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Invasão de dispositivo informático, furto eletrônico, estelionato eletrônico e competência – Lei 14.155/21

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09/08/2021 às 15:00
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4 – A QUALIFICADORA DA “FRAUDE ELETRÔNICA” OU DO “ESTELIONATO ELETRÔNICO OU INFORMÁTICO”

A Lei 14.155/21 também atentou para a questão do estelionato cometido por meios eletrônicos e/ou informáticos que, tal qual o furto, vem sendo motivo de preocupação a partir de quando as diversas atividades humanas, desde o lazer até as operações financeiras, foram permeadas pela informática e a eletrônica.

Criou-se então uma nova figura qualificada de Estelionato com o “nomen juris” de “Fraude Eletrônica”, conforme dispõe o artigo 171, § 2º. – A, CP.

A pena prevista para essa figura é de “reclusão, de 4 a 8 anos, e multa”, sempre que a fraude for cometida utilizando-se o autor de informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzidos a erro por intermédio de redes sociais, contatos telefônicos ou correio eletrônico fraudulento. O § 2º. – A ainda encerra o dispositivo com o emprego de uma fórmula genérica a permitir a interpretação analógica e progressiva, fazendo menção a “qualquer outro meio fraudulento análogo”.

Com perspicácia, Gilaberte e Montez apontam um erro material de natureza gramatical (concordância), na redação do tipo penal em estudo:

A concordância nominal usada no dispositivo também não é a mais adequada. O texto legal aborda o fornecimento de informações “pela vítima ou terceiro induzido a erro”, passando a impressão de que não é necessário que a vítima aja em falsa representação da realidade determinada pelo autor. Quando o sujeito é composto e constituído por gêneros diferentes, o ideal é que o predicativo concorde no masculino plural, a fim de que não pairem dúvidas. Assim, a construção da frase deveria se referir à vítima e a terceiro “induzidos a erro”, que é efetivamente o que o legislador quis dizer. [19]

Assim sendo, inobstante o erro material legislativo, exige o tipo penal que tanto a vítima quanto o terceiro sejam induzidos a erro pelo autor da infração. Enfim, como é de trivial conhecimento, a fraude é elemento constitutivo inarredável do estelionato seja ele em qualquer de suas formas.

Como antes da Lei 14.155/21 não havia qualificadora para o estelionato com uso de meios informáticos e/ou eletrônicos, é claro que essa qualificadora somente pode ser aplicada para os casos ocorridos após sua vigência, não tendo força retroativa por configurar nova lei mais gravosa.  

No § 2º. – B é previsto, tal qual ocorre no furto eletrônico ou informático, um aumento da ordem de um terço a dois terços se o crime do § 2º. – A é cometido com uso de servidor mantido fora do território nacional. Note-se que esse aumento é exclusivo para o caso de “Fraude Eletrônica”, não sendo aplicável a outros casos de estelionato. Valem aqui os mesmos comentários já expendidos acerca do aumento idêntico previsto para os casos de furto eletrônico e/ou informático.

No seguimento é alterado o § 4º., agora com “nomen juris” de “Estelionato contra idoso ou vulnerável”. Antes esse mesmo parágrafo já previa aumento de pena, mas somente para os casos envolvendo vítimas idosas. Além disso, o aumento era fixo no dobro e atualmente tem variação entre um terço e o dobro. O incremento agora abrange também os vulneráveis.  É prevista ali uma causa especial de aumento de pena da ordem de um terço ao dobro, quando o crime tiver como sujeito passivo idoso ou vulnerável. Esse aumento é análogo àquele previsto no caso do furto eletrônico. No entanto, não se pode dizer, como no caso anterior, que haja plena identidade. Isso porque no caso do furto o aumento é restrito aos furtos eletrônicos, conforme já visto, enquanto que no estelionato a causa de aumento em estudo é aplicável a todas as suas modalidades, incluindo a “Fraude Eletrônica”. Por isso no furto a questão é tratada num só parágrafo com dois incisos (vide artigo 155, § 4º. – C, I e II, CP), enquanto no estelionato o aumento referente ao servidor estrangeiro é previsto separadamente no artigo 171, § 2º. – B, CP, restrito aos casos do § 2º. – A, e o aumento relativo às vítimas idosas ou vulneráveis é previsto em apartado no artigo 171, § 4º., CP, sem a restrição aos casos de “Fraude Eletrônica”.

O que não se compreende é por que no caso do furto essa mesma técnica não foi utilizada, violando a proporcionalidade e razoabilidade. Note-se que o aumento para os casos de vítimas idosas ou vulneráveis se justifica por serem hipossuficientes diante de uma ação fraudulenta, portanto, no caso do furto, o aumento deveria ter sido previsto de tal forma a abranger não somente o furto mediante fraude eletrônico, mas o furto mediante fraude em geral (artigo 155, § 4º., II – fraude). Não seria realmente o caso de estender o aumento a todo e qualquer furto, mas seria sim o de aplicá-lo sem distinção a todos os furtos mediante fraude, eletrônicos ou não. Entretanto, não foi isso que o legislador fez e, portanto, temos tratamentos diversos entre o furto e o estelionato. Aliás, esse equívoco já vem da alteração que incluiu originalmente o aumento de pena do “Estelionato contra Idoso” e não tomou a mesma atitude com relação ao furto mediante fraude contra idoso, isso ainda na época da edição da Lei 13.228/15. O que temos hoje, portanto, é apenas a continuidade de um antigo equívoco e a consequente perda de oportunidade de seu conserto.

Com relação ao direito intertemporal deve-se observar que esse aumento de pena do § 4º., na sua atual conformação, pode ser lei mais gravosa ou mais benéfica, conforme as circunstâncias. Explica-se: quanto aos idosos, como já havia previsão de aumento e esse aumento era fixo no dobro, não havendo variância, e agora existe a variação de um terço ao dobro, pode-se dizer que se trata de “novatio legis in mellius”, com força retroativa, já que o aumento pode ser menor e se for o máximo não há prejuízo, constituindo mera continuidade normativo típica. Já com relação aos vulneráveis não havia previsão de aumento algum, de modo que induvidosamente se trata de “novatio legis in pejus” e sem força retroativa, somente podendo ser aplicada a casos posteriores à sua vigência.  

Quanto aos demais aspectos dessa causa de aumento de pena, tirante sua maior amplitude, valem aqui as mesmas observações formuladas com relação à similar previsão do furto eletrônico.

Reitere-se a importância de ter em conta a diferença entre o furto mediante fraude (eletrônico ou comum) e o estelionato (também eletrônico ou comum), sabendo-se com isso aplicar um ou outro tratamento legal de acordo com a correta tipificação.

Um exemplo para aclarar:

Suponha-se que um indivíduo envie um email para uma pessoa, dizendo ser funcionário do banco onde esta tem conta corrente e pedindo seus dados cadastrais para confirmação, bem como suas senhas de acesso. Depois, com o uso de um cartão clonado ou mediante ingresso em aplicativo, faz o próprio criminoso a transferência de valores para uma conta à qual tem acesso. Esse é um caso de furto mediante fraude eletrônico. O criminoso fez a transferência, portanto, subtraiu o numerário. Não foi a vítima que lhe transferiu. Num outro quadro, novamente por meio de um email malicioso ou mensagem de whatsapp, o infrator consegue convencer a vítima a fazer-lhe uma transferência de valores para uma conta a que tem acesso. Nesse caso foi a vítima mesma quem entregou o valor ao criminoso submetida a engano, de modo que se configura a “Fraude Eletrônica” e não o furto. Não houve subtração, mas tradição (entrega) do bem.


5 – COMPETÊNCIA PARA PROCESSO E JULGAMENTO DE CRIMES DE ESTELIONATO POR CHEQUE SEM FUNDO, FRUSTRAÇÃO DE PAGAMENTO DE CHEQUE, DEPÓSITOS E TRANSFERÊNCIAS

A Lei 14.155/21 também promove uma alteração no Código de Processo Penal Brasileiro, tratando especificamente da competência para os crimes de estelionato por meio de depósitos, transferências, cheques sem fundo ou frustração de pagamento de cheques. Note-se que essa alteração não é específica para fraudes eletrônicas, mas abrange outros casos tradicionais de estelionato como, por exemplo, os cheques sem fundos e demais situações sem necessidade do requisito da fraude eletrônica.

É criado um § 4º. no artigo 70, CPP que determina que nos casos acima aventados a competência será a do local do domicílio da vítima. Também esclarece o dispositivo que, em havendo pluralidade de vítimas com domicílios diversos, a competência será firmada pela prevenção.

A nova regra nos parece salutar, tendo em vista que havia bastante discussão acerca da competência para esses casos, principalmente envolvendo depósitos e transferências de valores. Além disso, toda a discussão foi exacerbada com o surgimento de bancos virtuais, o que dificultava ainda mais o estabelecimento de uma competência “ratione loci”.

Quanto aos cheques sem fundos ou com pagamento frustrado, já havia certa pacificação considerando-se o local da recusa do pagamento, inclusive com Súmulas do STJ e do STF a respeito, embora não houvesse norma legal explícita. De acordo com as Súmulas 244, STJ e 521, STF o local que estabelecia a competência para tais casos era o de recusa do pagamento, ou seja, a praça do cheque, onde ficava a agência bancária do emitente. Essas Súmulas agora perdem eficácia diante de disposição legal expressa que elege a competência do domicílio da vítima. [20]

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Porém, não se pode pensar que em qualquer caso de fraudes por meio de cheque será aplicada a regra do artigo 70, § 4º., CPP. Esta se refere apenas à figura equiparada do artigo 171, § 2º., VI, CPP (cheque sem fundos ou frustração do pagamento). Em casos de cheques falsificados, cheques de contas encerradas, cheques falsos ou clonados, cheques furtados ou roubados etc., aplica-se a regra normal do artigo 70, “caput”, CPP e a Súmula 48, STJ que afirma competir “ao juízo do local da obtenção da vantagem ilícita processar e julgar crime de estelionato cometido mediante falsificação de cheque” (esta Súmula não sofre qualquer dano com o advento da Lei 14.155/21). Na prática isso não altera muito o resultado da competência, considerando que a vítima normalmente é lesada no local de seu domicílio. Mas, em casos especiais em que a vítima é lesada fora da área de seu domicílio, haverá divergência. Imagine o seguinte:

Um indivíduo de São José dos Campos – SP passa um cheque sem fundos em Lorena-SP (onde a vítima é estabelecida), cheque este de sua titularidade (do infrator) em banco na primeira cidade. Antes a competência era de São José dos Campos – SP, agora é de Lorena – SP, domicílio da vítima. Outro caso seria um indivíduo que passa um cheque falso em Lorena-SP. Acaso a vítima seja também moradora de Lorena – SP, embora se aplique ao caso o artigo 70, “caput”, CPP e não seu § 4º., a competência continua em Lorena-SP e acaba coincidindo acidentalmente com o domicílio da vítima. Nada acaba se alterando na prática, mas tão somente a norma legal aplicável é diversa. Porém, nesse caso do cheque falso, se a vítima que o recebeu era, por exemplo, um vendedor ambulante, morador de Ubatuba – SP, a competência continuará em Lorena – SP e, portanto, também na prática haverá alteração pela aplicação do artigo 70, “caput”, CPP e Súmula 48 , STJ no caso de cheque falso e não do artigo 70, § 4º., CPP.

Já nos casos de crimes de estelionato cometidos mediante depósitos ou transferências de valores, aplica-se diretamente a regra do artigo 70, § 4º., CPP, sendo competente o local de domicílio da vítima e, em havendo pluralidade, a questão se resolve pela prevenção.

Frise-se, por fim, que nos demais casos de estelionato, seja do “caput” ou parágrafos do artigo 171, CP, a competência continua se firmando pela regra geral do artigo 70, “caput”, CPP (local onde se consuma a infração, o que equivale a dizer, no caso de crimes patrimoniais, onde ocorre o efetivo prejuízo da vítima).

No que diz respeito ao direito intertemporal, em se tratando de norma de caráter estritamente processual penal (competência), aplica-se, em regra, o sistema do isolamento dos atos processuais ou aplicação imediata, sem que seja necessário adentrar em questões de retroatividade ou ultratividade. Porém, o que fazer em relação aos processos já em andamento? Continuar no mesmo juízo ou remetê-lo de acordo com a nova regra?

Em se aplicando a regra geral do isolamento dos atos processuais, conforme artigo 2º., CPP, caberia remeter os autos ao novo juízo competente de acordo com o artigo 70, § 4º., CPP. Pode haver quem assim entenda, dada a determinação expressa do artigo 2º., CPP já mencionado. [21]

Entretanto, considera-se que essa alteração geraria graves entraves, especialmente à nossa já combalida agilidade processual. No que tange às regras de competência existe a chamada “perpetuatio jurisdiccionis”, obtida por integração do artigo 43, CPC c/c artigo 3º., CPP. [22] De acordo com o princípio da “perpetuatio jurisdiccionis” quando iniciado um processo em determinado juízo, nele deve seguir até seu final julgamento (seria uma exceção à aplicação imediata das normas processuais, adotando-se o sistema da unidade processual). Quando um processo se inicia a competência é firmada, de maneira que eventuais alterações nesse tópico serão tidas, em regra, como irrelevantes. [23] A aplicação desse princípio por meio da analogia ao Processo Civil, que tem sido admitida correntemente, [24] nos parece a melhor solução para os casos em andamento. O ideal seria que o legislador houvesse previsto uma norma de transição determinando expressamente esse procedimento. Infelizmente não o fez, o que certamente gerará alguma controvérsia doutrinária e jurisprudencial.

Agora, quanto aos casos em que ainda não há processo, mesmo havendo inquérito em andamento, a aplicação da nova norma é imediata, de acordo com o artigo 2º., CPP, pois que a “perpetuatio jurisdiccionis” não se refere à fase pré – processual, mas somente quando já iniciado o processo em juízo. Portanto, não importa se o fato se deu antes da nova norma, o que pode importa é se o processo já estava em andamento antes dela.  

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Invasão de dispositivo informático, furto eletrônico, estelionato eletrônico e competência – Lei 14.155/21. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6613, 9 ago. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/92210. Acesso em: 19 abr. 2024.

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