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Anulação da votação de candidato cassado por práticas eleitorais ilícitas:

mudança de orientação jurisprudencial pelo TSE

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No caso estudado, entende-se que o tratamento jurídico anterior, assentado no máximo aproveitamento do voto, desprestigiava o princípio da paridade de armas ou da boa fé-recíproca entre os competidores.

Em 13/10/2020, ao decidir o Recurso Ordinário nº 060390065/BA [1], o plenário do Tribunal Superior Eleitoral efetivou importante guinada jurisprudencial ao sacramentar o entendimento de que uma vez cassado o registro ou diploma de candidato proporcional em razão da prática das condutas descritas nos artigos 222 e 237 do Código Eleitoral, devem ser considerados nulos, para todos os fins, os votos a ele atribuídos, restando inaplicável o disposto no art. 175, § 4º, do mesmo diploma legal [2].

A concepção transata, nitidamente inconvincente, aproveitava os votos para o partido ou coligação a que pertencesse o cassado.

Os dispositivos invocados pelo julgado foram os seguintes:

Art. 222. É também anulável a votação, quando viciada de falsidade, fraude, coação, uso de meios de que trata o Art. 237, ou emprego de processo de propaganda ou captação de sufrágios vedado por lei.

Art. 237. A interferência do poder econômico e o desvio ou abuso do poder de autoridade, em desfavor da liberdade do voto, serão coibidos e punidos.

De início, é de ser visto que no plano doutrinário, consagradores autores se debruçaram com esmero na abordagem da disciplina em apreço. Em seus Comentários ao Código Eleitoral (2004, p. 288), Pedro Roberto DECOMAIN reporta-se às causas de anulabilidade da eleição para se referir aos tipos e remições constantes dos mencionados preceitos da lei codificada. Fávila RIBEIRO, na sua festejada obra Direito Eleitoral (1986, p. 408), enfatiza as causas determinantes de anulação do pleito previstas aos aludidos artigos.

O eloquente paradigma que deu exato cumprimento à lei assentando novos e relevantes corolários legais ao instituto da anulação de votos estabeleceu-se em sede de Ação de Investigação Judicial Eleitoral proposta pelo Ministério Público Eleitoral em desfavor de agente político (Secretário Municipal de Saúde) e parlamentar estadual reeleito por alegada prática de abuso do poder econômico, abuso do poder político e de autoridade, além de conduta vedada decorrentes da prestação de atendimentos de saúde gratuitos direcionados à população em benefício do segundo.

Julgando a AIJE, a Corte Regional concluiu, por maioria, que as provas produzidas na instrução não foram suficientes para evidenciar as práticas abusivas. No recurso interposto, o MPE alegou a comprovação de que pessoas eram atendidas em clínicas clandestinas num município e posteriormente transportadas, as expensas do deputado estadual investigado para outro, onde tinham acesso a serviços de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) mediante burla ao processo de regulação.

Outrossim, a irretocável construção hermenêutica edificada pelo relator no TSE animou a virada de entendimento em relação ao destino dos sufrágios obtidos pelo candidato cassado. Os votos que resultaram na tese vencedora basearam-se no mesmo fundamento, qual seja: a incidência dos arts. 222 e 237 do Código Eleitoral foi decorrência da comprovação de ilicitudes severas, que afetam a liberdade do voto, a igualdade entre os candidatos, a legitimidade e a normalidade do pleito, bens jurídicos de estrato constitucional e fundamentais ao Estado Democrático de Direito, situação em que não há falar em boa-fé dos envolvidos e beneficiários da votação maculada.

A seguir, o ministro Sérgio Banhos gizou:

Ao oferecer à população carente um tipo de serviço essencial, em substituição à atuação do Estado, que seria o provedor natural, o agente atrai para si todos os benefícios advindos da sua atuação, em proveito da vulnerabilidade dos menos favorecidos, acarretando clara desigualdade entre os demais candidatos que se abstiveram de adotar a mesma conduta ou que não tiveram as mesmas condições de assim fazê-lo.

Relativamente à captação ilícita de sufrágio e de que não teria sido comprovada nos autos a existência de pedido de voto ou de que era exigido o título de eleitor como pressuposto para os atendimentos, assinalou que a configuração do abuso do poder econômico prescinde de pedido expresso de votos, sendo necessária a demonstração de que a conduta seja praticada mediante o emprego desproporcional e excessivo de recursos patrimoniais, públicos ou privados, capaz de comprometer a paridade de armas entre os candidatos e que seja grave o suficiente para afetar a normalidade e a legitimidade das eleições.

Ainda sobre os arts. 222 e 237 do CE/65, indispensável relembrar que inobstante sem deixar maiores incertezas acerca da taxativa previsão de anulação dos votos contaminados por situações abusivas, uma geração de julgados do TSE optou por mitigá-los. Entretanto, a corrente vencedora no julgamento do RO nº 060390065/BA, ao superar as hesitações e retrocessos daquela jurisprudência que poderia ser denominada de tradicional, conferiu plena aplicabilidade ao texto positivado.

De rigor, a solução perfilhada pelo leading case prestigiou a organicidade da normatização eleitoral. Com efeito, carecia de lógica a possibilidade de incorporação, dos sufrágios alcançados por um candidato proporcional cassado por abuso de poder, à votação amealhada pelo seu partido. O tratamento jurídico anterior, assentado no máximo aproveitamento do voto, desprestigiava o princípio da paridade de armas ou da boa fé-recíproca entre os competidores.

A um, porque é contraditório a democracia autenticar quinhões de poder (votos, quocientes, cadeiras parlamentares e bancadas partidárias) diante de cassações derivadas de práticas ilícitas ofensivas à legitimidade do pleito. Neste sentido, esmiuçando as cominações previstas uma a uma, e sendo a cassação de mandato o corolário mais drástico no sistema punitivo eleitoral, a mesma tem o condão de revogar a vontade popular advinda das urnas face à comprovação da alteração do curso normal da eleição em função da conduta que ocasionou o seu desequilíbrio. Logo, esta revogação inutiliza inteiramente a votação alcançada pelo cassado ao desconstituí-la.

Diante da regra-princípio da normalidade dos pleitos (CF/88, art. 14, §9º), não se afigura lógico, tampouco razoável, atribuir valia aos votos que foram conferidos àquele que, além de ser afastado da representação popular, restou inelegível por agir em desfavor da liberdade do voto (CE/65, art. 237). Nessa órbita, como bem anotou com invulgar autoridade o ex-ministro Prado KELLY (1966, v. 1, p. 255), Voto é liberdade [3].


[1] ELEIÇÕES 2018. RECURSO ORDINÁRIO. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ABUSO DO PODER ECONÔMICO. FILANTROPIA. ASSISTENCIALISMO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO MÉDICO GRATUITO À POPULAÇÃO CARENTE EM ANO ELEITORAL. EXALTAÇÃO DA FIGURA DO MÉDICO, TAMBÉM DEPUTADO ESTADUAL E PRÉCANDIDATO. VEÍCULO DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS PLOTADO COM A FOTO E O NOME DO PRÉCANDIDATO. DESIGUALDADE NA DISPUTA. DESEQUILÍBRIO DO PLEITO. REFORMA DO ARESTO REGIONAL. PROCEDÊNCIA DA AIJE. CASSAÇÃO DO DIPLOMA E DECLARAÇÃO DE INELEGIBILIDADE. ART. 22, XIV, DA LC 64/90.

SÍNTESE DO CASO

(...).

14. As provas dos autos indicam que eram realizados atendimentos médicos pelo deputado estadual, gratuitamente, mediante a exaltação do seu nome e da sua foto imagem que constava, inclusive, nos seus receituários médicos , em clínicas clandestinas que não tinham autorização dos órgãos públicos para prestar serviço de saúde à população, e ainda com a utilização de formulários de exame emitidos pelo SUS, embora a clínica não fosse conveniada ao Sistema Único de Saúde.

16. O atendimento filantrópico realizado há muitos anos antes do pleito ao qual os fatos estão vinculados não tem o condão de desconfigurar o abuso de poder na seara eleitoral, especialmente quando houver vinculação clara entre o agente prestador e o trabalho desenvolvido, mediante o enaltecimento de sua figura pública, o que ficou comprovado na espécie.

17. A caracterização do abuso de poder independe da circunstância de o ilícito ter sido praticado dentro ou fora do período eleitoral. Nesse sentido, esta Corte tem decidido que "inexiste óbice a que o abuso de poder seja reconhecido com base em condutas praticadas ainda antes do pedido de registro de candidatura ou do início do período eleitoral" (AgRAl 51475, red. para acórdão Min. João Otávio de Noronha, DJE de 2.6.2015).

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18. O contexto é agravado por se tratar de filantropia realizada no âmbito da saúde, cujo atendimento é notoriamente precário no nosso país, mormente nos estados do Nordeste, onde a população é mais carente e menos beneficiada pelos serviços públicos que, infelizmente, não são prestados satisfatoriamente pelo Estado.

19. Tal conjuntura acarreta inegável situação de desequilíbrio entre os concorrentes, na medida em que a população atendida, diante do estado de carência e vulnerabilidade e também da necessidade de que os serviços continuem sendo prestados, sentese naturalmente compelida a estabelecer vínculo de dívida com o agente que oferece tal benesse, circunstância que reflete negativamente na liberdade do voto e, por consequência, na lisura do processo eleitoral.

20. A conduta filantrópica que, mesmo indiretamente, vincule o serviço oferecido à figura do agente prestador, que, no caso dos autos, também é agente político atuante em muitos mandatos na Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, e então précandidato às Eleições de 2018, reverbera, inegavelmente no contexto do pleito, causando distúrbios que afetam o desenvolvimento regular e igualitário do processo eleitoral, conspurcando o fluxo natural do princípio democrático.

21. A jurisprudência mais recente deste Tribunal está assentada no entendimento de que "o notório aproveitamento do deficiente sistema de saúde pública para intermediar e distribuir benesses, com o fim de obter votos da parcela carente, em afronta aos bens jurídicos tutelados no referido artigo normalidade e legitimidade das eleições é apto a ensejar a cassação de diploma" (AgRREspe 16298, rel. Min. Jorge Mussi, DJE de 15.5.2018).

22. É importante destacar o entendimento manifestado por esta Corte no julgamento do aludido AgRREspe 16298, no qual ficou consignado que "cabe à Justiça Eleitoral apurar e punir, com rigor, prática de assistencialismo por pessoa que, visando obter votos para pleito futuro, manipula a miséria humana em benefício próprio ao aproveitarse da negligência do Estado em inúmeras áreas com destaque para saúde, direito social garantido indistintamente a todos (arts. 6º e 196 da CF/88)".

23. No julgamento do AI 62141, rel. Min. Edson Fachin, DJE de 23.10.2018, este Tribunal assentou constituir "abuso do poder político e econômico a prática de assistencialismo, por meio da manipulação dos serviços oferecidos pelo sistema público de saúde, visando à obtenção de votos. Precedentes: AgRREspe n° 16298/RN, Rel. Min. Jorge Mussi, DJE de 15.5.2018 e RO n° 803269/RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, DJE de 4.10.2016".

24. No caso em exame, a gravidade dos atos exsurge a partir do contexto da utilização pelo précandidato de bem essencial à vida, no caso, a saúde, mediante ampla divulgação por meio de cartazes e fotos, inclusive em adesivo afixado em veículo de passageiros, no qual eram transportados pacientes para os atendimentos médicos em cidade vizinha.

25. Não se pode negar o efeito multiplicador da conduta, considerado o número de atendimentos que, segundo afirmou uma das testemunhas arroladas pelo próprio investigado, seria de 80 pessoas por dia.

27.  As provas produzidas nos autos levam à conclusão de que o assistencialismo praticado pelo recorrido acarretou lesividade ao pleito e desequilíbrio na disputa, mediante a utilização de artifícios para angariar a simpatia do eleitorado mais vulnerável, com vistas ao pleito de 2018, no qual o deputado foi reeleito com a grande maioria de

28.  Cassado o registro ou diploma de candidato eleito sob o sistema proporcional, em razão da prática das condutas descritas nos arts. 222 e 237 do Código Eleitoral, devem ser considerados nulos, para todos os fins, os votos a ele atribuídos, sendo inaplicável à espécie o disposto no art. 175, § 4º, do mesmo diploma legal. Decisão tomada por maioria, tendo a corrente minoritária se manifestado pela aplicação prospectiva da referida orientação, em decorrência do princípio da segurança jurídica e do disposto no art. 218, II, e no art. 219, IV, da Res.TSE 23.554.

29.   O efeito suspensivo ope legis de que trata o § 2º do art. 257 do Código Eleitoral cessa com o julgamento do feito pelo Tribunal Superior Eleitoral, a partir do que a douta maioria entende possível a execução imediata do acórdão, mesmo antes da respectiva publicação.

[2] É de ser registrado que em 22/09/2020, portanto menos de um mês antes, no julgamento do Recurso Ordinário nº 0601403-89/AC, a maioria do plenário, invocando O respeito ao princípio da segurança jurídica, embora entendendo pela inaplicabilidade do art. 175, §4º do Código Eleitoral em casos tais como o leading case, decidiu que o entendimento em questão é de ser aplicado tão-apenas a partir das eleições de 2020, uma vez que o diploma aplicável ao pleito em tela restringe a possibilidade de anulação total dos votos, referindo-se à resolução do registro de candidaturas.

[3] KELLY, Prado. Estudos de Ciência Política. V. 1 (Estado e organização de Estados). São Paulo: Saraiva, 1966.

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Sobre o autor
Antônio Augusto Mayer dos Santos

Antônio Augusto Mayer dos Santos. Advogado. Professor de Direito Eleitoral e Improbidade Administrativa do Grupo Educacional Verbo Jurídico e do IGAM. Ex-professor de Teoria Geral do Estado. Autor dos livros "Reforma Política sem fantasias - as mudanças que o país necessita" (2022), "500 Curiosidades sobre o Supremo Tribunal Federal" (2021), "1.000 Curiosidades sobre Política e Eleições no Brasil" (2019), "Ousadia, Utopia e Reforma Política" (2018), "Campanha Eleitoral Teoria e Prática" (3ª ed. - 2022), "Aloísio Filho Cidadão e Vereador" (2012), "Prefeitos de Porto Alegre cotidiano e administração da capital gaúcha entre 1889 e 2012" (2012), "Vereança e Câmaras Municipais Questões legais e constitucionais" (2011) e "Reforma Política: inércia e controvérsias" (2009). Palestrante. Membro-Consultor da Comissão Especial de Direito Eleitoral do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (2018). Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/RS (2013-2015). Vice-Presidente da Comissão de Combate à Corrupção Eleitoral da OAB/RS (2010).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Antônio Augusto Mayer. Anulação da votação de candidato cassado por práticas eleitorais ilícitas:: mudança de orientação jurisprudencial pelo TSE. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6874, 27 abr. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97369. Acesso em: 24 abr. 2024.

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