O Sucateamento das Forças Policiais pelos Olhos da Imprensa
Conforme BARROSO (BARROSO, Priscila Farfan. O Sentimento de Insegurança e a Armadilha da Segurança Privada: Reflexões Antropológicas a Partir de um Caso no Rio Grande do Sul. Revista Brasileira de Segurança Pública, São Paulo, v. 11, nº 2, ago./set., 2017, p. 148-163), “Falta de investimento financeiro nas instituições de segurança pública, tanto em relação ao pessoal quanto aos meios para cumprir seu trabalho”, bem como “baixos salários, condições precárias, falta de recursos materiais e armamento defasado” (BARROSO, Priscila Farfan. O Sentimento de Insegurança e a Armadilha da Segurança Privada: Reflexões Antropológicas a Partir de um Caso no Rio Grande do Sul. Revista Brasileira de Segurança Pública, São Paulo, v. 11, nº 2, ago./set., 2017, p. 148-163) são pautas presentes entre os profissionais do segmento da segurança pública.
Como rotineiramente vem sendo noticiado, o sistema de segurança pública do País beira ao colapso, seja pela frequente falta de integração entre as aludidas instituições elencadas no art. 144. da Constituição, seja em decorrência dos problemas relacionados aos insuficientes recursos financeiros da Pasta. Apenas para exemplificar uma das imperfeições do sistema, sabe-se que as Polícias Militares do Brasil, por diversas razões, inclusive de ordens cultural e financeira, não preservam satisfatoriamente o local de infração penal, ao passo que as Polícias Civis, também por vários motivos, não conseguem investir em rotinas e protocolos investigativos, o que faz com que o seu produto institucional (notadamente o inquérito policial) seja, de modo geral, pouco consistente, contribuindo, assim, para os baixos índices de elucidação delitiva com os quais convivemos no País.
[...] em se tratando da apuração de crimes [...] a polícia brasileira vem funcionando como se fosse uma grande firma de detetives privados, e os governantes e autoridades, como seus proprietários. Este talvez seja o principal fator de impunidade no Brasil, pois o criminoso sabe que a possibilidade de ser descoberto, incriminado com provas cabais e preso é remotíssima. (SILVA Jorge da. Criminologia Crítica: Segurança e Polícia. Rio de Janeiro: Forense Jurídica, 2008, p. 329-330)
Aliás, sob o aspecto financeiro, a carência abrange desde os equipamentos mais básicos – armas de fogo, munições, coletes balísticos, fardamentos, viaturas, materiais periciais etc. – ao efetivo existente nas instituições policiais. A título de ilustração, e de acordo com o levantamento realizado por veículo da grande imprensa junto às entidades de classe de 11 estados da Federação – os quais concentram 3.171 municípios –, no ano de 2017, 1.684 entes municipais estavam sem delegados de polícia, o que, em última análise, compromete a essência do trabalho das Polícias Judiciárias, notadamente o registro e a investigação das infrações penais, explicando, de certa maneira, o baixo índice de elucidação delitiva existentes no Brasil.
Em alguns casos, especialmente nas áreas rurais, moradores chegam a andar mais de 100 quilômetros para conseguir registrar um boletim de ocorrência, tirar o RG ou mudar a documentação do carro. Sem pessoal suficiente para investigar, crimes ficam sem solução e inquéritos se acumulam. A falta de policiais também traz uma série de problemas para os próprios delegados, que são obrigados a acumular mais de um posto, sem receber mais para isso, e a percorrer centenas de quilômetros para acompanhar ocorrências.
Os governos estaduais argumentam que algumas dessas cidades estão sem responsável pela Polícia Civil porque são muito pequenas. Afirmam que tentam organizar a distribuição dos profissionais de acordo com as regiões. Em pelo menos dois estados, Pernambuco e São Paulo, delegados relataram que a falta de investigação nas cidades pequenas levou grupos criminosos a apostarem em roubos a caixas eletrônicos.
Minas Gerais é o estado com mais cidades sem delegado, entre as que responderam. Dos 853 municípios mineiros, 607 não têm delegado, de acordo com o sindicato da categoria. Ao contrário de outros estados, que possuem institutos responsáveis pela emissão do RG e de documentos de veículos, em Minas o documento é impresso na delegacia. Quando não encontra um delegado, o morador precisa ir a outra cidade. (PRADO, Chico; DANTAS, Tiago. “Investigação Comprometida”. O Globo, País, 26/12/2017, p. 3)
Ainda de acordo com a mesma matéria, “dos 246 municípios de Goiás, 162 não têm delegados e o déficit atual, segundo a assessoria da Polícia Civil [de Goiás], é de 193 profissionais”. Da mesma forma, consoante os “dados fornecidos pelo diretor da Associação dos Delegados de Polícia do Ceará, não há delegados em 86 municípios dos 184 do estado”, o que, segundo a referida representação de classe, “prejudica o atendimento porque a população deixa de registrar ocorrência”; ademais, “quando o crime acontece, o delegado chega bem depois ao local e tem dificuldade até para encontrar testemunhas para ouvir depoimento”, fatores que, sem sombra de dúvida, comprometem fortemente aquilo que se denomina de investigação imediata, fundamental para o sucesso da apuração da autoria e materialidade delitiva (PRADO, Chico; DANTAS, Tiago. “Investigação Comprometida”. O Globo, País, 26/12/2017, p. 3).
O problema (carência de efetivo) repete-se no Piauí e no restante do País: “o presidente da Federação Nacional dos Delegados de Polícia Civil, Rodolfo Laterza, projeta um déficit de delegados de aproximadamente 6 mil profissionais em todo o país. Ele cita o Piauí, onde 160 delegados precisam dar conta do trabalho de 224 cidades” (PRADO, Chico; DANTAS, Tiago. “Investigação Comprometida”. O Globo, País, 26/12/2017, p. 3).
Um quadro semelhante é encontrado quanto às instalações prediais, viaturas e equipamentos necessários para o bom desempenho dos trabalhos afetos à Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. O cenário narrado na reportagem À Beira do Colapso (BOTTARI, Elenilce; TEIXEIRA, Fábio; HERINGER, Carolina. “À Beira do Colapso”. O Globo, 09/02/2018, p. 8) é digno de registro, principalmente em se tratando do estado que tem como capital a internacionalmente conhecida Cidade Maravilhosa, a segunda mais importante do País, porta de entrada do turismo no Brasil. A reportagem descreve como, no início de 2018, pessoas que chegavam para fazer registro de ocorrência criminal encontravam a delegacia do Engenho Novo, responsável por investigações no bairro e em outros adjacentes.
Dois cones foram colocados em frente a uma porta quebrada; cadeiras do saguão têm o forro rasgado. O banheiro masculino se encontra interditado, o feminino pode ser usado, desde que alguém segure uma maçaneta que não fecha. No mesmo horário, boletins de ocorrência são feitos na 22ª DP (Penha) graças ao comércio da área, que fez uma doação de papéis. Mas, do lado de fora, uma viatura chama a atenção: de tão carecas, os pneus mais parecem tiras de borracha lisa, e a lataria apresenta várias deformidades. (BOTTARI, Elenilce; TEIXEIRA, Fábio; HERINGER, Carolina. “À Beira do Colapso”. O Globo, 09/02/2018, p. 8)
Além de descrever o estado em que se encontra a delegacia, a reportagem também apurou dados sobre a situação financeira da corporação de Policia Civil:
A penúria da Polícia Civil é enorme. De acordo com dados do Sistema Integrado de Gestão Orçamentária, Financeira e Contábil do Rio de Janeiro (Siafe-Rio), em 2017, a corporação recebeu autorização para gastar somente R$ 12 milhões com manutenção de atividades operacionais e administrativas, apesar de a Lei Orçamentária ter previsto uma verba de R$ 23,3 milhões. Ainda assim, só conseguiu pagar metade dos serviços, e, por isso, começou este ano devendo R$ 6,4 milhões. (BOTTARI, Elenilce; TEIXEIRA, Fábio; HERINGER, Carolina. “À Beira do Colapso”. O Globo, 09/02/2018, p. 8)
Isso afeta não apenas o registro de ocorrências de crimes, mas também o trabalho da polícia técnico-científica:
[...] Entre as funções atribuídas à rubrica estava a elaboração de laudos de mortes violentas: foram no ano passado, registradas 6.731 no estado. Quem trabalha no setor se queixa da escassez de insumos fundamentais para as análises. Segundo um perito que pediu para não ser identificado, faltam luzes forenses e hastes plásticas capazes de indicar trajetos de projéteis (produtos bastante utilizados na investigação de casos de bala perdida), além de reagentes:
— O prédio do Instituto Médico-Legal está funcionando próximo ao colapso. A higiene é péssima, a recepção está com banheiros interditados. O setor de necropsia tem paredes, portas e pisos inadequados para a atividade fim. Há fissuras e placas descolando em várias salas, o que favorece a proliferação de bactérias. Portas feitas com compensado de madeira estão arrebentadas, mofadas e contaminadas por fluídos cadavéricos. Ar-condicionado e exaustão deficientes causam constate mau cheiro. Estamos também enfrentando carência de reagentes químicos, luvas, aventais, mangotes e máscaras faciais. Necropsias vêm sendo realizadas com facões de açougue, serrotes de serralheiro, conchas e facas de cozinha. Exames de detecção de projétil deixam de ser realizados porque os aparelhos de raios X são ruins. (BOTTARI; TEIXEIRA; HERINGER, 2018, p. 8)
A situação financeira não é melhor na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Conforme anota o Coronel PM Luis Cláudio Laviano, então Comandante Geral da PMERJ, “a falência do Estado se reflete na corporação” (ARAÚJO, Vera. “Convênios para Cessão de Policiais deram Fôlego à PM”. O Globo, 15/04/2018, p. 15, p. 15). Segundo dados relativos ao mês de fevereiro de 2018, levantados por NUNES et al. (NUNES, Marcos; SOARES, Rafael; ARAÚJO, Vera. “Tropa Será Convocada”. O Globo, 23/02/2018, p. 7), das 6.685 viaturas da Corporação, 1.838 estão fora das ruas aguardando manutenção. Invariavelmente, com menos viaturas nas ruas, o patrulhamento motorizado da Corporação fica comprometido, prejudicando, por conseguinte, o emprego dinâmico do policiamento ordinário.
Aliás, tal quadro financeiro no qual se encontram ambas as Polícias já foi, inclusive, diagnosticado pela equipe do General Braga Netto, Interventor Federal na área de segurança pública, conforme registra a reportagem abaixo:
As secretarias de Segurança (PM e Polícia Civil) e de Administração Penitenciária não têm recursos para novos investimentos. O dinheiro que o governo federal deve destinar para a intervenção no Rio não cobre nem mesmo as dívidas do ano passado (restos a pagar) da área de segurança. [...].
Um levantamento feito em fevereiro por assessores do General mostrou que as secretarias de Segurança (PM e Polícia Civil) e de Administração Penitenciária (Seap) não têm recursos para novos investimentos. As duas pastas estão sob o controle do interventor. Na ponta do lápis, as dívidas incluem R$ 1,6 bilhão em restos a pagar (dívidas) de 2016 e 2017 e cerca de R$ 1,5 bilhão de gastos previstos para este ano. [...].
– A falta de recursos é o grande gargalo enfrentado pela segurança pública no estado e um problemão para a intervenção federal. Temos, por exemplo, quatro mil policiais concursados que não podem ser chamados por falta de dinheiro – disse uma fonte ouvida pelo GLOBO. (WERNECK, Antônio; TEIXEIRA, Fábio; PEREIRA, Paulo Celso. “General quer 3,1 bi, mas Temer promete liberar apenas um terço”. O Globo, 20/03/2018, p. 9)
Apesar de ser evidente que o enfrentamento do problema da criminalidade e da violência no Brasil requer muito mais do que uma simples dotação orçamentária capaz de financiar a segurança pública, é preciso que o Estado brasileiro compreenda a importância de se dotar as forças de segurança pública dos recursos necessários para o adequado cumprimento de suas atribuições constitucionais e legais, sem os quais os problemas detectados pelo Gabinete de Intervenção Federal no Rio de Janeiro – muitos dos quais também ocorrem em outros estados da Federação – não serão solucionados, retroalimentando o emprego casuístico das Forças Armadas em matéria de garantia da lei e da ordem (GLO).
Com efeito, um orçamento condizente com a relevância da área é fundamental para melhorar o serviço público prestado pelas Polícias do Brasil, capacitando-as efetivamente para a preservação da ordem do Estado Democrático. Precisamos evoluir quanto a tal quesito, inclusive refletir sobre a possibilidade de conferir autonomia financeira às Polícias (Federal, Civil, Militar etc.), exatamente como acontece com outras instituições que compõem o Sistema de Justiça Criminal, tais como o Ministério Público e o Poder Judiciário, ambos igualmente comprometidos com a ordem do Estado Democrático.
Considerações Finais
Quando se fala em segurança pública, o primeiro pensamento que se tem está relacionado à questão da violência, uma das principais causadoras da sensação de insegurança nos grandes centros urbanos. A violência urbana é um dos problemas críticos com os quais diferentes países precisam lidar em suas políticas públicas. Ela atinge, nos dias de hoje, a maioria das cidades brasileiras e se reflete em diferentes áreas da vida dos cidadãos, como trabalho, lazer, locomoção etc.
O trabalho discutiu os conceitos de segurança pública e de ordem pública, apresentou o conceito de segurança pública pela perspectiva da Carta Magna, que a entende como um direito social e um dever do Estado, e que como direito e responsabilidade de todos cabe a ela preservar a ordem pública e a integridade das pessoas e do patrimônio. Logo, estes conceitos não se explicam de forma isolada, visto que se qualificam por uma relação de causalidade.
A Constituição Federal elenca quais são os órgãos que integram o sistema constitucional da segurança pública: Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal (inexistente na atualidade), Polícias Civis, Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, e atribui aos municípios autonomia para criarem Guarda Municipal de acordo com suas necessidades. Para formar um sistema de segurança pública, é preciso que estes órgãos interajam em torno de um objetivo comum.
Em seu art. 142, a Constituição esclarece que as Forças Armadas se destinam à defesa da pátria e garantia dos poderes constitucionais e, diante da necessidade, a garantia do cumprimento das leis e a preservação da ordem pública. Mas foi mostrado que, mesmo diante da possibilidade de uso das instituições militares em missões de segurança pública, o uso constante das Forças Armadas em GLO, como vem acontecendo no país há algum tempo, expõe a emergência de se debater sobre a necessidade de modernização das forças policiais como forma de se diminuir essa constância.
Por fim, diversas matérias publicadas em veículos de comunicação de grande circulação no país mostram como os órgãos que integram a segurança pública no Brasil vêm passando por um longo processo de sucateamento e se tornando incapazes de cumprir de forma efetiva as atribuições que lhes foram atribuídas pela Constituição Federal. Como consequência o que temos é um sistema de segurança pública frágil e que não consegue apresentar resultados satisfatórios para a população.