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Armas: liminar da insegurança jurídica

17/08/2021 às 18:35

No julgamento da ADI 6.675, impugnando decretos sobre armas, a Ministra Rosa Weber (STF) deferiu uma liminar legalmente inexistente e instaurou forte insegurança jurídica sobre armas no país.

O advogado paranaense César Mello cunhou a máxima de que, no Brasil, “quando o assunto é armas, o Direito pula pela janela”. Embora tenha surgido em tom anedótico, como expressão da habitual dificuldade de compreensão técnica dos temas ligados ao controle de armas de fogo, a frase tem assumido cada vez mais uma expressão absoluta da realidade dos julgamentos sobre essas questões nos Tribunais brasileiros, inclusive – e destacadamente - no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

Não é, de fato, uma questão nova. Todo aquele que acompanha decisões judiciais a respeito de armas sabe bem a dificuldade que se enfrenta para evitar que o preconceito criado sobre elas seja transportado para pronunciamentos judiciais, notadamente aquele mantra que se repete à exaustão em ONGs desarmamentistas e na mídia comercial, de que armas são instrumentos exclusivos da morte. O que não se esperaria, porém, é que essa contaminação alcançasse a mais alta Corte do país, com missão de salvaguarda da Constituição Federal, a ponto de até atropelar os regramentos processuais próprios das ações que ali tramitam. Mas, infelizmente, isso já aconteceu, estampando-se pelo ocorrido na apreciação inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 6.675.

Trata-se de demanda proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) para impugnar dispositivos contidos em quatro decretos publicados pelo Poder Executivo acerca de armas de fogo, quais sejam, os de números 10.627, 10.628, 10.629 e 10.630, todos de 12 de fevereiro de 2021 e que entraram em vigor, ao menos em parte, no dia 13 de abril passado. São, em essência, normas que alteram dispositivos regulamentares da Lei nº 10.826/03 já vigentes (Decretos 9.845, 9.846, 9.847 e 10.030), passando longe da instituição de regramentos autônomos e que, já por essa razão, sequer poderiam estar sendo alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade – afinal, nos termos da jurisprudência consolidada pelo próprio STF, decretos meramente regulamentares não satisfazem o requisito de violação direta à Constituição Federal.¹

Além disso – ou talvez por isso -, a referida ADI se ancora em uma flagrantemente lacônica fundamentação, se esquivando de apontar objetivamente dispositivos constitucionais que pudessem, ao menos teoricamente, ter sido malferidos, e optando por se socorrer a uma violação ao “espírito do estatuto do desarmamento” (a Lei de Controle de Armas, nº 10.826/03).

Fosse sobre qualquer outro tema, seria o tipo de ação em que a petição inicial restaria sumariamente indeferida, na forma do art. 4º da Lei nº 9.868/99. Mas, como se trata de armas, o Direito resolveu dar uma escapada, “pulando a janela”, e a ação, não só foi recebida, como mereceu o indecifrável deferimento de uma liminar, no mínimo, sui generis.

Dentre as ações de impugnação constitucional que tramitam originalmente no âmbito da Suprema Corte, predominam duas espécies primordiais: a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI ou ADIn) e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Ambas são expressamente previstas na Carta Magna e derivam do malferimento a disposições dela própria, mas contendo diferenças próprias em sua tramitação, justamente em derivação de seu objeto.

A ADI é regulada pela Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, e tem por objeto retirar a vigência de atos normativos federais ou estaduais que confrontem diretamente o texto magno ou impor que esses atos, quando inexistentes, sejam publicados para o cumprimento daquele – na hipótese de ADI por omissão. Ou seja, essas ações se direcionam, necessariamente, a atos comissivos editados por um Poder formalmente instituído, que gozam de presunção de validade e legitimidade, ou à omissão deste em legislar.

Já a ADPF tem regulamento próprio na Lei nº 9.882, de 03 de dezembro de 1999, e encampa uma abstração maior em seu objeto, pois não necessariamente se volta a uma norma formal, podendo englobar até mesmo meros atos de gestão do Poder Público que não se revelem compatíveis com os preceitos fundamentais da Constituição Federal.

Em ambas as ações, a legislação procedimental prevê a possibilidade do deferimento de liminar acautelatória. Porém, como são distintos seus objetos potenciais, os ritos dos provimentos cautelares são igual e substancialmente diferentes.

Nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade comissivas, justamente por se direcionarem a atos normativos com presunção de legitimidade e validade, a Lei estabelece requisitos rígidos para a suspensão liminar acautelatória de uma norma de cunho legal. De acordo com o art. 10 da Lei nº 9.868/99, essa possibilidade se restringe a uma decisão colegiada, por deliberação da maioria absoluta dos membros do Tribunal e, ainda assim, com o quórum mínimo de 08 (oito) Ministros para instalação da sessão. Se concedida a medida, seus efeitos surgem a partir da publicação, em seção especial do Diário Oficial da União e do Diário da Justiça, da parte dispositiva da decisão.

Nesse aspecto, a exegese dos arts. 10, 11 e 22 da predita Lei é inequívoca:

“Art. 10. Salvo no período de recesso, a medida cautelar na ação direta será concedida por decisão da maioria absoluta dos membros do Tribunal, observado o disposto no art. 22, após a audiência dos órgãos ou autoridades dos quais emanou a lei ou ato normativo impugnado, que deverão pronunciar-se no prazo de cinco dias.

§ 1º O relator, julgando indispensável, ouvirá o Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da República, no prazo de três dias.

§ 2º No julgamento do pedido de medida cautelar, será facultada sustentação oral aos representantes judiciais do requerente e das autoridades ou órgãos responsáveis pela expedição do ato, na forma estabelecida no Regimento do Tribunal.

§ 3º Em caso de excepcional urgência, o Tribunal poderá deferir a medida cautelar sem a audiência dos órgãos ou das autoridades das quais emanou a lei ou o ato normativo impugnado.

Art. 11. Concedida a medida cautelar, o Supremo Tribunal Federal fará publicar em seção especial do Diário Oficial da União e do Diário da Justiça da União a parte dispositiva da decisão, no prazo de dez dias, devendo solicitar as informações à autoridade da qual tiver emanado o ato, observando-se, no que couber, o procedimento estabelecido na Seção I deste Capítulo.

§ 1º A medida cautelar, dotada de eficácia contra todos, será concedida com efeito ex nunc, salvo se o Tribunal entender que deva conceder-lhe eficácia retroativa.

§ 2º A concessão da medida cautelar torna aplicável a legislação anterior acaso existente, salvo expressa manifestação em sentido contrário.

[...]

 Art. 22. A decisão sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo somente será tomada se presentes na sessão pelo menos oito Ministros”.

Note-se que, nos exatos da norma legal, a exigência de decisão colegiada, por maioria absoluta e quórum qualificado, não é mitigada sequer por excepcional urgência, tendo em foco que, nesses casos, o máximo que se dispensa é a coleta de informações junto às autoridades envolvidas na edição do ato – art. 10, § 3º.

Já na ADPF, tendo em voga que seu objeto não se confunde com atos normativos de cunho legal editados por outro Poder, a possibilidade de concessão da medida liminar é mais flexível, sendo possível ao próprio relator, em casos urgentes, a deferir monocraticamente, submetendo sua decisão ao referendo do Colegiado Plenário.

Tal é o que se infere do disposto no art. 5º da Lei nº 9.882/99:

“Art. 5º O Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida liminar na arguição de descumprimento de preceito fundamental.

§ 1º Em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, ou ainda, em período de recesso, poderá o relator conceder a liminar, ad referendum do Tribunal Pleno.

§ 2º O relator poderá ouvir os órgãos ou autoridades responsáveis pelo ato questionado, bem como o Advogado-Geral da União ou o Procurador-Geral da República, no prazo comum de cinco dias.

§ 3º A liminar poderá consistir na determinação de que juízes e tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da arguição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se decorrentes da coisa julgada.”

Cotejando-se as duas normas procedimentais, têm-se claramente que, quanto à liminar, ressalvando-se a hipótese de recesso forense, a regra para o seu deferimento é a decisão colegiada, por deliberação da maioria absoluta dos Ministros e, quanto à ADI, somente em sessão em que presentes, ao menos, 08 (oito) deles. Já em casos de excepcional urgência, as possibilidades se distinguem. Na ADPF, o relator pode deferir monocraticamente a medida e a submeter a referendo do plenário; na ADI, se pode, apenas, dispensar a coleta das informações junto às autoridades envolvidas na edição do ato. 

Em nenhuma hipótese a lei prevê, para a Ação Direta de Inconstitucionalidade, que o Relator defira, monocraticamente, a medida liminar acautelatória, para posterior referendo do Colegiado. 

Gize-se que não se trata de qualquer filigrana jurídica a respeito de ritos para cautelares, mas de previsão substancial de seus efeitos. Se há a possibilidade legal de deferimento monocrático da medida, ad referendum do plenário, seus efeitos já começam a ser produzidos imediatamente e se estendem até o pronunciamento colegiado, podendo ser por este cassado ou ratificado, conforme se deliberar. Mas, se a liminar é reservada ao próprio colegiado, os efeitos são exatamente opostos, tendo em vista que, enquanto essa decisão não for proferida, não se pode cogitar efeito algum acerca da postulação suspensiva. 

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No entanto, exatamente essa regra, basilar para as ações de impugnação constitucional, foi inobservada pela Ministra Rosa Weber na apreciação da ADI 6.675, aqui previamente identificada. Ao receber a postulação inicial, em que formulada pretensão cautelar, a Ministra Relatora, após oitiva da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral da República, simplesmente deferiu monocraticamente a postulação cautelar, para, em aparente confusão de ritos processuais, suspender parcialmente dispositivos das normas impugnadas. Ou seja, proferiu uma decisão que extrapolava o seu rol de competências funcionais em ADI, sob uma forma que, para esta modalidade processual, não é contemplada na legislação – ad referendum.

Na sequência, deixando o cenário ainda mais nebuloso, a decisão culminou por não ser apreciada pelo Colegiado, tendo em vista que, tão logo incluída no Plenário Virtual e após apenas um voto (do Ministro Edson Fachin), a ação foi alvo de pedido de vista pelo Ministro Alexandre de Moraes, que segue analisando o caso.

Com isso, a questão se tornou envolta em uma enorme insegurança jurídica, posto que não é possível saber se as normas regulamentares publicadas pelo Executivo estão ou não em vigor. Formalmente, existe uma liminar deferida por uma Ministra do Supremo Tribunal Federal, de forma monocrática, suspendendo alguns dispositivos dos decretos impugnados. Contudo, essa decisão carece de qualquer previsão legal, subverte o rito e os efeitos das cautelares em ações diretas de inconstitucionalidade e o Colegiado daquela Suprema Corte não a apreciou, muito menos ratificando por sua maioria absoluta de membros.

A discussão não se resume, é fundamental frisar, a simplesmente se questionar o teor da decisão, por mais ideológico que seja (e não jurídico), ou mesmo a competência para se a proferir. A questão é mais profunda, pois envolve a necessidade de se estabelecer, enquanto não apreciada pelo Plenário da Corte, os efeitos de uma decisão que não tem nenhuma base procedimental em lei e que versa sobre aspecto de impacto social amplo, reflexivo em toda sistematização regulatória para as armas de fogo no país.

Justamente no propósito de se alcançar a imprescindível solução para o caso, e considerando que as normas impugnadas possuem reflexos de natureza penal (campo em que as interpretações se conduzem em benefício do agente), notadamente na possível caracterização dos crimes previstos nos arts. 12 a 18 da Lei nº 10.826/03, bem assim que, ao proferir uma decisão não prevista na legislação processual se culmina por malferir diretamente o próprio princípio constitucional da legalidade, não se afigura desarrazoado considerar que, enquanto o Plenário da Suprema Corte não referendar, pela maioria absoluta de seus membros, o quanto proposto pela Excelentíssima Relatoria, nos exatos termos do que exige a lei, não há, em ultima ratio, como se reputar existente qualquer decisão suspendendo dispositivos dos Decretos nº 10.627, 10.628, 10.629 e 10.630, de 12 de fevereiro de 2021.

Consequentemente, diante do sui generis cenário factual implementado, torna-se forçoso reconhecer que, por ausência de decisão suspensiva válida, os aludidos decretos continuam em pelo vigor, em sua integralidade.


¹ Vide: ADI 561/DF; ADI 1670/DF

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Sobre o autor
Fabricio Rebelo

Pesquisador nas áreas Jurídica e de Segurança Pública, Coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (CEPEDES), Professor (cursos livres), Autor de "Articulando em Segurança: contrapontos ao desarmamento civil", Assessor Jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REBELO, Fabricio. Armas: liminar da insegurança jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6621, 17 ago. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/92175. Acesso em: 5 dez. 2024.

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