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Uma aborgadem principiológica do reconhecimento jurídico da multiparentalidade exercida por um ex-padrasto ou uma ex-madrasta

03/02/2022 às 11:45
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Discute-se o reconhecimento jurídico da paternidade socioafetiva exercida por um ex-padrasto ou ex-madrasta a partir de uma abordagem principiológica.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho foi motivado pela necessidade de uma discussão principiológica da multiparentalidade, em especial, no caso de um ex-padrasto ou ex-madrasta que tenha interesse em ter reconhecida a parternidade socioafetiva em relação ao filho da sua ex-esposa ou ex-esposo, com quem tenha convivido e desenvolvido uma relação pautada no afeto.

O assunto ganha grande importância diante das mudanças sociais que se refletem nas novas configurações familiares. Com a evolução coletiva ocorrida nas famílias, estas passaram a ter função acessória nas conquistas existenciais e afetivas dos seus membros. Famílias recompostas, formadas por cônjuges e filhos concebidos durante outras uniões surgiram e é preciso que a legislação reconheça a existência concreta da multiparentalidade, a fim de conferir segurança jurídica a esses cenários.

Em determinados casos, é recomendável a coexistência das paternidades socioafetiva e biológica, quando pautadas no afeto e no princípio do melhor interesse da criança ou do adolescente, dando ensejo a certificação da multiparentalidade.

2 O PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE

A afetividade exerce a função de estabilizar as relações familiares, muito além de laços consanguíneos, a afetividade cria relações íntimas entre pessoas, trazendo consequências jurídicas.

Ainda que não esteja consagrada expressamente na Carta Magna e no Código Civil, a afetividade está intimamente ligada com a proteção conferida a entidade familiar pela Constituição e pela consolidação legal do Direito de Família.

A Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, Lei Maria da Penha, ao configurar as hipóteses de violência doméstica e familiar contra a mulher, utiliza a palavra afeto, além da exigência de convivência, independentemente de coabitação, para qualificar a relação íntima que enseja a sua aplicação.

Ao discorrer sobre o Princípio da Afetividade, Maria Berenice Dias (2016, p. 656) leciona que:

O afeto, elemento identificador das entidades familiares, passou a servir de parâmetro para a definição dos vínculos parentais. Se de um lado existe a verdade biológica, de outro lado há uma verdade que não mais pode ser desprezada: a filiação socioafetiva, que decorre da estabilidade dos laços familiares. (Manual de Direito das Famílias).

No caso de um ex-padrastro ou ex-madrasta, que tenha convivido com o adotante, há a possibilidade de manutenção do vínculo amoroso pelo exercício da paternidade socioafetiva pelo ex-padrasto ou ex-madrasta que pretenda continuar acompanhando o seu ex-enteado.

Quando, com o fim de um casamento ou união estável, o amor e o zelo entre enteados e padrastos permanecem, os operadores do direito devem atuar no sentido de garantir que essas relações de afeto sejam perpetuadas, se, nesse sentido também for o melhor interesse da criança ou do adolescente.

3 A MULTIPARENTALIDADE E A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

Ainda não positivada na legislação pátria, a multiparentalidade e a Paternidade Socioafetiva são discutidas em múltiplos processos nos diversos tribunais de justiça do nosso país. Em setembro de 2016, durante julgamento sobre a repercussão geral da paternidade socioafetiva, no Recurso Extraordinário nº 898.060, publicado no informativo 849, o STF fixou a seguinte tese: "A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios".

Tal decisão, emanada da máxima corte do nosso país, motiva a multiplicação de ações nas quais se busque garantir a multiparentalidade, na medida em que reconhece a possibilidade de coexistência da paternidade biológica e socioafetiva. Para Paulo Lobo (2016) comentou a decisão:

Ela provocou verdadeiro giro de Copérnico. Até então, no conflito entre parentalidade socioafetiva e origem genética, esta não podia prevalecer sobre aquela (notadamente nos casos de 'adoção à brasileira'), máxime quando o móvel fosse patrimonial ou econômico, notadamente participar da sucessão de genitor biológico afortunado. A rejeição a essa pretensão já tinha sido objeto de antigo precedente do STF, em 1970, tendo sido relator o ministro Aliomar Baleeiro. Doravante, as discussões sobre a origem biológica e a força desta para afastar a parentalidade socioafetiva perderam consistência", disse.

Situações de múltiplas parentalidades são corriqueiras, como exemplificam Matos e Hapner (2016):

() Do mesmo modo, muitos núcleos familiares se recompõem e as figuras das madrastas e padrastos são realidades cada vez mais presentes. Assim, os papéis de paternidade e de maternidade podem ser exercidos por vários, simultânea ou sucessivamente independentemente de laços de sangue, de identidade ou orientação sexual.

Tendo em vista as implicações jurídicas da afetividade, que como já foi explanado, é princípio do Direito de Família, e, diante do reconhecimento pelo STF de que a paternidade biológica não anula a paternidade socioafetiva, é possível que haja o exercício da paternidade ou da maternidade por mais de uma pessoa.

A ausência previsão legal não pode impedir que os direitos dos filhos socioafetivos sejam garantidos. Nessa senda, foi editado o Provimento nº 63 do Conselho Nacional de Justiça que dispõe sobre o reconhecimento e averbação da paternidade socioafetiva. No art. 11 do provimento, existe a vedação de exposição da origem da filiação no documento:

Art. 11. O reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva será processado perante o oficial de registro civil das pessoas naturais, ainda que diverso daquele em que foi lavrado o assento, mediante a exibição de documento oficial de identificação com foto do requerente e da certidão de nascimento do filho, ambos em original e cópia, sem constar do traslado menção à origem da filiação (grifamos).

Assim, não só a verdade biológica goza de proteção, mas também as relações construídas e pautadas na afetividade.

4 A MULTIPARENTALIDADE COMO CONSEQUÊNCIA DA DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL E DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE

Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Homem reconheceu no seu art. 25, item II que a maternidade e a infância têm o direito a cuidados e assistências especiais. Tal fato gerou uma mobilização social provocada pelas entidades governamentais a fim de conferir tratamento distinto às crianças e aos adolescentes em razão da fragilidade e das características físicas e psicológicas inerentes a essas pessoas em desenvolvimento.

Os primeiros contornos da Doutrina da Proteção Integral e do Princípio do Melhor Interesse foram inseridos em âmbito mundial pela Convenção Internacional sobre Direitos da Criança e do Adolescente, de 1959. As crianças e os adolescentes passaram de objeto para sujeitos de direitos, cabendo a cada nação signatária direcionar as suas políticas ao atendimento de seus interesses. A Doutrina da Proteção Integral e o Princípio do Melhor Interesse foram estabelecidos no princípio II, que dispõe que:

A criança deve gozar de proteção especial, e a ela devem ser dadas oportunidades e facilidades, pela lei e outros meios, para permitir a ela o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social de um modo saudável e normal e em condições de liberdade e dignidade. Na edição de leis para esse propósito, o melhor interesse da criança deve ser a consideração superior.

No âmbito do direito internacional das Américas, destaca-se a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica, 1969), ratificada pelo Brasil através do Decreto n. 678/92, no qual o dever de proteção integral da infância está exposto no art. 19, nos seguintes termos: Toda criança tem direito às medidas de proteção que sua condição de menor requer, por parte da família, da sociedade e do Estado.

No plano interno, a Constituição Federal de 1988 proclamou a Doutrina da Proteção Integral e o Princípio do Melhor Interesse, firmando que:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227, caput).

Inspirado nos documentos internacionais aprovados com ampla concordância da comunidade das nações e na Constituição da República, o ECA, em oposição ao direito tutelar do menor do Código de Menores, veio proteger as crianças e os adolescentes integralmente, como afirma já em seu artigo 1º esta lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. E os arts. 3º a 5º, tratam do Princípio do Melhor Interesse:

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes a pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

Entende-se a doutrina da proteção integral como a política de efetivação de direitos de cidadão imaturos, realizada através de ações específicas e prioritárias, em razão de encontrarem-se em desenvolvimento, como forma de assegurar que a transição para a vida adulta seja saudável e plena. Quanto às características deste sistema de proteção, GONÇALVES e ALMEIDA (in GRACIOLA et. al., 2010 p. 468) sintetizam assim:

São características da doutrina da proteção integral a universalização do atendimento, o caráter preventivo, a consideração da criança e do adolescente como sujeitos de direito em condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, o reconhecimento da titularidade de todos os direitos fundamentais dos adultos e de mais alguns direitos fundamentais especiais que atendam e respeitem o processo de crescimento. Por expressa determinação constitucional, o atendimento a esses direitos deve se dar com prioridade absoluta.

De acordo com o Princípio do Melhor Interesse, todas as ações devem ser tomadas no sentido de garantir o que é melhor para a criança ou o adolescente.

Percebe-se que a tutela jurídica antes conferida às crianças foi atualizada sob a ótica dos direitos humanos, atribuindo-lhe dignidade e respeito, em contraponto a doutrina do menor em situação irregular que historicamente reforçou a exclusão social.

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No caso sub examine, a permanência do ex-padastro no grupo familiar da criança é no sentido da realização da proteção integral e em atendimento ao maior interesse do infante, haja vista a relação de afetividade entre eles, matendo o genitor e o ex-padastro na condição de pais, com o reconhecimento da pluriparentalidade.

5 DA INEXISTÊNCIA DE PREVALÊNCIA DA PATERNIDADE BIOLÓGICA SOBRE A SOCIOAFETIVA

Ao julgar o RE nº 898.060, citado anteriormente, o STF, reconhecendo a Repercussão Geral da questão, reafirmou o valor jurídico da afetividade, conferiu o mesmo status às paternidades biológicas e socioafetivas e consolidou a possibilidade do reconhecimento jurídico da multiparentalidade.

Não é necessário excluir um ente familiar para incluir outro juridicamente quando demonstrado que ambos exercem o poder familiar, devendo prevalecer a multiparentalidade. Neste sentido, já decidia o TJRS:

Nem a paternidade socioafetiva e nem a paternidade biológica podem se sobrepor uma à outra. Ambas as paternidades são iguais, não havendo prevalência de nenhuma delas porque fazem parte da condição humana tridimensional, que é a genética, afetiva e ontológica. (TJRS, Ac. 8ª Câm., Ape Cív. 70029363918, rel. Des. Claudir Fidélis Faccenda, j.7.5.09).

Ação de adoção. Padrasto e enteada. Pedido de reconhecimento da adoção com a manutenção do pai biológico. Multiparentalidade. Observada a hipótese da existência de dois vínculos paternos, caracterizada está a possibilidade de reconhecimento da multiparentalidade. Deram provimento ao apelo. (TJRS, AC 70064909864, 8.ª C. Cív., Rel. Des. Alzir Felippe Schmitz,j. 16/07/2015).

Em famílias pluriparentais, os filhos gozam de proteção por parte de mais pessoas. Nada mais condizente com os princípios mais caros do Direito de Família que o reconhecimento da pluriparentalidade, biológica e socioafetivas, seja feito sem imposição de hierarquia entre elas, quando nos dois casos habitem a afetividade e o melhor interesse da criança ou do adolescente.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O melhor interesse da criança ou adolescente é a convivência com que pode proporcionar afeto. O pluralismo das relações familiares precisa ser reconhecido e respeitado. O posterior rompimento de uma relação amorosa com o genitor ou genitora de uma criança ou adolescente não podem justificar a descontinuidade do convívio e da prestação material, caso esse seja o melhor interesse para a criança ou adolescente, reflita o Princípio da Proteção Integral e represente as intenções nobres de um ex-padrasto ou uma ex-madrasta, privilegiando, assim, a máxima consideração dos direitos dos envolvidos.

7 REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em: 20 de agosto de 2021.

_______. Supremo Tribunal Federal. RE 898060. Rel. Ministro Luiz Fux. Diário de Justiça nº 209, Brasília, 30 set. 2016.

_______. Conselho Nacional de Justiça. Provimento nº 63 de 2017. Disponível em: < https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2525>. Acesso em: 18 de agosto de 2021.

________. Decreto nº 678 de 1992.
Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em: 18 de agosto de 2021.

______. Lei 8069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 18 de agosto de 2021.

_______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 18 de agosto de 2021.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 11 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

GRACIOLA, Andrea Boari; ANDREUCCI, Ana Cláudia Pompeu Torezan; FREITAS, Aline da Silva (org.). Estatuto da Criança e do Adolescente: Estudos em comemoração aos 20 anos. São Paulo: LTr, 2010.

LÔBO, Paulo. Jurista comenta repercussão da tese sobre multiparentalidade fixada pelo STF. IBDFAM. 28 set. 2016. Disponível em: < https://ibdfam.org.br/noticias/6123/Jurista+comenta+repercuss%C3%A3o+da+tese+sobre+multiparentalidade++fixada+pelo+STF >. Acesso em: 18 de agosto de 2021.

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em : <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em 18 de agosto de 2021.

____. Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança. Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/crianca.htm.> Acesso em: 18 de agosto de 2021.

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. AC 70029363918. Rel. Des. Claudir Fidélis Faccenda. Diário da justiça, Porto Alegre, 07 jul. 2009.

___________________. Tribunal de Justiça. AC 70064909864. Rel. Des. Alzir Felippe Schmitz. Diário de justiça, Porto Alegre, 22 jul. 2015.

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Sobre a autora
Luiza Nogueira Souza

Advogada, mestranda em Direito e Justiça Social pela Universidade Federal do Rio Grande (PPGDJS/FURG), pós-graduada em Direito Civil pela PUC/MG e em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-UNIDERP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Luiza Nogueira. Uma aborgadem principiológica do reconhecimento jurídico da multiparentalidade exercida por um ex-padrasto ou uma ex-madrasta. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6791, 3 fev. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95998. Acesso em: 7 out. 2024.

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