Resumo: A judicialização das relações sociais em prol da concretização dos direitos fundamentais no Brasil, especialmente após a promulgação da Carta Constitucional de 1988, abriu caminho para o aumento do poder decisório do Judiciário e o controle político sobre os demais poderes da República, o que tem sido denominado de ativismo judicial. Embora não bem compreendido no Brasil, o ativismo judicial já é bastante discutido no mundo. Diante da visível fragilização da harmonia entre os Poderes da República no Brasil e das crises econômica e política que têm trazido prejuízo aos direitos individuais e sociais, faz-se necessário compreender se o Supremo Tribunal Federal (STF) tem inovado ou não na ordem jurídica e adotado uma postura interpretativista discricionária com impactos negativos na democracia brasileira. Em termos globais, a Corte Constitucional brasileira ora se mostra mais ativista, ora menos, ao sabor dos embates sociais e políticos que se apresentam. Quando adota uma postura ativista, o Supremo Tribunal Federal cria tensões com os demais Poderes, gerando contrapartidas destes, especialmente do Poder Legislativo, na forma de leis ou emendas à Constituição contrários à decisão da Corte Constitucional. Fica cada vez mais claro que é necessário elaborar novos arranjos institucionais para legitimar a jurisdição constitucional. Várias propostas têm sido apresentadas, como a Teoria da Decisão e a Teoria dos Diálogos Institucionais, que permitem refutar subjetivismos e discricionariedades no ato de interpretar e aplicar a lei e fazer distinção objetiva entre decisão jurídica e escolha política.
Palavras-chave: Judicialização da Política, Ativismo Judicial, Supremo Tribunal Federal.
Sumário: INTRODUÇÃO. 1. INDEFINIÇÃO CONCEITUAL E MULTIDIMENSIONALIDADE DO TERMO ATIVISMO JUDICIAL. 1.1. Surgimento da expressão “ativismo judicial”. 1.2. A multidimensionalidade do ativismo judicial. 1.3. Tentativas de conceituação do ativismo judicial. 2. A DISTINÇÃO ENTRE JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E ATIVISMO JUDICIAL NO CONTEXTO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988. 2.1. A superação da teoria clássica da separação dos poderes. 2.2. Distinção entre judicialização da política e ativismo judicial. 3. ATIVISMO JUDICIAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E IMPLICAÇÕES POLÍTICAS SOBRE OS DEMAIS PODERES. 3.1. A tensão institucional entre os poderes frente ao ativismo do Supremo Tribunal Federal. 3.2. A busca de um novo equilíbrio entre a jurisdição constitucional e os demais poderes. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
INTRODUÇÃO
O tema do ativismo judicial tem sido um dos principais assuntos abordados pela doutrina jurídica mundial, especialmente a norte-americana, que reconhece ter sido o historiador estadunidense, Arthur Schlesinger Jr., o criador do termo “ativismo judicial”, em 1947. Não é um assunto livre de controvérsias, muito pelo contrário. Uma das principais é a própria delimitação conceitual da expressão “ativismo judicial”. Existe a premissa de que o ativismo judicial apresenta sentidos diferentes para pessoas distintas, mas o núcleo comportamental básico seria a expansão do poder decisório de juízes sobre os demais atores de uma dada organização sociopolítica.
O advento da Carta Constitucional de 1988, que buscou atender os anseios sociais do povo brasileiro com um gama extensa de direitos e garantias, gerou dificuldades estruturais e orçamentárias aos poderes Executivo e Legislativo no atendimento dessa demanda. A facilitação do acesso à justiça, o fortalecimento do Ministério Público e o aperfeiçoamento de instrumentos processuais de defesa dos cidadãos, como a ação civil pública e a ação popular, reforçaram as transformações institucionais que tornaram o Judiciário um proeminente ator no controle dos poderes políticos e na concretização de direitos dos cidadãos. No quadro geral de ascensão do Poder Judiciário, foi o Supremo Tribunal Federal (STF) que incontestavelmente ganhou mais visibilidade e participação nas decisões políticas e governamentais.
Diante do contexto atual do Brasil, em que a fragilização da harmonia entre os Poderes da República, a crise de representação política e a crise econômica têm trazido prejuízo à concretização dos direitos individuais e sociais, o debate sobre ativismo judicial e atuação do STF na interpretação e aplicação da Constituição Federal de 1988 se faz urgente e relevante. O presente estudo teve por objetivo contribuir para a compreensão do fenômeno do ativismo judicial e promover o conhecimento geral sobre a atuação ativista do STF e suas implicações políticas no contexto brasileiro. Para tanto, buscou-se desvendar a origem terminológica da expressão e suas múltiplas dimensões conceituais, contextualizar o ativismo judicial brasileiro antes e após a Constituição Federal de 1988, analisar a atuação do STF na interpretação e aplicação da Constituição e suas implicações políticas em face dos Poderes Legislativo e Executivo.
1 INDEFINIÇÃO CONCEITUAL E MULTIDIMENSIONALIDADE DO TERMO ATIVISMO JUDICIAL
1.1 Surgimento da expressão “ativismo judicial”
Trata-se de um tema que tem suscitado muitos debates tanto no campo do Direito quanto da Política, especialmente no atual momento em que a judicialização da política e a politização do Poder Judiciário saltam aos olhos de todos os brasileiros. O Poder Judiciário tem estado muito presente no cotidiano do País, seja tomando decisões impactantes, interferindo na atividade de outros Poderes e na vida das pessoas, seja tendo destaque na mídia de grande circulação. Entretanto, poucos realmente conhecem o significado e o alcance da expressão “ativismo judicial”, o que enfraquece o debate e atrasa a compreensão do fenômeno no Brasil. Visando contribuir para o esclarecimento das nuances conceituais e axiológicas do ativismo judicial, apresenta-se a seguir as formulações epistemológicas de autores que buscaram estudar o tema de maneira aprofundada.
Carlos Alexandre de Azevedo Campos, em sua obra “Dimensões do Ativismo Judicial do Supremo Tribunal Federal”, de 2014, faz um resgate do contexto histórico do surgimento da expressão “ativismo judicial”. Segundo o autor, a doutrina norte-americana reconhece que o primeiro uso público desta foi feito pelo historiador estadunidense Arthur Schlesinger Jr., em artigo intitulado The Supreme Court: 1947, publicado na Revista Fortune, vol. XXXV, n° 1, no mês de Janeiro de 1947 (existe uma suspeita de que ele pegou o termo “emprestado” do seu colega de Harvard, Thomas Reed Powell). Schlesinger analisou os posicionamentos dos juízes da Corte Americana em seus julgados e verificou que eles poderiam ser classificados da seguinte forma: (a) juízes ativistas com ênfase na defesa dos direitos das minorias e das classes mais pobres – Justices Black e Douglas; (b) juízes ativistas com ênfase nos direitos de liberdade – Justices Murphy e Rutledge; (c) juízes adeptos de uma postura mais autorrestrita – Justices Frankfurter, Jackson e Burton; e (d) juízes representantes do equilíbrio de forças (balance of powers) – Chief Justice Fred Vinson e Justice Reed.
Neste ponto, é oportuno contextualizar a realidade político-institucional da Suprema Corte americana da época, personagem principal do artigo escrito por Schlesinger na Revista Fortune, para compreender que existia uma interrelação muito nítida entre o ativismo judicial dos juízes norte-americanos e o contexto político da época. A Suprema Corte americana estava e está até hoje no centro do campo de disputa secular entre conservadores e liberais naquele país, o que não difere em muito do que acontece no Brasil face aos eternos embates entre governo e oposição, senão, vejamos, nas próprias palavras de Carlos Alexandre de Azevedo Campos (2014):
A história do ativismo judicial nos Estados Unidos é marcada por um duelo político-ideológico entre conservadores e liberais pela alma da Suprema Corte. (...) Conservadores e liberais divergem sobre o grau de intervenção do Estado na economia, federalismo, aborto, direitos dos gays, ações afirmativas raciais, pena de morte, financiamento de campanhas eleitorais etc. Mas o desenvolvimento judicial dessas controvérsias mostra um ponto comum: ambos são dispostos a utilizar o ativismo judicial para avançar suas agendas político-ideológicas e são igualmente dispostos a atacar juízes e cortes quando não é a sua agenda que está sendo posta em prática. Como disse um destacado juiz norte-americano, “quando liberais são preponderantes na Corte, conservadores exaltam autorrestrição e denunciam “ativismo”, mas “quando conservadores são preponderantes na Corte, liberais exaltam autorrestrição ...e denunciam ‘ativismo judicial conservador’”. Os acontecimentos a seguir descritos revelam como essa adversidade histórica torna o debate norte-americano sobre o ativismo judicial um “debate sem fim”, e também como fatos e circunstâncias políticas podem influenciar a direção das decisões ativista (p. 60).
Keenan Kmiec, jurista norte-americano, explica no texto “The Origin and Current Meanings of ‘Judicial Activism’” (2004) que, antes do século XX, ainda não se utilizava a expressão “ativismo judicial”, mas os juristas já se questionavam sobre a postura de juízes que faziam leis. Na primeira metade do século XX, muitos acadêmicos discutiram os méritos da legislação judiciária, havendo adeptos tanto a favor quanto contra, mas ninguém conseguiu traduzir esse conceito em uma palavra ou expressão. Nesse contexto, era de se esperar que ela fosse surgir de uma dissidência de algum juiz em um tribunal ou em uma palestra sobre revisão de leis, mas na verdade surgiu em um artigo escrito por um não jurista, em uma revista popular para atrair a atenção do público em geral. Kmiec salienta também que Schlesinger conseguiu demonstrar que cada grupo de juízes teria uma visão distinta da legalidade. A visão de Black-Douglas teria suas raízes na Escola de Direito de Yale, para a qual o raciocínio jurídico é mais maleável do que científico, de modo que os recursos jurídicos, a ambiguidade dos precedentes e a extensão da doutrina aplicável seriam tão abrangentes que, na maioria dos casos, a divergência de opinião não forçaria o tecido da lógica legal. Em contraposição, para os juízes adeptos da autorrestrição, as leis teriam significados fixos, e o desvio desses significados seria inadequado. Se a legislatura cometesse erros, caberia ao legislador remediá-los. Depois de descrever essas facções opostas, Schlesinger percebeu a ameaça intrínseca à democracia na ideologia do grupo Black-Douglas e preferiu sugerir que o ativismo judicial se restringisse apenas aos casos de liberdades civis.
Schlesinger teria apresentado o termo ativismo judicial exatamente como o oposto de autorrestrição judicial. Embora isto não seja o suficiente para uma compreensão cristalina do que realmente venha a ser ativismo judicial, pois faltou conteúdo à comparação, o historiador deu vazão ao sentimento de incômodo já existente na época quanto à politização da atividade judicial. Ao entender que juízes ativistas substituem a vontade do legislador pela própria porque acreditam que devem atuar ativamente na promoção das liberdades civis e dos direitos das minorias, dos destituídos e dos indefesos, e que, ao contrário, os juízes adeptos da autorrestrição judicial preferem não intervir no campo da política (CAMPOS, 2014), Schlesinger antecipou em décadas as discussões sobre essa temática que viriam a ser travadas em todo o mundo, inclusive no Brasil.
1.2 A multidimensionalidade do ativismo judicial
Apesar de Schlesinger nunca ter explicado que características de fato tornariam uma decisão ativista ou autorrestrita, ele sugeriu várias dicotomias fundamentais no confronto entre uma e outra: juízes não eleitos versus estatutos democraticamente promulgados; julgamento orientado para resultados versus tomada de decisão baseada em princípios; uso estrito versus criativo do precedente; supremacia democrática versus direitos humanos; lei versus política; e outras dicotomias igualmente fundamentais (KMIEC, 2004). Neste mesmo sentido, Luiz Henrique Diniz Araújo (2018) assinala que o ativismo é um conceito que traz em si um dualismo: de um lado, é necessário aos estados constitucionais que buscam o aprofundamento dos direitos que se propõem a reconhecer e efetivar, o que implica uma certa margem de discricionariedade judicial; de outro lado, traz o risco da deslegitimação do estado de direito.
Parece de simples compreensão a redução do ativismo judicial a um dualismo, a dois lados de uma moeda. Mas, como alerta Carlos Alexandre de Azevedo Campos (2014), não há realmente consenso sobre o que é ativismo judicial e ele acaba significando coisas distintas para pessoas distintas. Há quem considere os juízes ativistas como uma ameaça aos valores democráticos e à separação de poderes, e há aqueles que defendem que os juízes e as cortes devem agir de modo mais contundente em nome dos direitos da liberdade e igualdade e diante da inércia ou do abuso de poder por parte de outros atores políticos e instituições. Segundo o autor, as cortes ativistas não somente fazem parte do sistema político de determinado país, como também são verdadeiros centros de poder que participam, direta ou indiretamente, da formação da vontade política predominante. Embora acredite que o ativismo judicial tenha um núcleo comportamental, qual seja, a expansão de poder decisório que juízes e cortes promovem sobre os demais atores relevantes de uma dada organização sociopolítica e constitucionalmente estabelecida, Campos (2014) propõe que esse é um termo que apresenta muitas dimensões. Estas dimensões auxiliam na compreensão conceitual do termo “ativismo judicial” e servem como ferramenta de análise da postura das cortes constitucionais ao redor do mundo, inclusive para a avaliação se o Supremo Tribunal Federal é uma corte ativista ou não, como será discutido adiante. Por ora, apresentam-se as características essenciais de cada dimensão do ativismo judicial propostas por Campos (2014, p. 165):
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Ativismo judicial e interpretação da constituição: é a mais importante dimensão do ativismo, segundo o autor, e consiste na interpretação ampliativa das normas e princípios constitucionais, com a afirmação de direitos e poderes implícitos ou não claramente previstos nas constituições, assim como a aplicação direta de princípios constitucionais, muito vagos e imprecisos, para regular condutas concretas sem qualquer intermediação do legislador ordinário. Os juízes ativistas, verdadeiros “arquitetos sociais”, fazem mudanças na interpretação constitucional conforme as exigências das transformações sociais;
Ativismo judicial e criação legislativa: nesta dimensão, os juízes criam o direito ao invés de aplicá-lo. Ao preencherem lacunas e omissões legislativas, corrigirem as leis, inovando-as e dando-lhes novos sentidos e significados, os juízes, especialmente os da Suprema Corte, estariam complementando ou substituindo a atividade legislativa de modo a conformá-la melhor aos princípios e valores constitucionais;
Ativismo judicial e deferência aos demais poderes: se refere a juízes que não encontram dificuldades, de fundo institucional, para afastar as decisões de outros poderes e substituí-las pelas próprias. Nesta dimensão, os juízes exercem controle rígido de legitimidade sobre os atos dos demais poderes, minimizando padrões como a presunção de constitucionalidade das leis, o que se torna particularmente dramático no âmbito de interpretação de normas constitucionais muitas vezes vagas, imprecisas e que veiculam pautas de valor moral e político;
Ativismo judicial e afirmação de direitos: devido ao alto grau de indeterminação semântica e da alta carga valorativa das normas constitucionais que expressam direitos fundamentais, as cortes constitucionais, para conseguir justificar eticamente e axiologicamente suas decisões sobre esses direitos, realizam escolhas essenciais que governarão o comportamento da sociedade e dos poderes políticos. Como esses direitos justificam-se na moral e legitimam o ordenamento jurídico, decisões judiciais sobre esses direitos poderão envolver, além de raciocínios jurídicos, juízos de validade moral e política, impactando dramaticamente a sociedade;
Ativismo judicial e políticas públicas e sociais: nesta dimensão, cortes e juízes definem políticas públicas no lugar dos outros poderes. Cortes ativistas, ao invés de apenas anularem leis, têm definido e desenvolvido por si mesmas políticas públicas nas áreas de educação, saúde, sistema penal, dentre outras;
Ativismo judicial e auto expansão da jurisdição e dos poderes decisórios: cortes ativistas ampliam o acesso à sua jurisdição e do seu espaço de atuação afastando dificuldades procedimentais, criando critérios rígidos de legitimidade processual e de cabimento de ações e recursos. Do mesmo modo, formulam doutrinas que reforçam o alcance de ações e recursos constitucionais e aumentam a força vinculante de suas decisões, ampliando dessa forma seus poderes de decisão e aumentando o seu grau de independência frente aos demais poderes constitucionais;
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Ativismo judicial e superação de precedentes: juízes ativistas não se restringem por precedentes, antes entendem que sua superação é um estágio necessário para melhor desenvolver os significados adequados das normas constitucionais. “Acima da estabilidade, certeza e uniformidade do direito proporcionadas pelo respeito aos precedentes, os ativistas escolhem exercer a flexibilidade interpretativa e decisória se isso for necessário para a construção do sentido correto das normas constitucionais – correto segundo suas perspectivas” (p. 172);
Ativismo judicial e maximalismo: esta dimensão está presente quando juízes ativistas justificam suas decisões em formulações teóricas ambiciosas, extensas e profundas, além do necessário para fundamentar o resultado das decisões concretas. Caracteriza-se, assim, o maximalismo, no sentido de ultrapassar questões teóricas e principiológicas do caso julgado para estabelecer amplas regras e princípios que dirigirão outros casos semelhantes no futuro;
Ativismo judicial e partidarismo: ocorre quando as decisões judiciais não são fundadas em razões jurídicas, mas nas preferências político-partidárias dos juízes;
Ativismo judicial e soberania judicial: O exercício da soberania judicial é o exemplo mais extremado de ativismo judicial, pois as cortes tomam decisões judiciais tão expansivas e ambiciosas que excluem os poderes políticos do processo de construção dos significados constitucionais.
Dez anos antes de Carlos Alexandre de Azevedo Campos (2014), Kmiec (2004) já assinalava que, assim como a expressão “ativismo judicial” se tornara muito comum, ela também se tornara confusa, pois fora utilizada de formas diferentes e até contraditórias, uma vez que juristas e juízes reconheciam o problema do ativismo judicial, discutiam sobre ele, mas não o definiam. Kmiec então sugeriu que, devido aos vários significados atribuídos à expressão, deveria ser explicitado o significado do qual se fala, dessa forma transformando o tema do ativismo judicial em instrumento de uma discussão construtiva. Para incrementar o debate na época, o autor supracitado apontou cinco principais significados para o ativismo judicial, que também podem ser compreendidos como dimensões conceituais, quais sejam:
Invalidação das ações dos demais poderes por meio da declaração de inconstitucionalidade: a invalidação por si só não torna suspeita a decisão judicial, porém suscita o debate sobre ser papel do Poder Judiciário dizer a última palavra sobre a Constituição ou ser/dever ser quem diz o que é a lei, mesmo nas questões difíceis ou politicamente sensíveis;
Falha em aderir a precedentes judiciais: seria ativismo os juízes e Tribunais inferiores desconsiderarem os precedentes da Suprema Corte (precedentes verticais) e os Tribunais desconsiderarem seus próprios precedentes no julgamento de casos semelhantes anteriores (precedentes horizontais), o que é discutível na opinião de Kmiec, pois há quem entenda que às vezes é necessário superar precedentes horizontais;
Atividade judicial legislativa: as Cortes são menos competentes para criar políticas públicas do que o legislativo, entretanto, em casos individuais, mesmo que as cortes se comportem inapropriadamente, podem surgir boas decisões ou precedentes desejáveis;
Não adoção de metodologias interpretativas aceitas: pode significar que um juiz usa ferramentas diferentes (em espécie ou número) para tomar uma decisão, comparado com o que outro juiz usaria, ou, mais útil, pode significar que duas pessoas concordam sobre quais ferramentas devem ser usadas para tomar uma decisão, mas discordam sobre como aplicar as ferramentas em um caso particular, embora a grande dificuldade deste significado seja as diferentes opiniões sobre o que seja uma metodologia interpretativa apropriada;
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Julgamento orientado por resultado: uma decisão é ativista apenas quando o juiz tem um motivo oculto para tomar a decisão e a decisão se afasta de alguma "linha de base" de correção (o quão ativista é a decisão depende de quão longe ela se desvia dessa linha de base), embora nem sempre seja fácil de detectar essa forma de ativismo porque os elementos críticos são subjetivos ou desafiam uma definição clara e concreta.
Kmiec (2004) concluiu que o ativismo judicial não tem um conceito monolítico. Pelo contrário, pode representar várias ideias jurisprudenciais distintas que merecem uma investigação mais aprofundada. Hoje, uma acusação de ativismo judicial isolada ou descontextualizada significa pouco ou nada porque a expressão adquiriu muitos significados distintos e até mesmo contraditórios. No entanto, quando explicada com cuidado, pode ser um ponto de partida para uma conversa significativa sobre o ofício judicial, uma oportunidade para fazer as perguntas subsidiárias que vão além do superficial.
1.3 Tentativas de conceituação do ativismo judicial
Apesar das contribuições de inúmeros autores para a elucidação do fenômeno do ativismo judicial, não é tarefa fácil reduzi-lo a um conceito que permita a convergência de toda a sua multidimensionalidade, sem desprezar sua transversalidade com o contexto histórico, político e social de um País. Mas tal façanha é possível, desde que se consiga agregar à postura judicial em análise, o contexto político-institucional no qual se insere. Nesse sentido, Carlos Alexandre de Azevedo Campos (2014) toma como base importantes decisões da Suprema Corte norte-americana para indicar os dois aspectos cruciais do ativismo judicial: primeiro, as decisões ativistas são multifacetadas, isto é, se revelam por diferentes dimensões, já explicitadas anteriormente, e, segundo, o ativismo judicial não é o resultado puro e simples de uma atitude deliberada de juízes e cortes, mas sim, responde a uma pluralidade de fatores, os quais influenciam e podem explicar o comportamento mais ou menos ativista dos juízes e das cortes (o ativismo judicial pode ser politicamente construído e direcionado). Desse modo, ele define o ativismo judicial:
como o exercício expansivo, não necessariamente ilegítimo, de poderes político-normativos por parte de juízes e cortes em face dos demais atores políticos, que: (a) deve ser identificado e avaliado segundo os desenhos institucionais estabelecidos pelas constituições e leis locais; (b) responde aos mais variados fatores institucionais, políticos, sociais e jurídico-culturais presentes em contextos particulares e em momentos históricos distintos; (c) se manifesta por meio de múltiplas dimensões de práticas decisórias. (CAMPOS, 2014, p. 164)
O Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal brasileiro, em seu artigo “Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática”, de 2008, apresenta sua ideia de ativismo judicial associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ativista se manifestaria por meio de diferentes condutas, que incluem: (a) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (b) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (c) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas. As posturas ativistas apontadas pelo Ministro Barroso estão incluídas entre aquelas citadas por Kmiec (2004) e Campos (2014).
O Ministro Barroso contribui para a conceituação do ativismo judicial ao contrapô-lo com a autocontenção ou autorrestrição judicial. O ilustre magistrado reconhece que o binômio ativismo-autocontenção judicial está presente na maior parte dos países que adotam o modelo de supremas cortes ou tribunais constitucionais com competência para exercer o controle de constitucionalidade de leis e atos do Poder Público. Para o Ministro, o movimento entre as duas posições costuma ser pendular e varia em função do grau de prestígio dos outros dois Poderes. Sua definição de autocontenção judicial seria conduta na qual o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes. Por essa linha, juízes e tribunais (a) evitam aplicar diretamente a Constituição a situações que não estejam no seu âmbito de incidência expressa, aguardando o pronunciamento do legislador ordinário; (b) utilizam critérios rígidos e conservadores para a declaração de inconstitucionalidade de leis e atos normativos; e (c) abstêm-se de interferir na definição das políticas públicas. O Ministro entende que até o advento da Constituição de 1988, essa era a inequívoca linha de atuação do Judiciário no Brasil, mas tudo mudou no cenário pós-Constituição de 1988, assunto que será debatido nos próximos itens deste texto.
Borges, Corrêa e Villarroel (2016) chamam a atenção para o caráter ideológico das decisões ativistas dos juízes. Para esses autores, decisões judiciais, quaisquer que sejam, são intrinsecamente políticas e, consequentemente, ideológicas. Além disso, o ativismo judicial para definir os rumos políticos do país, sobretudo os partidários, “revelariam ainda que o judiciário não só está dentro da sociedade, mas também ‘joga o jogo’ desta, tem partido, toma posição e segue as ondas ideológicas de setor específico da sociedade, qual seja, os setores mais abastados tendo em vista a formação elitizada dos juízes” (p. 43). Tendo isso em mente, definem ativismo judicial como uma ação do órgão jurisdicional no sentido de alterar certos contextos político-sociais, utilizando-se de um juízo necessariamente valorativo, ou seja, situando-se no âmbito da subjetividade individual, podendo ser conservador ou progressista. Por fim concluem que existe uma diferença entre o ativismo judicial na garantia de direitos e o ativismo judicial na esfera política. A primeira dimensão está ligada ao interesse do magistrado em promover a mudança social ou acelerá-la, enquanto a segunda apresenta-se como a vontade do magistrado em guiar e direcionar os rumos políticos do povo e, consequentemente, do país.
Para Mônia Clarissa Hennig Leal (2014), mesmo quando a intenção é acelerar a mudança social desejada pela comunidade, a atividade jurisdicional dos Tribunais Constitucionais pode ultrapassar, em certa medida, a função meramente negativa de controle, adotando uma dimensão construtiva e criativa, assentada na necessidade de concretização dos princípios e dos direitos fundamentais extraídos dos textos das Constituições, onde figuras como as sentenças interpretativas e as sentenças manipulativas [1] tornam-se cada vez mais frequentes, assim como os recursos a instrumentos hermenêuticos que viabilizem e instrumentalizem a tarefa de realização e garantia dos direitos fundamentais.
Neste ponto, surge a inescapável dúvida se o ativismo judicial é um conceito que, ao se concretizar em uma das várias dimensões apontadas pelos estudiosos, num determinado contexto sociopolítico e ideológico, traria uma carga axiológica positiva ou negativa considerando as necessárias relações democráticas entre os poderes e a vontade popular soberana, afinal, os representantes dos Poderes Legislativo e Executivo são eleitos pelo povo, e os do Judiciário teriam papel contra majoritário. Quem deve dizer a última palavras sobre a aplicação da lei ou das políticas públicas, especialmente em questões sensíveis? Não há uma resposta unânime e fácil para uma questão tão complexa, havendo juristas defendendo ambos os pontos de vista. Algumas das reflexões construídas sobre a temática serão explicitadas a seguir, numa tentativa de contribuir para a compreensão das causas e consequências do ativismo judicial, especialmente no Brasil.
Anderson Vichinkeski Teixeira (2012) diferencia posturas ativistas positivas e nocivas e denomina ativismo judicial positivo como aquele que se enquadra no padrão de racionalidade jurídica vigente no ordenamento em questão e busca, em última instância, assegurar direitos fundamentais ou garantir a supremacia da Constituição. Por outro lado, entende nociva toda prática ativista que fuja desse quadro ou persiga, sobretudo, a preponderância de um padrão de racionalidade eminentemente político. Baseando-se nas dimensões apontadas por Kmiec (2004), o autor considera práticas nocivas à estabilidade interinstitucional e ao ordenamento constitucional as seguintes posturas: invalidar ou afastar a aplicabilidade de atos oriundos de outros Poderes, afastar a aplicação de precedentes judiciais horizontais ou verticais, atuar como legislador (mesmo quando deva ser legislador negativo) e fazer julgamentos predeterminados a fins específicos (decisionismo político).
Especificamente no que diz respeito ao afastamento da aplicação de precedentes, o Supremo Tribunal Federal não estaria legalmente adstrito a seus próprios precedentes, mas o Tribunal lhes deveria respeito, seja para confirmá-los, seja para afastá-los por distinção ou superação. Na jurisprudência constitucional, a força do precedente se funda sobre a natureza da constituição como uma norma duradoura, destinada a estabilizar a vida política e social, subtraindo-a à inconstância das vicissitudes quotidianas. Sem dúvida, os precedentes funcionariam como uma força a favor da objetividade (impessoalidade) e, consequentemente, redução da discricionariedade (voluntarismo) nos julgamentos (ARAÚJO, 2018).
Retomando a opinião de Anderson Vichinkeski Teixeira (2012), a forma mais nociva de ativismo judicial é aquela que “ocorre quando a decisão judicial tem um fim político e depende da negação à tutela de interesses legítimos de alguma parte da ação, fundamentando-se em argumentos que transcendem a racionalidade jurídica” (p. 48). Mas o autor também conclui que o Judiciário não pode corroborar a omissão administrativa ou legislativa, pois a norma jurídica conterá inevitavelmente um “vazio” a preencher hermeneuticamente, o que deve ser feito mediante interpretação limitada pelo sentido da lei e pela vontade do legislador, o que seria uma forma de ativismo judicial positivo:
Quanto a uma possível definição de ativismo judicial positivo, entendemos que a sua caracterização ocorre com a existência de algum dos seguintes elementos (...):
1. Decisão que busque primordialmente assegurar direitos fundamentais;
2. Decisão orientada à garantia da supremacia da Constituição;
3. Decisão fundamentada substancialmente em princípios jurídicos, sobretudo em princípios constitucionais;
4. Decisão sustentada por técnicas hermenêuticas que não extrapolem a mens legis e não derroguem a mens legislatoris do ato normativo em questão.
(...) Mais importante do que estabelecer uma definição conceitual dogmaticamente precisa de ativismo judicial ou então bradar contra toda e qualquer espécie sua, devemos reconhecer que se trata de uma patologia constitucional cada vez mais necessária – desde que seja na sua vertente positiva –, para a proteção do indivíduo contra omissões ou excessos do Estado. Hipoteticamente, a partir de um critério de negação, o que ocorreria se também o Judiciário decidisse abandonar uma postura ativista e passasse a se omitir diante das ofensas aos direitos fundamentais que muitas vezes são perpetradas pelo próprio Estado? A quem restaria recorrer? (p. 52).
Considerando tudo que foi exposto até aqui, fica claro que o uso da expressão ativismo judicial sem a devida contextualização a torna esvaziada de sentido. Thiago Aguiar Pádua (2015) alerta que a expressão ativismo judicial se converteu em uma espécie de “clichê constitucional”, destinado à simplificação excessiva das questões a ela relacionadas e, assim sendo, destinada a se tornar um argumento que na realidade passa a ser um “não argumento”. No entanto, quando explicado com cuidado, o termo pode ser um ponto de partida para uma conversa significativa sobre o papel do Poder Judiciário, uma oportunidade para fazer as perguntas necessárias que vão além do superficial (KMIEC, 2004).
Portanto, pode-se dizer que ativismo judicial é uma determinada postura do órgão jurisdicional que, em determinado contexto político e social, caracteriza-se como uma atuação preponderante frente aos demais poderes do Estado, seja para conferir concretude e eficácia às normas constitucionais, especialmente na defesa dos direitos fundamentais, seja para interferir politicamente no cenário das relações interinstitucionais, ultrapassando determinados limites impostos pelo ordenamento jurídico. No item a seguir, será feita uma análise do ativismo judicial no Brasil e explicitada sua distinção do fenômeno da judicialização da política e como esta pode servir como estímulo ao ativismo judicial.