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A aplicabilidade limitada da lei Maria Ferrer ao tribunal do júri

12/12/2021 às 15:06
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A tentativa de gerar limites infraconstitucionais à atuação da defesa no tribunal do júri, por força da Lei Mariana Ferrer, não está balizada pela Constituição.

A defesa criminal possui dúplice viés: o do Tribunal do Júri e o do procedimento comum. As características constitucionais atribuídas a cada procedimento marcam os seus limites em um Estado democrático e republicano.

No Tribunal do Júri, a Constituição Federal optou pela proclamação de restrição aos limites ao exercício defensivo, ao proclamar a plenitude de defesa, tornando inaplicáveis restrições decorrentes da legislação infraconstitucional.

Há necessidade, por outro lado, de harmonizar a plenitude de defesa com os demais princípios e garantias constitucionais, o que produz os únicos limites aplicáveis ao exercício da defesa no Tribunal do Júri, os extraídos diretamente da Constituição Federal, como, por exemplo, o princípio da dignidade da pessoa humana, vetor do Estado brasileiro e, portanto, com prevalência hermenêutica em relação aos demais princípios constitucionais.

É diferente a garantia constitucional de ampla defesa fixada aos demais procedimentos, pois a Constituição Federal não estruturou restrição à geração de limites por força de manifestação legislativa infraconstitucional, como o faz ao proclamar que, no Tribunal do Júri, a defesa é dotada de plenitude, fato que conduz a que a ampla defesa tenha os meios e recursos que lhe são inerentes com contornos estruturados pela legislação infraconstitucional.

Nessa toada, há aparente tentativa, não balizada pela Constituição Federal, de gerar limites infraconstitucionais na atuação defensiva no Tribunal do Júri, por força da apelidada Lei Mariana Ferrer (Lei nº 14.245/2001), em especial nos incisos do artigo 464-A, incluído no Código de Processo Penal:

Art. 474-A. Durante a instrução em plenário, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão respeitar a dignidade da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz presidente garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:

I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;

II - a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.

Destarte, o respeito à dignidade humana, conforme já destacado é um limitativo referencial ao exercício defensivo no júri e, neste diapasão a mera proclamação no caput do artigo 474-A CPP de que todas as partes devem respeitar a dignidade da vítima, não apresenta legi stricta maiores problemas, porém, é bastante evidente a inaplicabilidade dos incisos I e II do referido dispositivo legal, por confrontarem diretamente com a garantia de plenitude de defesa

É essencial entender definitivamente que, por força de determinação constitucional, o poder de policiamento do Estado juiz, dentro dos limites legais, pode ser exercitado de forma mais ampla no procedimento comum, quando comparado com o Tribunal do Júri, sendo preciso observar que o Código de Processo Penal estabelece várias possibilidades de intervenção e limitação da defesa, plenamente aplicáveis ao procedimento comum e que não podem se impor ao Tribunal do Júri, por terem natureza infraconstitucional.

A manifestação sobre circunstâncias alheias ao fato em julgamento, no referente ao Tribunal do Júri não pode ser impedida, em hipótese alguma, quando manifestação defensiva, na medida em que a plenitude de defesa tem como um dos seus pontos centrais a plenitude retórica pela defesa, sendo de se considerar, inclusive, poderem os jurados absolver até mesmo por fatores extraprocessuais, como manifestação de clemência, de sorte que, tentar limitar a construção retórica defensiva ao argumento manipulável e genérico de que diz respeito à circunstância alheia ao fato em julgamento, representa evidente engessamento defensivo e da própria instituição do júri, em sua liberdade plena para formação do veredicto absolutório.

Da mesma forma, tentar, como o faz o inciso II do artigo 474-A CPP disciplinar a linguagem utilizada, os materiais que podem ser apresentados, bem como, as informações que os jurados possam ter conhecimento é mesmo que revogar, por via infraconstitucional, a plenitude de defesa fixada na Carta Maior, como estruturante do Tribunal do Júri, o que, em última análise, corresponde a desestruturar a própria instituição, gerando no Estado brasileiro um mero simulacro de julgamento por jurados.

A reflexão aprofunda-se, quando é tomado em conta que o artigo 133 da Constituição Federal diz ser o Advogado essencial para a administração da justiça e, por outro lado, a Lei 14.245/2001, chega ao extremo de tentar intervir sobre o que pode falar o profissional da advocacia, investido na sua função, assumindo contorno de verdadeira forma de censura em pleno regime democrático.

Com isso, é bastante claro que não há qualquer aplicabilidade dos incisos do artigo 474-A do Código de Processo Penal ao Tribunal do Júri, sendo o seu caput um referencial hermenêutico possível em relação à garantia de dignidade da pessoa humana, já muito bem estruturada pelo Pretório Excelso quando, por exemplo, bloqueia a possibilidade de teses como a legítima defesa da honra no crime de feminicídio, sendo seu emprego causa de nulidade de eventual absolvição.

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Por outra lado, a legislação infraconstitucional, ex ante, tentar invadir a essência do exercício da advocacia no Tribunal do Júri, para fixar o que pode ou não o profissional falar é uma clara agressão ao Estado Democrático de Direito, transformando o advogado, não em essencial à administração da justiça, mas em mero fantoche, conforme desejos dos demais sujeitos do processo.

Enfim, respeito à dignidade humana sempre é fundamental. Porém, as características constitucionais democráticas do Tribunal do Júri impedem a abstração retórica excessiva para conduzir a legislação infraconstitucional a bloqueio ao exercício defensivo. Portanto, sob qualquer viés de análise a que a questão seja submetida, reafirma-se a não aplicabilidade dos incisos do artigo 475 do Código de Processo Penal. 

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Sobre o autor
Adel El Tasse

Professor de Direito Penal em cursos de graduação e pós-graduação, professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná e no Curso Cers, mestre e doutor em Direito Penal, coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais e do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais e membro do Conselho de Direitos Humanos do Município de Curitiba.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

EL TASSE, Adel. A aplicabilidade limitada da lei Maria Ferrer ao tribunal do júri. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6738, 12 dez. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95381. Acesso em: 21 nov. 2024.

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