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Teoria do bem jurídico e limites à intervenção penal

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08/03/2022 às 18:30

Resumo:


  • O conceito de bem jurídico é analisado desde os ideais iluministas até as concepções constitucionais contemporâneas, abordando a hipertrofia da tutela penal e modelos alternativos à criminalização.

  • A proteção ao bem jurídico constitucional é destacada como instrumento de legitimação da criminalização, baseando-se nos valores constitucionais e nos princípios da necessidade e lesividade.

  • A expansão do direito penal para além de suas fronteiras tradicionais é discutida, apontando para a necessidade de alternativas à tutela penal, como o Direito de Intervenção e os modelos de contraordenações em outros países europeus.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Analisa o conceito de bem jurídico como instrumento de legitimação e conformação do poder de punir estatal, face à expansão do Direito Penal para além de suas fronteiras jurídico-dogmáticas clássicas.

RESUMO: Este artigo analisa o conceito de bem jurídico como instrumento de legitimação e conformação do poder de punir estatal, face à expansão do Direito Penal para além de suas fronteiras jurídico-dogmáticas clássicas. Inicia-se com um apanhado histórico sobre a teoria do bem jurídico, desde a sua origem nos ideais iluministas até as suas contemporâneas concepções constitucionais. Em seguida, aborda-se o fenômeno da hipertrofia da tutela penal e os seus reflexos em relação ao conceito de bem jurídico. Por fim, discorre-se sobre os modelos alternativos à criminalização e à penalização, especialmente aqueles pautados nas teorias do Direito Penal Secundário e do Direito de Intervenção, experimentados pelos sistemas jurídicos alemão, italiano e português e que podem servir de contributo ao direito brasileiro.

PALAVRAS-CHAVE: tutela penal; expansão; bem jurídico; Constituição; Direito de Intervenção.

SUMÁRIO: 1 Princípio da proteção ao bem jurídico 2 Bem jurídico constitucional 3 Expansão do direito penal 4 Alternativas à tutela penal 5 Conclusão.


1 Princípio da proteção ao bem jurídico

A construção doutrinária do conceito de bem jurídico é fruto de intenso labor acadêmico, que se estende por mais de dois séculos[1] e ainda hoje suscita grande interesse dos estudiosos do Direito Criminal, sendo objeto de diversas investigações jurídico-científicas centradas em aspectos dogmáticos e político-criminais[2].

No que toca às teorias de maior interesse deste artigo, traremos à colação as concepções de bem jurídico defendidas por alguns dos principais penalistas europeus, partindo do século XIX, com a abordagem ilustrada de Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach[3], para quem o Direito Penal tem como missão tutelar, com ameaça de pena, os direitos subjetivos individuais reconhecidos pelas normas jurídicas.

Apresentando um contraponto à essa concepção de Feuerbach, a teoria do bem jurídico-penal de Johann Michael Franz Birnbaum[4] sustenta que o Direito Penal não tem como objetivo tutelar direitos subjetivos, mas sim bens materiais e imateriais que são objetos desses interesses, pois a conduta delituosa em si não tem o condão de vilipendiar diretamente o direito consagrado pelo sistema jurídico.

Com efeito, a abordagem proposta por Birnbaum, de transferir a tutela penal do eixo subjetivo do indivíduo para o eixo objetivo dos bens jurídicos, conferiu ao Direito Penal contornos mais liberais e impulsionou estudos sobre o potencial de lesividade e a inadequação social das condutas tidas como penalmente relevantes[5].

Nesse mesmo contexto, o conceito de objeto de proteção da norma penal na Escola Clássica italiana também se apoiou em bases iluministas, como se pode constatar em escritos de Gian Domenico Romagnosi, Pellegrino Rossi e Francesco Carrara, citados por Luigi Ferrajoli[6].

Contudo, em uma fase seguinte de forte influência da escola histórica e do positivismo jurídico, Karl Ludwig Lorenz Binding[7] constrói a tese de que os bens jurídicos são uma criação do Direito e estão vinculados a um determinado modelo normativo, cabendo, assim, ao legislador eleger quais objetos de interesse merecem tutela da lei penal.

Franz Eduard Ritter von Liszt[8], por sua vez, sustenta que o conteúdo material do ilícito não é criado pela norma, mas sim pela vida e é escolhido pelo legislador, que manifestará no texto legal a incompatibilidade ético-social da conduta tida como antijurídica, delimitando, assim, as fronteiras da punibilidade.

Nesse caminhar histórico, o estudo do bem jurídico ingressou em nova fase no início do século XX, sob a influência dos penalistas alemães neokantianos, quando então surge um movimento de aproximação do conceito de bem jurídico à finalidade da norma penal incriminadora, reduzindo, de certa forma, o seu papel de instrumento de contenção da atividade estatal de criminalização[9].

Entretanto, há de se reconhecer que nessa fase houve significativo reforço da associação do bem jurídico aos valores ético-sociais, distanciando-o de suas anteriores bases naturalísticas e o concebendo, nas palavras de Edmund Mezger[10], como uma figura ideológica influenciada por esses valores, mas não os transformando ainda em objeto de estudo.

Após a Segunda Guerra Mundial buscou-se superar a citada perspectiva neokantiana de bem jurídico e se redefinir o seu conteúdo, sob uma perspectiva funcional, refletida nos estudos de Hans Welzel[11], para quem o bem jurídico é um bem vital para a comunidade ou para o indivíduo, que por sua significação social é protegido juridicamente.

Esse mesmo pensamento é verificado nos estudos de Hans-Joachim Rudolphi[12], que adota uma linha de análise teórica que vai além daquela defendida por Welzel e que reflete uma conotação constitucional de bem jurídico. Afirma ele que o bem jurídico não pode ser concebido como algo que existe por si mesmo (direito, interesse, objeto ou valor abstrato), mas sim contextualizado nas próprias funções sociais nele refletidas e que são fruto da decisão valorativa contida na Constituição, sendo estas as verdadeiras unidades funcionais constitutivas da vida em sociedade.

Em Günter Jakobs[13] essa abordagem funcionalista ganha outro viés,no sentido de que ele passa a conceber a tutela penal como instrumento normativo de preservação das relações das pessoas com os objetos de interesse, ao passo que estes seriam unidades funcionais valiosas, potenciais ou participativas, isto é, que as colocariam em condições de possibilidade de participar da interação social, e nisso, para o penalista da Escola de Bonn, residiria a sua importância para o sistema jurídico.

Vê-se que na teoria de Jakobs o Direito Penal não tem por objeto a tutela direta de bens jurídicos, mas sim a proteção de vigência da norma e de seu conteúdo proibitivo. O ilícito penal seria, portanto, a conduta de desafiar a norma positivada, o que implicaria na imposição de pena como forma de eliminar esse tipo de afronta à ordem jurídica instituída[14].

Santiago Mir Puig[15], contudo, aponta o equívoco de Jakobs em buscar inverter a lógica político-criminal do objeto de proteção do Direito Penal e conceber a norma incriminadora como um fim em si mesma e não como instrumento de proteção de valores, o que resulta na redução da função da tutela penal à exclusiva manutenção do direito positivado.

Nesse contexto, outra visão que merece destaque é a de Knut Amelung[16], que, pautado no enfoque jurídico da teoria dos sistemas sociais desenvolvida por Niklas Luhmann, entende o Direito Penal como principal instrumento de proteção do subsistema de normas contra fatos de alta nocividade (anomalias sistêmicas), que põem em perigo a funcionalidade, a existência e a conservação da sociedade e o seu inerente sistema global de interações, refletindo uma construção funcionalista sistêmica que se aproxima muito àquela defendida por Jakobs.

Por outro lado, o funcionalismo teleológico, ou moderado, de Claus Roxin[17]concebe os bens jurídicos como"[...] pressupostos indispensáveis para uma pacífica e livre convivência dentro do Estado, em que os direitos fundamentais sejam respeitados.Assim, o Direito Penal não pode buscar punir condutas que afrontam exclusivamente a moral ou os tabus sociais,ou seja, que não resultam em ameaça concreta ou lesão a bens jurídicos de terceiros; e a intervenção penal também não pode se valer de [...] preceitos penais simbólicos carentes de um concreto efeito de proteção jurídica".

Por fim, a abordagem de Winfried Hassemer[18] sobre o bem jurídico, influenciada por fatores sociológicos,destaca-se por levar em consideração a lesividade social para identificar um comportamento como merecedor de repressão penal. Para o mestre de Frankfurt, a análise desse fator deve considerar a frequência em que ocorre o comportamento que se tem por intolerável, o grau de importância da preservação do objeto que se pretende tutelar e a intensidade da ameaça contra ele praticada; a individualização do bem jurídico deve, portanto, levar em conta não a sua posição objetiva, mas sim a sua valoração subjetiva, considerando as variantes dos contextos sociais nos quais ele aparece.

2 Bem jurídico constitucional

Todavia, nas últimas décadas, fazendo frente às dificuldades encontradas pelas teorias até então desenvolvidas, de imprimir concretude ao objeto de proteção da norma penal, têm ganhado força as concepções constitucionais de bem jurídico.

É certo que, nos modernos Estados Democráticos de Direito, a escolha política dos valores de maior importância para a sociedade se dá durante a construção do texto constitucional, pautada em referenciais ético-sociais e humanístico-universais, de forma a incorporar estes valores na ordem jurídica estabelecida, com status de direitos fundamentais, dotados de força normativa e eficácia jurídica frente aos comportamentos de entes públicos e privados[19].

Conforme destaca Manuel da Costa Andrade[20] é "[...] a Constituição que define, propõe e impõe a constelação de valores ou interesses susceptíveis de integrar o sistema dos bens jurídico-penais e, como tais, servir de referentes teleológico-materiais das incriminações a pôr de pé pelo legislador ordinário".

Portanto, a legitimidade da criminalização de condutas deve se apoiar nos princípios fundamentais previstos explícita e implicitamente na Constituição, pois são eles que instrumentalizam a construção de um sistema punitivo justo e equilibrado, impedindo, com isso, o sacrifício do valor maior da dignidade humana[21].

Para Luigi Ferrajoli[22], a prevalência dos bens jurídicos fundamentais como referenciais constitucionais para o Direito Penal impõe a observância dos princípios da necessidade e lesividade como instrumentos limitadores da atividade estatal de criminalização e impulsiona a descriminalização de tipos penais que, injustificadamente, persistem em permanecer incrustados nas legislações penais contemporâneas.

Com efeito, esse caráter limitador resulta em balizas de cunho: quantitativo, que deslegitimam a existência de tipos penais de bagatela, por não justificarem a existência de um processo-crime e a imposição de pena (por exemplo as contravenções penais e os delitos punidos exclusivamente com sanção pecuniária); qualitativo, que restringem a tutela penal aos ataques lesivos a pessoas de carne e osso e não a entes abstratos; e estrutural, que afastam a criação de tipos penais de atentado e de perigo abstrato ou presumido[23].

Nessa linha, Luiz Luisi[24]ressalta que as teorias do bem jurídico-constitucional se desenvolvem francamente na Itália, donde sobressaem os estudos de Francesco Angioni, Enzo Musco e Francesco Palazzo, os quais, sob a influência direta de Franco Bricola, defendem que os bens constitucionais não servem apenas de limite à criminalização, mas também e principalmente como fundamentos da própria existência da norma penal.

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Destaca-se também, dentre esses estudos, o escólio de Massimo Donini[25], para quem a eleição de bens jurídicos pelas Constituições representa uma condicionante existencial do Direito Criminal e estabelece um norte referencial para o exercício do jus puniendi estatal, que não pode ser desviado.

Esse mesmo penalista italiano, ainda apoiado nas lições de Bricola, sustenta que essa posição permite que se chegue a respostas juridicamente legítimas sobre a finalidade da pena, sobre quais interesses devem ser protegidos pela norma penal e contra qual nível de agressão ou dano ela se importará; quais os critérios a serem utilizados na distinção entre os ilícitos penais, civis e administrativos, qual o âmbito de incidência do Direito de Contraordenações e quais matérias podem ser deixadas à disciplina de atos normativos infralegais. Ao responder a todas essas questões, a Constituição traça uma verdadeira imagem positiva de como o crime deve ser diferenciado de outros ilícitos[26].

Vê-se, portanto, que o conceito de bem jurídico-constitucional permite que se livre os sistemas penais contemporâneos de excessos gerados por movimentos punitivistas, que desvirtuam a essência dos valores constitucionais e abrem portas ao arbítrio e às violações de direitos fundamentais.

O Direito Penal, assim, consagra-se como a ultima ratio[27]do sistema jurídico e não pode ser utilizado de forma indiscriminada, principalmente como exclusiva ferramenta simbólica de coerção social. 

3 Expansão do direito penal

A sociedade pós-industrial, globalizada e caracterizada pelo incremento dos riscos[28], em contraprestação à busca acelerada por produção de riqueza, tornou mais intensa a sensação de insegurança e tem impulsionado a ampliação do âmbito de incidência do Direito Penal para além de suas fronteiras tradicionais de proteção de bens jurídicos individuais, conforme anteriormente explanado.

Convencionou-se chamar esse fenômeno de hipertrofia ou expansão do Direito Penal moderno, o que vem sendo estudado desde o final da década de 1970. Contudo, foi em meados da década de 1990 que se atingiu o ápice dos debates jurídico-acadêmicos sobre o tema, com trabalhos inovadores produzidos em diversas universidades europeias.

Em uma pertinente abordagem sobre os fatores que tem promovido essa constante expansão, Hassemer[29]destaca que os cidadãos, nas complexas sociedades de risco, quando tem que se posicionar politicamente sobre questões internas de segurança, são confrontados com a existência de uma imensa gama de problemas, [...] que assumem qualidades ameaçadoras muito específicas: insegurança da moeda, catástrofes naturais, violência entre crianças e jovens, queda social inevitável, pobreza na velhice, migração agressiva, terrorismo, rios de droga.

Essa demanda exacerbada por proteção faz com que se aceite que o Estado adote uma postura vigilante e cada vez mais reguladora da atividade privada. Os mecanismos de intervenção estatal que visam neutralizar os riscos sociais passam a conferir ao Direito Penal uma feição nitidamente administrativa[30], na configuração de um verdadeiro estado de polícia em relação às liberdades públicas.

Para Jesús-María Silva Sánchez[31]a modificação da estrutura e do conteúdo dos tipos penais, com a antecipação da barreira de proteção e a introdução de novos interesses passíveis de tutela criminal, foi a primeira expressão dessa expansão, promovendo a transição do modelo de delitos de lesão a bens individuais para o modelo de perigo abstrato e, por último, a tutela de interesses transindividuais.

Desse modo, duas das características marcantes do expansionismo Penal são a busca por punição antes mesmo da ocorrência de lesão ou ameaça concreta de lesão a bens jurídicos e a flexibilização de garantias fundamentais, com o objetivo de promover prevenção de riscos, utilizando o ser humano como meio para atingir o fim de coagir a sociedade a se abster da prática de determinadas condutas eleitas pelo legislador como perigosas.

Serena Ucci[32] alerta para o fato de que a expansão desmedida do Direito Penal é prejudicial em termos de eficácia, visto que o poder punitivo, quando exposto a um número excessivo de violações, às quais deixa de responder, acaba enfraquecido; e complementa dizendo que o elevado número de penas passíveis de imposição, e sobretudo em relação a fatos de menor importância, faz com que a sanção penal perca o seu caráter de censura social extraordinária, com a consequente diminuição da força de convencimento do juízo de desvalor penal que ela deve traduzir.

4 Alternativas à tutela penal

As críticas que vêm sendo tecidas há décadas sobre a expansão da tutela penal para além de suas bases dogmáticas clássicas serviram, e ainda servem, de fundamento para a construção de teorias que buscam oferecer alternativas a ela[33], todas analisando esse fenômeno sob óticas variadas, fundadas no funcionalismo, no garantismo ou na teoria do bem jurídico, resultando em propostas consistentes de solução à crise do moderno Direito Penal.

Iniciaremos com a proposta defendida por Hassemer[34] de se estruturar um ramo do Direito apartado do Direito Criminal e vocacionado a tratar das grandes perturbações sociais atuais", que ele denominou de Direito de Intervenção.

A abolição de tipos penais que tutelam interesses outros, que não aqueles bens jurídicos clássicos do Direito Penal, seria o primeiro passo para se deslocar o foco da tutela estatal para o âmbito desse Direito de Intervenção.

Contudo, a problemática que se apresenta em relação à proposta de Hassemer é a de construção das bases teórico-dogmáticas desse novo ramo do Direito e a dificuldade de se definir os seus principais traços distintivos em relação ao próprio Direito Penal e ao Direito Administrativo.Critérios quantitativos, qualitativos e mistos são utilizados para estabelecer esses pontos de distinção e de intersecção, mas ainda não se mostraram claros o suficiente nos diversos estudos desenvolvidos sobre o tema.

Em linhas gerais, o Direito de Intervenção se assentaria em uma atuação preventiva, orientada pelo perigo e não pelo dano, com vedação à imposição de pena privativa de liberdade, dispensa de mecanismos de imputação pessoal e flexibilização de garantias processuais[35]. Também se fundaria em objetivos funcionais, no sentido de servir como meio de preservação do sistema jurídico-normativo, sem adentrar na seara de proteção de valores ético-sociais típicos da intervenção do Direito Penal.

A sanção não privativa de liberdade (coima, restrição de direitos, etc.) seria uma das consequências da violação à norma de intervenção, mas o caráter eminentemente preventivo desse novo ramo do Direito indicaria a construção de um conjunto normativo voltado principalmente à gestão e redução de riscos, através de ferramentas de monitoramento e conformação de atividades, a exemplo dos modernos programas de compliance.

Para Bernad Schünemann[36], a proposta apresentada pelos juristas da Escola de Frankfurt exige uma ampla abolição do moderno Direito Penal e, na sua visão, parece propor o deslocamento desses ilícitos, e a regulamentação da atividade de prevenção das condutas geradoras de riscos, para uma espécie de Direito de Polícia, o que não nos parece corresponder à ideia original de Hassemer.

Alguns modelos desenvolvidos em países Europeus sim, ao nosso ver, aproximam-se muito das características descritas e teorizadas por Hassemer sobre o Direito de Intervenção. Destacam-se, dentre eles, o Direito de Contraordenações alemão (Ordnungswidrigkeiten), o italiano (Diritto Punitivo Amministrativo) e o português (Direito de Contra-Ordenações), influenciados diretamente pelo primeiro e impulsionados por movimentos de despenalização e descriminalização iniciados no pós-Segunda Guerra Mundial.

Os traços característicos marcantes dos modelos de contraordenações são: a sua integração ao conceito de Direito Penal em sentido amplo, mas com distinções materiais[37] entre o Direito Penal clássico e o Direito Penal secundário[38]; a instrumentalização por órgãos de natureza administrativa, que recebem autorização legislativa para atuarem na formalização dos processos e na punição das infrações; e a possibilidade de aplicação de sanções não privativas de liberdade (basicamente de natureza pecuniária), impostas com a observância de garantias processuais mínimas e sujeitas ao controle jurisdicional.

Podemos vislumbrar essas características no modelo alemão de contraordenações (Ordnungswidrigkeiten), que foi inaugurado em 1949, com a promulgação de uma lei versando sobre Direito Penal Econômico (Wirtschaftsstrafgesetz), fruto de projeto elaborado por Eberhard Schmidt e pautada em uma distinção material (qualitativa) entre crime e contraordenação. Essa iniciativa buscou curar o Direito Penal da Alemanha Ocidental das chagas deixadas pelo regime nazista[39].

Em 1952 foi editada a primeira "lei-quadro" do Direito de Contraordenações alemão (OWiG), que estabeleceu as suas bases de direito substantivo e adjetivo, alargou o seu âmbito de incidência para além do Direito Penal Econômico e promoveu a abertura para a paulatina extinção das contravenções penais e a criação de tipos contraordenacionais em legislações específicas, desviando-se, contudo, do critério distintivo material inicial e se valendo de um critério formal (quantitativo), para definir o seu âmbito de incidência[40].

Atualmente, vige na Alemanha a Lei-Quadro das Contraordenações de 1968 (OWiG de 1968), que manteve o citado critério quantitativo de distinção e consolidou a tendência de expansão da tutela contraordenacional,também, para bens jurídicos originalmente protegidos pelo Direito Penal, mas cujas violações se revelavam de somenos importância, ou seja, caracterizadoras de delitos de bagatela[41].

O movimento de deflação penal italiano, surgido no início dos anos 1980,optou pela adoção de modelo semelhante ao alemão e afastou da tutela do Direito Penal os ilícitos sancionados pecuniariamente, adotando um critério quantitativo como referência à descriminalização e à despenalização de condutas (Legge 689/1981).

Contudo, nos anos 1990, o processo de depuração do sistema penal na Itália passou a se basear em critérios qualitativos e quantitativos, considerando a baixa ofensividade das condutas e/ou o potencial de gerarem sobrecarga ao sistema judiciário[42].O deslocamento desses injustos penais se deu para o âmbito do Direito de Contraordenações, apesar de a terminologia utilizada pela doutrina italiana (Diritto Punitivo Amministrativo) indicar a sua transposição para o âmbito do Direito Administrativo[43].

Em Portugal,por sua vez, o Direito de Contraordenações surge das mãos de Eduardo Correia, então Ministro da Justiça quando do advento do Decreto-Lei n.º 232/79, que contou com a colaboração de Manuel da Costa Andrade e José de Faria Costa, todos inspirados no modelo alemão pós-Segunda Guerra Mundial. Houve, nesse momento, como relata Nuno Brandão[44], a despenalização e a desjudicialização de algumas das contravenções sancionadas pecuniariamente.

Essa primeira lei-quadro foi substituída pelo Decreto-Lei nº 433/82, que instituiu o Regime Geral de Contra-Ordenações, passando este a disciplinar os aspectos materiais e processuais do Direito de Contraordenações português.Contudo, somente duas décadas mais tarde esse sistema contraordenacional absorveu todas as contravenções penais, concretizando o intento de seus idealizadores em promover uma ampla despenalização de condutas tidas como não condizentes com a tutela do Direito Penal[45].

Por outro lado, em Espanha optou-se por adotar as bases do Direito Administrativo para se desenvolver um modelo de Direito Administrativo Sancionador (Derecho Administrativo Sancionatório), vinculado dogmaticamente ao primeiro, mas que também se vale de alguns princípios penais e processuais penais em sua estruturação normativa, visto que se pauta em um conceito jurídico de unidade do poder punitivo estatal[46].

Todos esses modelos de mitigação e contenção da incidência do Direito Penal servem de inspiração à construção de uma alternativa à inflação penal que se acentuou no Brasil nas últimas décadas, visto que não dispomos de um sistema normativo contraordenacional semelhante ao alemão, italiano ou português, o que tem ensejado o avanço desmedido do Direito Penal e a sua sobreposição e confusão com o Direito Administrativo, ao ponto de se permitir, em relação a um mesmo fato, a incidência do Direito Penal (em seu viés administrativizado) e do Direito Administrativo Sancionador, instrumentalizados judicial e administrativamente de forma independente, em um verdadeiro bis in idem sancionatório.

Nesse sentido, a incoerência do sistema normativo brasileiro tem aberto espaço a recorrentes violações dos princípios penais da subsidiariedade e da lesividade, pois condutas que notadamente não atingem de forma significativa bens jurídicos tutelados pela Constituição Federal de 1988 são tipificadas penalmente de forma indiscriminada, como se a sanção penal fosse a única solução para as altas taxas de criminalidade e os problemas de segurança pública que enfrentamos.

Na verdade, essa maior incidência da intervenção penal tem acentuado os problemas de morosidade, ineficiência e seletividade do sistema de justiça criminal brasileiro e agravado os efeitos da política de encarceramento em massa, que resulta na superlotação dos estabelecimentos prisionais, no surgimento e fortalecimento de organizações criminosas nesses ambientes de vulnerabilidade, na escalada de violência das ações delituosas e no recrudescimento da violência estatal praticada pelos órgãos incumbidos da função precípua de manutenção da ordem pública, em um círculo vicioso de violações de direitos fundamentais declarados e garantidos constitucionalmente.

Mostra-se necessário, portanto, estruturar-se no Brasil um regime jurídico intermediário, apoiado, ao nosso ver, nas bases edificadas por Hassemer para o Direito de Intervenção e inspirado, também, nos modelos europeus de Direito de Contraordenacional, possibilitando, assim, a descriminalização de condutas que hoje são consideradas de menor potencial ofensivo e fazendo com que possam ser prevenidas e sancionadas de forma adequada, proporcional, célere e eficaz, por órgãos não-jurisdicionais, mas que atuem em auxílio e sob o controle do Poder Judiciário[47].

5 Conclusão

Conforme tratamos nas linhas acima, a proposta do Direito de Intervenção é uma obra inacabada, que oferece campo fértil para o desenvolvimento de novos estudos voltados a sustentar sistemas normativos que possam imprimir maior eficiência, segurança jurídica e resposta estatal necessária e adequada a condutas incompatíveis com a convivência livre e pacífica no seio social, mas que, pelo seu grau de perigo e lesividade, não justificam a intervenção do Direito Penal, pois este, em um Estado Democrático de Direito, deve ser resguardado às graves violações a bens jurídicos constitucionais e nada mais além disso.

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Sobre o autor
Emerson Ghirardelli Coelho

Mestre em Direito das Relações Sociais (Direito Processual Penal) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Especialista em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo; Bacharel em Direito pela Universidade Paulista; Professor em cursos de Graduação e Pós-graduação em Direito; Professor concursado da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra; Membro do Conselho Editorial da Revista Arquivos da Polícia Civil; Delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COELHO, Emerson Ghirardelli. Teoria do bem jurídico e limites à intervenção penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6824, 8 mar. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96693. Acesso em: 24 dez. 2024.

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