiária, como no Rio Grande do Sul, Paraná e Pernambuco. E ao invés de realizar a verdadeira reforma agrária, fez uma política de assentamentos, colocando os agricultores em lotes sem qualquer infraestrutura:
A “ocupação” da Amazônia e seu “povoamento” fizeram do espaço amazônico um grande absorvedor de tecnologia. Justificaram a implantação de todo um sistema complexo de transporte e comunicação, a criação de uma estrutura administrativa e burocrática que engendrou uma classe média consumidora e conservadora; proporcionaram mão-de-obra barata para as grandes obras e os projetos faraônicos, como o chamado Projeto Carajás. A colonização, nas suas diversas formas, entrou como uma peça fundamental desta estratégia. Ela subsistiu a proposta de reforma agrária com a qual o Governo brasileiro tinha-se comprometido na Conferência de Puntadel Este. Para isso, foram fundidos, num só- o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), os órgãos distintos encarregados daquela e desta, isto é, o Instituto Nacional de Imigração e Colonização (INIC) e o Instituto de Reforma Agrária (IBRA). (HÉBETTE, 2004:277).
Paralelo a isso, o governo federal concedeu às grandes empresas nacionais e multinacionais12, incentivos fiscais, isto é, a possibilidade de um desconto de 50% do imposto de renda devido pelos seus empreendimentos situados nas áreas mais desenvolvidas do país.
A condição era a de que esse dinheiro fosse depositado no Banco da Amazônia, um banco federal, e, após aprovação de um projeto de investimentos pelas autoridades governamentais, fosse constituir 75% do capital de uma nova empresa, agropecuária ou industrial, na região amazônica. Tratava-se de uma doação, e não de um empréstimo13 (MARTINS, 2009).
Seu principal instrumento eram os incentivos fiscais, reorientados legalmente em 1967, principalmente para a pecuária, a extração madeireira, a mineração, atividades que, requerem grandes quantidades de terra, destinam-se à exploração de produtos primários ou semi-elaborados e geram poucos empregos. Eram concedidos (via Sudam e Basa) aos empresários por longos períodos (dez a quinze anos). Por meio dos incentivos fiscais, as grandes empresas beneficiadas poderiam destinar uma parte ou até a totalidade do imposto de renda que deveriam pagar ao governo, para criar com aqueles recursos novas empresas na região. Além disso, o governo ainda disponibilizava recursos financeiros a juros muito baixos e até negativos e concedia um sem-número de outras facilidades. Dessa forma, o Governo Federal abriu mão do dinheiro com o qual poderia modernizar as atividades tradicionais dos pequenos e médios produtores da região ou para investimentos sociais, como escolas, hospitais etc.; preferiu transferir esses recursos para grandes empresas. (LOUREIRO, 2005: 78)
Durante as décadas de 1960 e 1970, os principais obstáculos ao desenvolvimento dos países periféricos e de regiões “atrasadas economicamente” como a Amazônia, conforme aponta Loureiro (2015), eram atribuídos a dois problemas básicos: à insuficiência de capitais produtivos e de infraestruturas capazes de pôr em marcha novos investimentos (LOUREIRO, 2005:77).
Na época, essas e outras teorias justificaram a concessão de vultuosos recursos financeiros, e utilização da máquina pública para a viabilidade estrutural dos projetos14, no entendimento de que seria possível atrair capitais produtivos, organizados sob a forma de conglomerados econômicos, vindos de outros pontos do Brasil e do exterior, desde que fossem oferecidas vantagens capazes de atrair esses capitais para a região.
Assim, o novo modelo de desenvolvimento para a Amazônia – posto em prática pelos governos militares pós-1964 para desenvolver e integrar a região ao mercado nacional e internacional – inspirava-se nessas concepções teóricas, feitas as adaptações que os militares e a tecno-burocracia julgaram conveniente fazer para aquele momento da ditadura. Tudo, logicamente, para justificar os vultuosos recursos entregues aos grupos econômicos.
Os grandes conglomerados econômicos nacionais e estrangeiros que se instalaram não precisavam fazer nenhum esforço para impor o domínio das terras. O próprio governo se encarregou de acomodá-los confortavelmente. Somada a grave exploração humana, estava também a grande destruição da floresta.
Grupos como Volkswagen, Bamerindus e Bradesco devastaram grandes extensões de terras cobertas por ricas florestas e transformaram em áreas pastoril para a criação de gado, desprezando a enorme disponibilidade de pastos e campos naturais; enfim, trouxeram grandes prejuízos ecológicos, desperdiçaram ou desviaram os recursos públicos colocados à sua disposição, criaram poucos empregos e não trouxeram o prometido desenvolvimento para a região.
Eis o modelo a que foi moldada as relações sociais e ambientais, modelo que permanece até os dias de hoje sem grandes modificações, com interferências do ponto de vista ambiental, econômico ou social.
As atrocidades não se limitaram apenas no âmbito econômico e administrativo. A ameaça comunista, o grande terror dos militares, “justificou” também as duras repressões, torturas e assassinatos dispensados contra os guerrilheiros e quem mais fosse considerado condescende com as ideias comunistas.
A guerrilha do Araguaia, o maior foco de resistência à ditadura do Brasil se localizou em algumas regiões do Pará, Tocantins e Mato Grosso, representou também um plus, somando-se ao contexto de complexidade conflituosa já latente no espaço amazônico, acrescentando ainda mais ingredientes de violência ao cadeirão de conflitos da Amazônia.
As denúncias dos conflitos e das violências praticadas pelas empresas agropecuárias foram, a partir daí formuladas pela CPT e encaminhadas à imprensa e aos diversos órgãos do Estado. Os trabalhos pastorais realizados nas comunidades de posseiros fortaleceram a resistência desses trabalhadores em suas posses.
Em algumas regiões, como em São Félix do Araguaia (Mato Grosso) e em Conceição do Araguaia (Pará), sacerdotes e agentes de pastoral recolheram e anotaram depoimentos desses foragidos, de modo a viabilizar denúncias e a pedir a intervenção de autoridades, nessa época não havia interesse do estado em reconhecer as graves violações que ocorriam em solo amazônico15. Destaca-se a grande atuação de Dom Pedro Casaldáliga16,, expoente defensor dos direitos humanos na Amazônia, foi uma das primeiras vozes a denunciar a existência de formas desumanas de exploração de milhares de brasileiros olvidados na região norte.
É dele também o legado como um dos percussores da discussão acerca do conceito de trabalho escravo contemporâneo. Relatos chocantes de maus tratos a trabalhadores, espancamentos, mortes e as mais perversas atrocidades cometidas aquelas pessoas que eram aliciadas e seduzidas para desbravar a qualquer custo a região, eram descritas desde então (AUDI, 2006:75).
Em lugar de se constituir numa abertura do território com bases nos valores da democracia e da liberdade, a expansão da frente pioneira deu-se apoiada num quadro hermético de ditadura, repressão e falta de liberdade política, um retrato cruel e intenso do que foi os anos de chumbo no Brasil e especificamente no território amazônico.
Sobretudo num contexto de anticomunismo em que, justamente as classes trabalhadoras, na cidade e no campo, se tornavam suspeitas de subversão da ordem política sempre que tentavam esboçar qualquer reação às más condições de vida que o regime lhe impusera.