I Introdução
O mundo nos últimos anos vem sofrendo transformações antes inimagináveis.
As fronteiras (ainda) existentes entre as diversas nações mundiais, hoje são meramente físicas. Isto porque, a pós-modernidade, o comércio mundial, o direito comunitário, a era da cibernética e a inclusão digital da população, acabou aproximando os povos, entrelaçando as culturas e diminuindo (mas também potencializando) as diferenças, e o Direito (no seu sentido amplo), como instrumento vivo de normatização e disciplinamento da vida em sociedade, teve igualmente de acompanhar essas tendências e perspectivas.
Se esse cenário, sob alguns enfoques, foi extremamente positivo, em outros, potencializou diversos problemas, semeando o terreno para o surgimento de uma criminalidade transnacional e transfronteiriça, com especial destaque para o narcotráfico, o terrorismo, a corrupção e, claro, a lavagem de dinheiro.
Foi necessário que a comunidade internacional tomasse a frente e elaborasse, doutro modo não haveria de ser, documentos internacionais materializando essa preocupação, e indicando caminhos a serem (per)seguidos pelos Estados.
De início, as previsões foram tímidas, a exemplo do contido na Convenção de Viena Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de 1988. Mas com o passar do tempo, acabaram sendo aprimoradas, ampliando-se, com o surgimento, verbi gratia, das Convenções de Palermo (sobre o crime organizado transnacional) e de Mérida (visando o combate à corrupção). No presente trabalho, comentaremos brevemente sobre as três.
Só que, paralelamente à preocupação erigida pela sociedade internacional, densificada nas aludidas convenções, um grupo mais "seleto" de países, em verdade, as sete economias mais industrializadas do mundo, conhecidas pela sigla "G-7", reunidas na Cúpula de Paris, no ano de 1989, decidiram pela criação do Financial Action Task Force (FATF), ou Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), que surgia para definir políticas e promover a efetiva implementação de medidas legais, regulatórias e operacionais de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, além de outras missões, para o que instituiu, já na década de 90, Quarenta Recomendações que, naqueles idos, visavam combater o uso indevido dos sistemas financeiros por pessoas que objetivavam lavar o dinheiro oriundo do tráfico de drogas, mas que, nos anos que se seguiram, foram sofrendo revisões, ampliando o escopo para abranger outras ameaças.
Tamanha a relevâncias das supraditas Recomendações, se faz necessário analisar, à luz da ordem jurídica brasileira, se houve a devida e formal internalização, ou não, bem como, se é possível sustentar a natureza cogente (hard law) ou de direito não-vinculante (soft law) delas, conforme as contemporâneas aspirações do Direito Internacional.
Ao final, concluiremos se os Delegados de Polícia, quer pertençam à Polícia Federal ou às polícias civis, autoridades policiais por excelência e tradicionais presidentes das investigações criminais instauradas em território nacional, podem (ou devem) aplicar (mesmo diretamente) tais padrões internacionais de combate à lavagem de dinheiro.
II Marcos internacionais de combate à lavagem de dinheiro: as Convenções de Viena, Palermo e Mérida
Inicialmente, convém pontuar algumas questões preliminares que, dizem respeito, em verdade, à evolução do próprio Direito Internacional no que concerne à tratativa do tema objeto da presente explanação.
A gênese do combate internacional à Lavagem de Dinheiro, surge com a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de 1988, também conhecida como Convenção de Viena, que no "artigo 3º, § 1º, letra b", previu um legítimo mandado internacional de criminalização, determinando que os países criminalizassem, dentre outras condutas, a ocultação ou o encobrimento de bens, oriundos da produção ou tráfico de substâncias entorpecentes. Mais do que isso até, nota-se que a aludida Convenção trouxe a ideia de perseguir o proveito do crime em geral, como uma forma de desestimular a criminalidade, semeando o terreno para toda a normatização que, a partir daí, se sucedeu.
Seguidamente, tivemos a Convenção de Palermo (relativa ao Crime Organizado Transnacional), do ano de 2000. Fora outros aspectos importantes nela tratados, destacamos a responsabilização das pessoas jurídicas (art. 10), a cooperação internacional para efeitos de confisco (art. 13), a conceituação de "grupo criminoso organizado" (art. 2º, letra "a") e a existência de alguns outros mandados internacionais de criminalização, dentre os quais, a criminalização da lavagem do produto do crime, prevista no artigo 6º.
Também relevante, em 2003 veio à tona a Convenção de Mérida, com enfoque no combate à corrupção, corroborando, no artigo 14, a necessidade de implementação de medidas tendentes a prevenir a Lavagem de Dinheiro.
O Estado Brasileiro, por seu turno, promulgou as três. A "de Viena", em 1991; a "de Palermo", em 2004; e a "de Mérida", em 2006.
Obviamente que há outros documentos internacionais importantes, mas entendemos ser necessário, neste intróito, e mesmo no desenvolvimento do trabalho, citar apenas os três.
III O surgimento do GAFI e as Quarenta Recomendações: a não internalização formal à ordem jurídica brasileira e as discussões sobre o seu caráter cogente (hard law) ou não-vinculante (soft law)
Paralelamente ao surgimento da Convenção de Viena, no ano de 1989, os sete países mais industrializados do mundo à época, conhecidos pela sigla G-7, criaram, na Cúpula de Paris, o Financial Action Task Force (FATF), ou Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), organização intergovernamental (verdadeira força-tarefa) cujo desiderato era desenvolver políticas de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo.
Registre-se que, malgrado o G-7 ainda se reunir, em algumas ocasiões a Rússia é convidada, formando, então, o G-8.
Com efeito, na década de 90 o GAFI deliberou pela elaboração de 40 (quarenta) Recomendações, que, vale a ressalva, ao longo do tempo foram revisadas, suportando inclusive ligeira revisão recente, agora no final do ano de 2020, precisamente nas "Diretrizes" de nºs. 1 e 2.
Tais Recomendações, em verdade, a nosso sentir estabelecem um padrão mínimo internacional que as Nações mundiais devem perseguir, sendo de rigor perquirir, por oportuno, se elas, enquanto Recomendações, possuem, para as aludidas Nações, natureza cogente.
É óbvio que, em primeiro lugar, o Brasil, consequentemente as forças policiais brasileiras, não pode(m) se abster de atuar firmemente no combate à Lavagem de Dinheiro, inteligência do que dispõe as Convenções de Viena, Palermo e Mérida, anteriormente mencionadas - e formalmente incorporadas à nossa ordem jurídica, bem assim a própria Lei de Lavagem nacional, promulgada sob n. 9.613/98.
Por outro lado, com o passar do tempo, no cenário internacional, desenvolveram-se as chamadas normas de soft law, em contraposição às normas de hard law (direito vinculante).
Face à complexidade das relações internacionais, fruto notadamente da dificuldade em se flexibilizar a insana ideologia que (ainda) considera a soberania estatal absoluta - ideário criticado por FERRAJOLI -[1], nem sempre a "imposição" de um tratado internacional se mostra (ou se mostrou) como a posição mais acertada, partindo então da Sociedade Internacional normas com caráter não vinculante, um quase-direto, então denominadas de soft law, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).
Surgida originariamente como Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, apesar das ainda existentes discussões acerca da sua natureza jurídica (costume internacional; norma de jus cogens; interpretação autêntica da Carta de São Francisco), não se questiona que a DUDH mantém, ao menos no campo formal, a natureza de mera recomendação (portanto, norma de soft law).
Nesse cenário, o que dizer das Recomendações do GAFI: hard law ou soft law?
Frise-se, agora de maneira mais percuciente, que o GAFI não é uma organização internacional em sentido formal, tendo caráter intergovernamental apenas, e simplesmente. Falta-lhe, para aquela caracterização, um tratado internacional constitutivo.
Em 1999, considerando a promulgação - no ano anterior - da Lei Nacional de Lavagem (Lei n. 9.613), o governo brasileiro, por meio do Ministério da Fazenda (à época, ocupado pelo Ministro Pedro Malam), formalizou seu interesse em integrar o GAFI, o que foi aceito no ano seguinte.
Releva notar, nesse contexto, que, segundo nossas pesquisas, não houve, em sentido formal, provocação ao Congresso Nacional acerca da permissibilidade da vinculação a tal organização.
É imperioso lembrar que o artigo 49, inciso I, da Constituição Federal, exige manifestação definitiva do Parlamento em relação aos atos internacionais que impliquem em encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional. Acompanhem:
Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
I - resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional;
Via de consequência, ou houve a manifestação congressual e não foi devidamente divulgada; ou partiu-se da premissa de que a promulgação da Lei de Lavagem representava uma aprovação por vias tortas das Recomendações sob escrutínio; ou então, entendeu-se que o GAFI não era organização internacional, e, portanto, a análise daquelas 40 (quarenta) Diretrizes era matéria restrita ao Poder Executivo, sem se subsumir ao disposto no artigo 49, inciso I.
De todo modo, inegável que, nesta época, as Recomendações do GAFI eram consideradas, ao menos no cenário nacional, verdadeiras normas de soft law. Seja porque não recaía sobre ele (GAFI) a formal natureza de organização internacional, seja porque não havia pronunciamento congressual a respeito.
Alberico Mendonça, em artigo publicado na Revista do Mestrado em Direito da Universidade Católica de Brasília, cita palestra proferida pela professora Maíra Rocha Machado, na qual ela pontua que as regras do GAFI não possuem, em princípio, obrigatoriedade, justamente por se enquadrarem na noção de soft law. Senão vejamos:
Em palestra proferida na Escola de Direito de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas, no dia 14 de novembro de 2003, a professora Maíra Rocha Machado, ao abordar a questão de Internacionalização do Direito Penal em dois parâmetros de análise: a produção do Direito e a atividade jurisdicional apresentaram as principais modificações ocorridas nos últimos dez anos. A lavagem de dinheiro foi uma das ilustrações utilizadas pela palestrante ao analisar as aludidas mudanças. A professora Maíra ressaltou que em razão de não existir um tratado internacional de lavagem de dinheiro, as regras propostas pelo GAFI, não têm, em princípio, caráter obrigatório. Pontuou que a principal novidade que esse órgão traz para o Direito Internacional é a soft law hardily binding que desemboca em duas vertentes: a primeira diz respeito à soft law que é um instrumento internacional de caráter não vinculante, combinado com uma a segunda vertente, a hardily binding, consubstanciandose em mecanismos que têm o objetivo de responsabilizar e sancionar os países não-cooperantes.[2]
Como se vê, portanto, para alguns doutrinadores, as Diretrizes do GAFI ainda integrariam o campo do direito não vinculante. Respeitamos, é verdade, porém, discordamos.
O Parlamento brasileiro em 1998 cumpriu com os mandados de criminalização então estabelecidos pelas convenções internacionais anteriormente mencionadas (Viena, Palermo e Mérida). Em 2012, a legislação foi modificada e passamos a adotar a 3ª geração das leis de lavagem.
Não bastasse, em 2005, o Conselho de Segurança da ONU, por meio da Resolução n. 1617, solicitou que todos os membros da ONU aplicassem as Recomendações do GAFI, o que, a nosso sentir, legitima o precitado organismo a estabelecer padrões mínimos internacionais (verdadeiros standards) de combate à lavagem.
Em outras palavras, é como se a ONU, que em si mesma materializa o ideal de sociedade internacional organizada - e da qual o Brasil, logicamente, é integrante -, endossasse a própria atuação do GAFI, a ponto, inclusive, de se elevar suas Recomendações ao (incipiente) status de lei internacional.
De mais a mais, convém destacar que em 2008, o Conselho de Segurança das Nações editou a Resolução n. 1803, que corroborou o trabalho do GAFI no tocante ao combate ao financiamento da proliferação de armas de destruição em massa, chamando a atenção o fato de que, naquele ano, todos os membros permanentes do Conselho de Segurança - as potências vitoriosas da 2ª Guerra (EUA, Rússia, China, França e Reino Unido) já eram igualmente membros do próprio GAFI.
Daí se concluir, como o fazem alguns doutrinadores, que essa reviravolta ocorrida em 2005 (via da Resolução n. 1617), juntamente com a mencionada acima (Resolução n. 1803), atingiu em cheio as Recomendações do GAFI, sendo possível a partir de então argumentar que, ao menos no plano fático, elas haviam deixado o âmbito das normas de soft law, passando a se tornar legítimas normas de hard law. A este propósito, confiramos o escólio de Luiz Maria Pio CORRÊA:
A questão da busca de base de legitimidade para Recomendações do GAFI foi superada com a adoção da Resolução 1617 do Conselho de Segurança da ONU, de 2005, que incluiu as Recomendações do GAFI no arcabouço jurídico formalmente reconhecido pela comunidade internacional, apesar de serem normas de “soft law”, oriundas de organismo sem personalidade jurídica de Direito Internacional. A Convenção Interamericana contra o Terrorismo de 2002 determinou, por sua vez, a utilização das Recomendações como diretrizes.[3]
E arrematando, não podemos olvidar do que dispõe o artigo 25 da Carta das Nações Unidas, que impele os Estados-Membros a concordarem em aceitar e executar as decisões do Conselho de Segurança, lembrando, ainda, que o artigo 103, do mesmo Tratado, posiciona as obrigações assumidas em virtude das disposições da reportada Carta, acima das próprias fontes do Direito Internacional.[4]
Além disso, por mais que não estejamos falando de tratados em sentido estrito, não custa lembrar que a Convenção de Viena sobre o Direitos dos Tratados, de 1969, consagra a boa-fé e o pacta sunt servanda como princípios universalmente reconhecidos[5], não havendo óbice, em nosso modo de pensar, em adequar tal raciocínio às Recomendação do GAFI (no sentido de que ordenanças internacionais em vigor obrigam as partes e por elas devem ser cumpridas de boa fé, vedando-se a invocação do seu direito interno para justificar o inadimplemento - artigos 26 e 27[6]), quem sabe até mesmo considerando-as - porque não -, normas de jus cogens em construção (artigos 53 e 64 da Convenção de Viena), por inegavelmente representarem valores de alta conta para a Sociedade Internacional como um todo. É nesse contexto que Luiz Maria Pio CORRÊA afirma:
À luz dessa interpretação, a aspiração de aplicação universal das Recomendações seria não somente justificável, senão plenamente legítima. As referências, no caso da lavagem de dinheiro, às Convenções de Viena e de Palermo seriam uma forma de as Recomendações associarem-se à causa comum de enfrentamento da ameaça às sociedades representada pelo crime organizado transnacional. Do mesmo modo, as referências à Convenção da ONU para a Supressão do Financiamento do Terrorismo e às Resoluções do Conselho de Segurança significariam a tentativa de vincular as Recomendações Especiais ao dever, expresso nesses textos, de a comunidade internacional combater o terrorismo e seu financiamento. Em suma, o GAFI procuraria associar-se a uma causa com pretensão “civilizacional”, que estaria situada num plano moral superior, elemento comum a embasar tanto as formas de “hard” quanto de “soft law”.
A despeito disso, é de clareza meridiana a aceitabilidade da Comunidade Internacional, aí se incluindo as grandes potências, quanto aos standards mínimos estabelecidos pelo GAFI em relação ao combate à Lavagem de Dinheiro, a ponto de concluirmos que suas Recomendações tornaram-se, realmente, normas de hard law, em vista de se subsumirem, pelo menos, ao conceito de costume internacional (prática geral aceita como Direito), densificado no artigo 38, letra "b", do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, pontuando que, como diferente não poderia ser, tal fonte do Direito Internacional é vinculante.
IV Considerações finais
Face a todo o exposto, é de rigor considerarmos que as Quarenta Recomendações GAFI foram alçadas ao patamar de normas de hard law.
Nesse contexto, salienta-se que há, no âmbito da Câmara dos Deputados, Comissão de Juristas formada para a elaboração do anteprojeto de reforma da legislação sobre Lavagem de Dinheiro, proposta que, em vista das considerações ora expendidas, de forma alguma poderá contrariar as Recomendações do GAFI, devendo agregar, isso sim, as experiências exitosas de outras Nações mundo afora no combate à Lavagem de Dinheiro.
Inclusive, defendemos a prerrogativa do Delegado de Polícia, autoridade policial por excelência, em se valer das tais Diretrizes do GAFI de maneira direta, nas investigações que presida e conduza, com destaque para as Recomendações de n.s 30 e 31[7], acaso nossa legislação não seja, em cotejo com elas, clara o suficiente ou se omita a respeito de algum ponto. Se é lícita a realização do controle de convencionalidade pelas autoridades públicas, no marco das suas competências, para adequação do nosso ordenamento aos tratados internacionais de direitos humanos e à jurisprudência da Corte Interamericana (conforme restou decidido no Caso Atala Riffo e Crianças vs. Chile), o que dirá aplicar, em prol nitidamente do interesse coletivo - e da investigação eficiente -, standards internacionais de combate à lavagem reconhecidos por potências desenvolvidas e pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. O comportamento, decerto, contribuirá para o aperfeiçoamento das investigações criminais que veicularem o presente tema e, também, para o consequente sufocamento das organizações criminosas e seus integrantes, que cada vez mais vêm atuando para além das fronteiras do nosso território.