RESUMO: A liberdade de imprensa e os direitos da intimidade e honra, embora sejam garantias constitucionais, não são absolutos, de modo que se busca aprofundar o estudo nas formas de solução destes conflitos. Este artigo traz enfoque especial no posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) quanto à problemática existente, com base em dois julgados que se tornaram imprescindíveis para o tema. O estudo é relevante por trazer um panorama atualizado de posicionamentos doutrinários e jurídicos, bem como jurisprudências recentes, acerca de um tema sempre atual e polêmico, já que a comunicação social está em constante crescimento com a modernidade. Assim, questiona-se: Quais os limites da liberdade de imprensa face aos direitos da intimidade e honra? A hipótese inicial é a de que um direito não deve se sobrepor ao outro, no entanto, se observa uma certa prevalência à liberdade de expressão no contexto brasileiro. A investigação dividiu-se inicialmente em um panorama geral das ações que envolvem estes conflitos, para, em seguida, destacar o posicionamento do STF diante da ADPF 130 e da ADI 4815, e, por fim, analisar as consequências de uma possível insegurança jurídica iminente. Como metodologia, utilizou-se uma abordagem qualitativa do problema, sendo a pesquisa de natureza exploratória, com procedimento metodológico de pesquisa bibliográfica e documental, mediante análise de doutrinas, legislações, jurisprudências, textos científicos e julgados.
Palavras-chave: conflito; direitos da intimidade; liberdade de imprensa.
1 INTRODUÇÃO
Ao tratar de liberdade de imprensa e dos direitos da intimidade e honra têm-se direitos e garantias fundamentais assegurados constitucionalmente, tanto no artigo 5º, em seu inciso X, que evidencia a intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas como invioláveis, cabendo indenização quando infringido; quanto em seu artigo 220, §1º, que preceitua que nenhuma lei impedirá a plena liberdade de imprensa em qualquer veículo de comunicação, retomando os incisos IV, V, X, XIII e XIV do dispositivo retromencionado[4].
Com o avanço da comunicação social[5], surgiram as tensões entre os direitos acima mencionados, visto que, em certas situações, a liberdade de expressão extrapola seus limites e acaba atingindo direitos inerentes à pessoa humana, que são os direitos da personalidade como o direito à intimidade e honra. No entanto, diante de um Estado Democrático de Direito, tais conflitos devem ser solucionados com o intuito de se preservar todas as garantias previstas no texto constitucional.
É nesse cenário que, no decorrer do presente artigo, se apresenta a problemática do conflito de direitos, buscando uma reflexão sobre os limites da comunicação social capaz de lesar a honra e intimidade de uma pessoa, e como tais casos são decididos pelos tribunais, buscando garantir a supremacia de ambos. Questiona-se, portanto: Quais os limites da liberdade de imprensa face aos direitos da intimidade e honra? De um lado, a real e notória importância de uma imprensa forte e operante, a fim de transmitir a notícia à população, de forma impessoal e sem censura, com toda sua liberdade de expressão e, de outro lado, os direitos da personalidade do indivíduo, em toda sua esfera referente à intimidade, honra.
Partindo do pressuposto de que tanto a liberdade de imprensa quanto os direitos da personalidade são assegurados constitucionalmente, sendo ambos direitos fundamentais, e ainda, sabendo que nenhum direito é absoluto, tem-se a necessidade de delimitação destes face à problemática dos conflitos entre si. De modo que o objetivo geral está na análise dessa temática a partir do posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) em duas decisões de relevo. A hipótese inicial é a de que um direito não deve se sobrepor ao outro, todavia, se observa uma certa prevalência à liberdade de expressão[6] no contexto brasileiro.
Assim, na primeira seção, almeja-se apresentar um panorama geral das ações que envolvem liberdade de imprensa e direitos da intimidade e honra, os locais de maior incidência, as partes envolvidas, as formas de se externar a liberdade de expressão. Já na segunda seção, trata-se do posicionamento do STF na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 130 e na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4815, dois julgados de importância para o presente estudo, em razão de serem considerados marcos histórico-jurídicos por ministros da Corte Suprema. Por fim, na última seção do desenvolvimento, o estudo abarca as consequências de uma possível insegurança jurídica, o que poderia causá-la, conforme todo o narrado.
As mencionadas ações judiciais tratam-se de marcos histórico-jurídicos na discussão do embate entre os direitos de personalidade e a liberdade de expressão e por tal motivo foram consideradas como objeto de análise neste trabalho, sem pretensão de esgotar o estudo sobre a temática a respeito do tema, mas buscando uma especificidade na análise da postura jurídica do STF diante de tais casos. Logo, não é objeto deste trabalho verificar o posicionamento majoritário do Poder Judiciário em suas demandas locais, mas o de fornecer luz ao leitor a respeito dos debates na Corte Suprema do país, ocorridos por meio dos respectivos julgamentos em 2009 e em 2015.
Para a produção deste artigo, a metodologia utilizada revela uma abordagem qualitativa do problema, cuja pesquisa é de natureza descritivo-exploratória, adotando-se o procedimento metodológico da pesquisa bibliográfica e documental, mediante a análise de doutrinas e textos científicos, bem como legislações, julgados e jurisprudências. Desta maneira, ao longo do trabalho, ficaram evidenciadas as formas adotadas para solucionar os conflitos envolvendo os direitos anteriormente elencados, os posicionamentos de diversos estudiosos na matéria, bem como e, em especial, dos próprios Ministros do STF, alertando para uma eminente insegurança jurídica na jurisprudência e para a declarada prevalência da liberdade de imprensa sob seus fundamentos.
2 PANORAMA GERAL DAS AÇÕES QUE ENVOLVEM LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS DA INTIMIDADE E HONRA
Primeiramente faz-se necessário esclarecer, segundo Luís Roberto Barroso (2019), que os direitos fundamentais são direitos humanos que foram inseridos na Carta Magna, sendo protegidos pelo ordenamento jurídico e, assim, podendo ser reivindicados judicialmente. Teriam nascido como direitos individuais destinados a proteger o indivíduo do Estado, no entanto, possuem limites implícitos ou explícitos na própria Constituição, visando conciliá-los por meio da proporcionalidade e razoabilidade, com o legislador e a criação de dispositivos que restringem os direitos ou a atuação do Judiciário com a devida ponderação nos casos concretos.
No tocante à ponderação, não se deve deixar de citar Robert Alexy (2014, p. 95), pois para ele os grandes norteadores dessa temática seriam a lei da colisão e a lei da ponderação. Pela lei da colisão, um princípio teria certa precedência em relação ao outro, porém não uma precedência absoluta, mas sim por meio de um sopesamento entre os interesses conflitantes, ou seja, qual dos interesses teria maior peso no caso concreto. Já pela lei da ponderação é conferida uma alta subjetividade ao intérprete do direito, uma vez que cabe a ele ponderar entre um princípio e outro.
Nesse sentido, é relevante aduzir sobre razoabilidade e proporcionalidade à luz do que expõe Barroso. Segundo o autor, a racionalidade é responsável pelas decisões do Poder Público, de forma difusa, não arbitrária. Já a proporcionalidade seria o principal mecanismo utilizado para restringir legitimamente os direitos fundamentais e teria três fases, a adequação de uma medida para produzir determinado resultado, a necessidade da providência, sendo vedado o excesso e a proporcionalidade em sentido estrito para verificar se o fim justifica o meio. (BARROSO, 2019, p. 511-512).
Superada essa fase conceitual, indispensável para o entendimento do tema proposto, segue-se para os casos concretos levados ao âmbito do Poder Judiciário acerca da discussão liberdade de expressão versus direitos da personalidade, intimidade e honra. Diante da pesquisa realizada[7], é possível extrair que há um total de 5509 (cinco mil quinhentos e nove) ações em trâmite judicial, sendo 705 (setecentos e cinco) processos, de 2019 até a atualidade, em que se litiga contra a divulgação de informações, em que 44% (quarenta e quatro por cento) desses pleitos estão em São Paulo, seguido por Bahia, Amazonas, Rio de Janeiro e Distrito Federal, tendo o Amapá e Espírito Santo os menores índices processuais.
Percebe-se que tais ações têm como parte o Ministério Público Eleitoral, seguido do político Amazonino Armando Mendes, filiado ao partido político MDB, e do Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro. (CTRL+X, 2021). Em primeiro lugar, 77% (setenta e sete por cento) são referentes à difamação, calúnia ou injúria, seguido de violação à legislação eleitoral e à privacidade, exteriorizadas por meio de texto, vídeo, foto, ilustração e áudio. (CTRL+X, 2021).
Diante do panorama apresentado, direciona-se luz ao conflito da liberdade de expressão com os direitos da intimidade e honra, a título exemplificativo, a partir de exposição de alguns casos concretos e fundamentos trazidos pela jurisprudência, a começar por um julgado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, processo de Apelação nº 0121176-50.2014.8.19.0001, julgado em 24 de julho de 2019, que traz exatamente a questão da ponderação e da precedência explicadas anteriormente para solucionar o embate. (RIO DE JANEIRO, 2019).
Nesse primeiro cenário, João Tancredo interpôs ação contra a Abril Comunicações S.A. e Lauro Roberto de Salvo Souza Jardim requerendo uma indenização por danos morais por entender que a matéria publicada pelo jornalista no endereço da primeira Ré teria sido inverídica e ofensiva à sua honra. A referida matéria noticia uma ocorrência com grande repercussão social na época, a qual uma mulher teria sido morta e arrastada por uma viatura policial no Rio de Janeiro e que sua família teria sido alvo de espertalhões, dando a entender que João Tancredo seria um destes, já que teria atuado como advogado e foi mencionado, sendo vinculado também a processos contra o Estado e em defesa de manifestantes, o que supostamente acarretou danos de toda ordem, não só na seara profissional. (RIO DE JANEIRO, 2019).
O Autor da referida demanda conseguiu uma tutela para retirada da publicação e foi deferida uma indenização a seu favor, no valor de R$ 30.000,00 (trinta mil reais). No entanto, em sede de apelação, os Réus garantiram a reforma da sentença uma vez que o legislador entendeu ser necessário um equilíbrio entre princípios, de forma que não resultasse na nulidade ou total escolha de um em detrimento do outro. Nesse caso além de ter sido comprovada a veracidade das informações, o direito a crítica que é garantido à imprensa, bem como o relevante interesse público diante da visibilidade do caso não geraram qualquer ilicitude, da mesma maneira, por ter sido apenas a exposição da existência de um fato público, de modo que houve uma prevalência ao direito da imprensa, que cumpriu com o seu papel de transmitir a informação (RIO DE JANEIRO, 2019).
Quanto a essa prevalência, João Pedro Martins de Sousa e Liana Silva do Amaral (2021, p. 121) explanam sobre a reclamação nº 22.238/RJ, na qual um meio de comunicação jornalístico teria ajuizado ação sob alegação de que determinado acórdão estaria confrontando posicionamento do STF, e dentre seus fundamentos haveria essa prevalência por ser requisito fundamental para a realização livre e efetiva dos demais direitos, embora nenhum direito seja absoluto e possua limitações, bem como, entendem que essa preferência repele qualquer caso de censura.
Já numa segunda situação, tem-se o caso de Ricardo Cacciatore que ingressou no Tribunal de Justiça de São Paulo contra a Rádio e Televisão Bandeirantes S/A, processo nº 1000738-55.2020.8.26.0006, julgado em 11 de agosto de 2021, requerendo danos morais e uma retratação pública por terem transmitido uma reportagem na qual falava sobre uma violência ocorrida na escola em que o autor da ação trabalha como professor, e em determinado momento o mesmo aparece fumando um cigarro em área própria para fumantes, porém tendo sido descrito como um aluno usuário de drogas, instante em que foi identificado por amigos, familiares e alunos, abalando assim sua honra e intimidade. Por sua vez, a empresa Ré afirma que estava cumprindo com o seu dever de transmitir a notícia, de forma que o foco da reportagem sequer seria o autor e que a imagem estaria em conformidade com a legislação, pois estava distante e desfocada, não ensejando o seu reconhecimento pelo público. (SÃO PAULO, 2021).
Pois bem, diante das provas e discussões, a sentença do caso acima foi julgada parcialmente procedente, o réu então ingressou com o recurso de apelação que obteve resultado positivo, apenas minorando o montante da indenização e a forma da retratação, com base nas seguintes considerações. Revela o comando sentencial, que, apesar das garantias da liberdade de imprensa, também é dever desta o zelo pela informação prestada, visando não afetar a reputação e acabar infringindo os direitos da personalidade de outrem. E ainda faz menção à decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, expondo que se pode responsabilizar posteriormente quem comete abuso à liberdade de expressão e atinge a honra das pessoas, e julgados de outros tribunais para mais uma vez trazer a ponderação de princípios como chave para o embate, deixando clarividente que não é permitido que um cidadão seja acometido em sua individualidade, e que, no caso em tela, não houve interesse social considerando a notícia falsa. (SÃO PAULO, 2021).
Nota-se mais uma vez a presença do conflito entre os princípios aqui objeto de estudo, tendo o operador de direito que decidir a melhor forma de solucioná-lo, de modo geral, sempre buscando levar em consideração quem cometeu o ato ilícito, para ponderar tais garantias e se chegar à melhor resolução.
Resgatando o que fora apresentado anteriormente, percebe-se que no primeiro caso a liberdade de imprensa teve maior relevância, uma vez que as informações eram verídicas e não houve nenhum ato que ultrapassasse esses limites e violasse os direitos individuais do cidadão. Já no segundo caso, as informações retratadas por parte da imprensa eram inverídicas, o que extrapola seus limites a partir do momento da publicação da notícia, afetando diretamente garantias como honra e intimidade do indivíduo em questão.
Para finalizar, optou-se por uma breve análise do panorama do Estado de Sergipe, onde também ocorrem situações deste âmbito, dessa forma, será explanado um julgado relativamente recente, processo nº 0034257-51.2018.8.25.0001 de 09 de dezembro de 2019, em que três cidadãos recorrem de sentença proferida improcedente em que se requereu indenização pelos supostos danos causados no montante de R$100.000,00 (cem mil reais) contra a Televisão Atalaia LTDA e Gilmar José Fagundes de Carvalho, este apresentador televisivo. (SERGIPE, 2019).
Sobre o caso, narram os autores da demanda que o apresentador por meio de transmissão jornalística pela primeira ré teria afirmado que eles teriam sido indiciados por crimes de falsificação de documentos em uma operação da Polícia Civil do Estado, ferindo a honra destes e gerando prejuízos de ordem moral e profissional, já vez que a realidade seria outra, a qual eles teriam sido apenas investigados. O tribunal decidiu com base na relativização de direitos e da ponderação, a fim de se garantir a liberdade de expressão, porém impedindo a violação à imagem, honra e privacidade dos autores. Os julgadores seguiram pelo entendimento de quem teria cometido o ato ilícito e concluíram que o jornalista apenas teria lido o inquérito policial, não cometendo qualquer abuso, apenas repassando a notícia. (SERGIPE, 2019).
Dessa forma, observa-se que todas as decisões seguem uma linha de pensamento, com base nos preceitos estudados inicialmente, da ponderação de direitos, da relativização, ou seja, da prevalência de um de modo a não ferir o outro. Entre as fundamentações, muito se fala e até se transcrevem decisões paradigmas consolidadas como as relativas ao posicionamento do STF na ADPF 130 e ADI 4815. É nesse contexto que o presente estudo seguirá na próxima seção.
3 POSICIONAMENTO DO STF: ADPF 130 E ADI 4815
Neste capítulo será abordado o posicionamento do Supremo Tribunal Federal em dois julgados de extrema relevância, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF 130, julgada em 2009, tendo sido acolhida pela maioria dos votos pela não recepção da Lei de Imprensa; e a Ação Direta de Inconstitucionalidade, a ADI 4815, julgada em 2015, por unanimidade de votos pela procedência do pedido para dar nova interpretação a dispositivos do Código Civil, a qual trata das biografias não autorizadas.[8]
3.1 ARGUIÇÃO DE PRECEITO FUNDAMENTAL - ADPF 130
Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF nº 130, julgada em 2009 e presidida pelo Ministro Gilmar Mendes, tendo Carlos Ayres de Britto como relator, foi acolhida por maioria, a não recepção da Lei nº 5.250/1967, também conhecida como Lei de Imprensa[9], por ir de encontro com a Constituição Federal vigente, vez que a referida lei continha muitas exceções às liberdades dispostas nos artigos 5º, incisos IV, V, IX, X, XIII e XIV, assim como aos artigos 220 a 223, CF/88. Conforme acórdão, a ADPF foi julgada como improcedente, tendo seus votos vencidos em parte, pelo Ministro Joaquim Barbosa e a Ministra Ellen Gracie com relação ao artigo 1º, § 1º, artigo 2º, caput, artigo 14, artigo 16, inciso I, e artigos 20, 21 e 22, todos da mencionada lei; bem como pelo Ministro Gilmar Mendes que a julgou improcedente quanto aos artigos 29 a 36 desta lei e tendo o voto totalmente vencido, o Ministro Marco Aurélio que a julgou improcedente em sua integralidade. (BRASIL, 2009).
Iris Cintra Basilio e Marcos Ehrhardt Júnior (2019) realizaram alguns apontamentos sobre os principais fundamentos do STF em prol da ADPF para não recepcionar a Lei 5250/1967, os quais se firmaram primeiramente sob a ótica do relator, que esta lei não seria necessária para regulamentar a atividade da imprensa no país, levando em consideração de que a lei constitucional seria suficiente. Outro fundamento seria a quantidade de restrições de liberdades constitucionais que ela poderia gerar, como no âmbito da liberdade de pensamento e expressão, argumento utilizado pelo relator e sido acolhido pela maioria dos ministros. Por fim, o fundamento de que as liberdades de expressão e pensamento devem prevalecer sobre os direitos da personalidade, como os direitos de intimidade e honra, devendo os abusos serem devidamente responsabilizados.
Ainda, conforme Hartmann (2020, p. 117), da ementa se pode extrair os reais motivos pelos quais a Lei de Imprensa não foi recepcionada, dentre os quais seriam a proibição de censura prévia por parte de qualquer órgão dos três Poderes e que nenhum dano pode tomar uma proporção maior por causa especificamente da atividade da imprensa, pois assim esta seria penalizada por sua própria liberdade de expressão.
3.2 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - ADI 4815
Seguindo a mesma linha de pensamento, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4815 (BRASIL, 2015b), põe em debate a interpretação dos artigos 20 e 21 do Código Civil[10], os quais preceituam sobre os direitos da personalidade como os direitos da intimidade e honra, bem como estende-se à liberdade de pensamento, expressão e informação inerentes da liberdade de imprensa. Foi julgada por unanimidade a procedência do pedido com relação a publicação de obras literárias ou audiovisuais, gerando a desnecessidade de autorização por parte do biografado e coadjuvantes, lançando aos referidos artigos uma nova compreensão, de forma a manter o texto legal, porém sob a luz constitucional, solucionando dessa forma o conflito preexistente entre os direitos da personalidade ali assegurados e os direitos da liberdade de expressão.
Para isso, em julgamento ocorrido no dia 10 de junho de 2015, mediante a presidência do Ministro Ricardo Lewandowski, os ministros seguiram o voto da Relatora, a Ministra Carmem Lúcia, a favor da ADI (BRASIL, 2015b), no sentido de dar interpretação aos referidos dispositivos para declarar desnecessária a autorização da pessoa biografada, assim como os demais retratados na obra.
Conforme a relatora, a comunicação é requisito essencial para a humanidade, sendo manifestada através da palavra. Ressalta que a liberdade de manifestação de pensamento, expressão, artística, científica e cultural são fundamentais perante a Constituição da República, bem como os direitos da personalidade como intimidade e honra, no entanto, preceitua que se houver ofensa há formas de se reparar o dano, como é o caso de uma compensação indenizatória, onde tudo além disso seria o que se entende por censura. Defende no caso em tela que ao obstar a circulação das obras estaria reprimindo a palavra do outro e também da história, já que a mesma se faz através de humanos, ou seja, dos próprios autores. (BRASIL, 2015b),
Mariana Silveira Sacramento (2018) aborda sobre o mesmo entendimento, mas com ressalvas, quando cita que a biografia pode ser utilizada para retratar a história, no entanto, o que deve prevalecer é sua função informativa, preservando com isso os direitos da personalidade do biografado, o que não significaria a impossibilidade de relatar fatos mais específicos de sua vida, já que o interesse público traz essa garantia, contudo, preservando a esfera mais íntima do retratado.
Em seguida, o Ministro Luís Roberto Barroso que também votou a favor, traz um ponto de vista diferente. Ele igualmente reconhece a ponderação como técnica para solução de conflitos entre direitos, no entanto ainda cita o princípio da unidade como norteadora da ponderação, a qual estabelece que inexiste hierarquia entre normas constitucionais, de forma que uma norma não encontra fundamento sob outra norma, mas todas devem preexistir harmoniosamente em igualdade. Ainda quanto à ponderação, o mesmo a subdivide em três etapas, onde a primeira seria a verificação dos princípios que incidem na hipótese, na segunda afere os fatos de relevância e na terceira etapa se buscam possíveis soluções, lembrando que podem ocorrer concessões recíprocas, teoria abordada em obras de sua autoria. (BRASIL, 2015b).
Marcus Geandré Nakano Ramiro (2020, p. 516) descreve as diferenças entre ponderação, proporcionalidade e razoabilidade, onde se percebe ser o instituto da ponderação o mais complexo e mais utilizado pelo STF, o qual comumente está rodeado da concordância prática e da proibição do excesso, ou seja, se busca a harmonia de princípios tratada por Barroso e se deve resguardar o mínimo de eficácia de cada norma, onde uma não pode afetar a outra totalmente. Fazendo uma análise em sentido amplo, quanto aos direitos fundamentais e não em sentido estrito.
Barroso entende que os artigos 20 e 21 do Código Civil protegem sobremaneira os direitos da personalidade, desprezando a liberdade de expressão, que possui duas nuances com relação às biografias. Uma liberdade seria do criador da obra e em segundo a liberdade no sentido do povo ter o direito de informação. Portanto a ponderação tratada nestes artigos fere o princípio da unidade, produzindo uma hierarquização entre normas de direito fundamental. Compartilha ainda da ideia de que a liberdade de expressão possui uma maior relevância no Estado brasileiro para a democracia, amparada primeiramente no seu histórico no país, que desde o início foi duramente atacada, reprimida e perseguida, precisando então ser reafirmada eventualmente como meio de exaltá-la. (BRASIL, 2015b, p. 143).
No que tange à liberdade de expressão, Marco Aurélio Mello (2021, p. 10) cita que A sociedade civil e política beneficia-se da garantia do livre exercício do direito de opinião como forma de concretização do princípio democrático. Dessa forma, subentende-se que a democracia está diretamente ligada às liberdades de comunicação, quais sejam qualquer manifestação do pensamento, liberdade de expressão ou liberdade de imprensa.
Por fim, ainda fundamentando seu voto na ADI 4815, Barroso narra que sem a liberdade de expressão não haveria a plenitude dos outros direitos", uma vez que a circulação de ideias é necessária para o debate público, não a possuir ocasionaria na falta de autonomia individual. Além disso, tal liberdade é essencial para a conservação da memória nacional, para se ter consciência da história. E que tendo a liberdade de expressão certa preferência, seria de quem pretende defender sua violação à intimidade e honra, o ônus de provar que houve um excesso quando atingido seu direito individual. Preceitua também que diferentemente da Ministra Carmém Lúcia, quando da reparação posterior do dano sofrido, caberia por exceção, a responsabilização penal e que a intervenção do judiciário deve ser posterior ao dano e não a priori. (BRASIL, 2015b, p. 147).
Muito se fala nas formas de intervenção judicial, se a priori ou a posteriori ao fato. Sabrina Favero (2018) narra que comumente se tutela a ofensa aos direitos da personalidade posteriormente, no entanto, uma vez lesados se torna difícil restaurar ao ponto inicial, bem como mensurar o valor da indenização. Assim como, ao se falar em uma intervenção anterior, em consonância com muitos estaria configurada a censura prévia, questão superada na ADPF 130.
Já para Marco Duque Gadelho Junior ainda não ficou bem delimitado quando se confere restrição prévia ou posterior à publicação. Entende que há uma tendência do Poder Público de analisar os meios mais do que os fins bem como há uma certa dificuldade em se definir censura prévia, que pode ser uma penalização anterior ou posterior ao fato. (GADELHO JUNIOR, 2018, p. 296). Embora, seja do entendimento do STF a indenização a posteriori, há essa polêmica doutrinária e que poderia causar uma certa insegurança jurídica no universo jurídico.
Diante do exposto, percebeu-se harmonia entre os votos da Corte, destacando os pontos principais, sendo todos favoráveis à ADI 4815, com particularidades de ponto de vista pontuais, dando uma nova interpretação aos dispositivos cíveis e garantindo certa prevalência à liberdade de expressão, essencial à liberdade de imprensa. Portanto, tendo o STF papel fundamental nos rumos jurídicos do país, é com base nestas decisões que o presente estudo se pautará na seguinte seção, para abordar as consequências de uma possível insegurança jurídica.
4 CONSEQUÊNCIAS DE UMA POSSÍVEL INSEGURANÇA JURÍDICA
Dando continuidade, aqui será tratado a respeito da possível insegurança jurídica conforme o posicionamento do STF com base no tema proposto, qual seja, o conflito entre a liberdade de imprensa e os direitos da personalidade como intimidade e honra. A repercussão dos dois grandes marcos históricos no assunto, tratados na seção anterior, a ADPF 130 e a ADI 4815, bem como se as decisões de juízes e tribunais operam em conformidade.
Iris Cintra Basilio e Marcos Ehrhardt Júnior (2019, p. 430) fizeram uma síntese interessante sobre os efeitos da ADPF 130. Os quais seriam: a inexistência de normas regulamentadoras de resposta, a colocação das liberdades de pensamento e expressão lato sensu em patamar superior aos outros direitos da personalidade, e a existência de decisões judiciais, transitadas em julgado, que contrariam o entendimento fixado pelo STF quanto à não recepção da Lei de Imprensa pela ordem constitucional de 1988 (coisa julgada inconstitucional).
Em uma análise de cada ponto, talvez o direito de resposta tenha sido o mais polêmico, uma vez que muito se foi discutido no sentido de que as normas contidas na lei eram compatíveis com a CF/88, e sem ela, o direito de resposta ficava sem qualquer regulamentação, tanto que em 2015 foi editada uma lei para tratar exatamente disso, a Lei 13.188/2015. Também há que se falar do segundo efeito que reduziria o poder de decidir com base no caso concreto dos magistrados com relação aos conflitos entre liberdades de expressão e direitos da personalidade, devendo-se utilizar o precedente normativo. Sobre o último efeito, estaria então relacionado às decisões que já haviam sido prolatadas em diversos processos, antes da decisão do STF e que ia de encontro com o decidido, passando a serem inexequíveis quando utilizadas apenas com fundamento na referida lei, o que teria gerado insegurança jurídica no ordenamento, conforme apontam Basilio e Ehrhardt Júnior (2019, p. 431).
Já Paulo Ferracioli e Carla Rizzotto (2020) fizeram uma reflexão quanto ao caso das biografias não autorizadas, objeto da ADI 4815, narrando várias situações em que os autores de tais obras são tolhidos pelo Poder Judiciário por meio de reparações e até recolhimentos destas em demandas dos biografados, alegando afronta aos direitos da personalidade, o que estaria ocasionando uma insegurança jurídica contribuindo para que as biografias não sejam mais produzidas, tendo em vista essa problemática da circulação das obras.
Enquanto Gisleni Valezi Raymundo (2019, p. 258) menciona a possível insegurança jurídica ocasionada pela repercussão da ADI 4815, quanto ao fato de que cabe ao Poder Judiciário decidir com base em interpretação, relatando ainda que a teoria da ponderação propagada por Robert Alexy não traz critérios objetivos para que o julgador possa chegar a uma decisão concreta, ou seja, ficaria a cargo da subjetividade e discricionariedade do juiz.
É nesse sentido que o Ministro aposentado do STF, Eros Roberto Grau (RAYMUNDO, 2019, p. 2-6), afirma que De modo inusitado, contudo, o Poder Judiciário tende hoje, entre nós, a converter-se em um produtor de insegurança!. Reflete que o controle de constitucionalidade passa a dar vez aos controles da proporcionalidade e da razoabilidade das leis, onde seria preferível violar uma norma a um princípio. Assevera que tais institutos só são aceitáveis quando do momento da formulação da norma advinda de uma decisão judicial e ainda diz que a ponderação permite que o juiz decida conforme arbitrária formulação de juízos de valor, estando à margem do direito positivo, da lei e da Constituição, e enquanto assim estiver, persistirá a insegurança jurídica.
Fradique Magalhães de Paula Júnior e Ricardo dos Reis Silveira (2020, p. 1256) relatam que a adoção da retroatividade na mudança dos precedentes vinculantes, remete à uma total insegurança, tendo em vista a alteração do regime jurídico de relações jurídicas já consagradas, contudo regidas pelo precedente revogado. Em contrapartida, alegam que os precedentes vinculantes, uma vez amparados pelo princípio da segurança jurídica, permitem que o novo entendimento não seja lesivo à previsibilidade e calculabilidade relativos aos efeitos jurídicos que ocasionará a decisão, fundando-se no princípio da proteção e confiança previstos no artigo 927 do Código de Processo Civil..
Sob a ótica de Marco Vicente Dotto Kohler (2019, p. 329-332) ao tratar de mudança de posicionamento, deve-se recorrer a hermenêutica jurídica para justificar o motivo pelo qual o caso a ser julgado faz jus a uma fundamentação diferente dos que já foram julgados, mesmo que seja para alterar posicionamento de decisão não vinculativa, mantendo-se assim incólume a segurança jurídica prevista na Constituição. Segundo sua pesquisa, sustenta que a subjetividade e a discricionariedade já mencionadas são fatores prejudiciais que ocasionam a insegurança jurídica. Subjetivismo, pois o Estado Democrático de Direito não comporta decisões medidas apenas pela vontade de alguém, ainda que do STF, e a discricionariedade por meio do livre convencimento a qual viola a unicidade da jurisdição, ou seja, deve haver uma conformidade com as causas já decididas, as quais se tornaram precedentes, que devem ser respeitados.
É nessa perspectiva que estaria a solução para a insegurança jurídica, nos precedentes judiciais, devendo serem utilizados para os demais casos idênticos, visto que eles são formas de uniformizar a jurisprudência por meio de critérios objetivos e estabelecidos, descritos no Código de Processo Civil em seu artigo 927[11]. Jurisprudência essa dependente das decisões de tribunais, e não de juízes de modo singular, conforme o artigo 926 do Código de Processo Civil[12] sob o estudo de Thainá Nascimento da Fonseca (2020, p. 202).
E ainda, segundo Sarah Santana de Menezes, Ana Cristina Almeida Santana e João Victor Almeida Correia (2018, p. 171) para se ter segurança jurídica, deve-se buscar a coisa julgada, que é um direito fundamental assegurado no artigo 5º, inciso XXXVI da CF/88[13], pois é por meio dela que o Judiciário consegue transmitir confiança na solidificação da justiça.
Diante do exposto, conclui-se que há uma prevalência de entendimentos no sentido de existir uma insegurança jurídica por conta da instabilidade da jurisprudência, decorrentes de mudanças de posicionamento dos tribunais, em especial do STF, com base em decisões pautadas em princípios que abrem margem a uma maior discricionariedade e interpretação dos operadores do Direito.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo buscou trazer uma breve e atual reflexão acerca dos conflitos entre os direitos da personalidade e a liberdade de imprensa com sua liberdade de expressão, como o direito à intimidade e honra, por meio do posicionamento do STF em decisões relevantes para o embate e os efeitos causadores de insegurança jurídica. Quando inicialmente no primeiro capítulo apresentou-se uma introdução conceitual para explicar mais detalhadamente o que seria cada instituto, as teorias acerca do tema, revelando sua importância para então dar seguimento ao panorama de casos existentes.
Conforme o panorama, pôde-se constatar a quantidade de processos que tramitam na justiça referentes ao tema proposto, os lugares com maior e menor incidência de casos, estando São Paulo na liderança de litígios. Os quais em primeiro lugar aparecem como parte o Ministério Público Eleitoral, em ações referentes ao conflito entre liberdade de expressão e difamação, calúnia ou injúria, tendo sido reveladas em sua maioria por meio de texto, vídeo, foto, ilustração e áudio.
Posteriormente, foi realizada uma breve exposição de casos em que se verificou o conflito objeto da presente pesquisa. Ficou demonstrado que frequentemente a forma de solucioná-los estaria sendo por meio da identificação de quem teria cometido o ato ilícito e assim por meio da ponderação de suas garantias e relativização, bem como utilizando o posicionamento do STF, se chegar a resolução daquele conflito.
No capítulo seguinte, foi aprofundado esse posicionamento em dois marcos de extrema relevância para o presente estudo, que foram a ADPF 130 e a ADI 4815. O primeiro julgado não recepcionou a Lei 5250/1967 que ficou conhecida como lei de imprensa, visto que, dentre outros motivos, a referida lei infringia garantias constitucionais, ficando conhecido como o marco do fim da censura prévia. Enquanto no segundo julgado foi dada nova interpretação a dois artigos do Código Civil garantindo a desnecessidade de autorização para publicação de biografias, solucionando o conflito tema dessa pesquisa com prevalência à liberdade de expressão/imprensa.
Por fim, o último capítulo trouxe a questão da insegurança jurídica como consequência das divergências judiciais e também dos efeitos da ADPF 130 e ADI 4815 tratadas no tópico anterior. Em que, no primeiro caso, tem-se a falta de regulamentação do direito de resposta como destaque e, no segundo caso, a forma de reparação posterior a publicação das biografias não autorizadas estaria inibindo a criação destas.
E, ainda, percebe-se que a mudança de posicionamento do STF, assim como a abertura para uma maior discricionariedade e subjetivismo nas decisões, por meio de princípios como o da ponderação e razoabilidade acabam ocasionando uma divergência de julgados. Posto que a decisão dos casos fica a cargo da discricionariedade de cada juiz, em que conforme explanado e diante da fundamentação mencionada, a solução estaria nos precedentes normativos.
Nesse sentido, diante do narrado na presente pesquisa, é possível notar que no caso de conflito, há uma certa prevalência à liberdade de imprensa, uma vez que está diretamente relacionada à história e evolução do país, em que se busca banir totalmente qualquer tipo de censura, porém sem lesar os direitos da personalidade de outrem, em especial o da intimidade e honra, mediante manobras jurídicas, como as mencionadas técnicas de ponderação, proporcionalidade e razoabilidade, que por vezes causam insegurança jurídica, pois abrem margem para uma maior discricionariedade e subjetividade dos magistrados.
Por fim, apesar da relevante contribuição acadêmica desta pesquisa, com o intuito de trazer o posicionamento do STF em decisões imprescindíveis para tais conflitos de direitos e garantias, fica resguardada a possibilidade de outros pesquisadores se aprofundarem no tema proposto. Haja vista que não houve a presunção de esgotar o estudo sobre a temática, mas dar enfoque aos debates atuais sobre o tema.