Artigo Destaque dos editores

Ativismo judicial do STF e implicações políticas em face do Executivo e Legislativo

Exibindo página 2 de 4
Leia nesta página:

2 A DISTINÇÃO ENTRE JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E ATIVISMO JUDICIAL NO CONTEXTO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

2.1 A superação da teoria clássica da separação dos poderes

À medida que as sociedades evoluem e as relações sociais e políticas tornam-se mais complexas, os diálogos institucionais entre os Poderes também se modificam, havendo uma alternância da preponderância de um poder sobre o outro ao longo das décadas conforme o modelo de Estado que melhor atende à vigente conjuntura de forças. Esse é o entendimento de Clarissa Tassinari e Danilo Pereira Lima no artigo intitulado “A Problemática da Inefetividade Constitucional no Brasil: O Estado Patrimonialista e o Ativismo Judicial”, datado de 2011. Segundo os autores, durante a formação do Estado Liberal de Direito, havia um contexto de forte preocupação com a limitação do poder estatal, fazendo com que a predominância na atuação institucional ficasse com o Poder Legislativo, organizado nesse período como representante legítimo do povo para coibir o excesso de poder exercido pelas monarquias europeias.

Mais tarde, com a formação do Estado Social de Direito, a predominância na atuação institucional foi transferida para o Poder Executivo, como condição necessária para a realização das políticas públicas contidas nesse modelo, marcado por características fortemente intervencionistas na economia. Por último, com o advento de constituições compromissórias e, consequentemente, com o surgimento do Estado Democrático de Direito, questões exclusivamente relegadas ao campo da política tornaram-se jurídicas, na medida em que a exigência da efetivação dos direitos se tornou judicializada. Com isso, houve um redimensionamento do papel do Judiciário, fenômeno que ocorreu no mundo todo, especialmente como produto do que ficou conhecido como novo constitucionalismo (ou constitucionalismo do segundo pós-guerra) (TASSINARI; LIMA, 2011).

A noção de Estado Democrático de Direito está indissociavelmente ligada à racionalização, humanização e concretização dos direitos constitucionais, pois um dos pilares sustentadores desse paradigma constitucionalista é, sem dúvida, a democracia (MORAES, 2012; ROCHA et al., 2017). Após um longo período de intervenções militares, golpes de Estado e governos autoritários, a sociedade brasileira construiu sua Constituição democrática, dirigente e compromissória. Entretanto, pouco se conseguiu na efetivação desse modelo pois, dentre outras situações, não se operou uma verdadeira ruptura com as velhas estruturas, mantendo-se, por exemplo, o velho modelo de Estado patrimonialista e estamental (TASSINARI; LIMA, 2011). Apesar disso, a Constituição brasileira de 1988 teve o mérito de alçar princípios importantes como cidadania e dignidade da pessoa humana ao status de fundamentos da República, utilizando estes termos em sentido abrangente, e não apenas técnico-jurídico, sinalizando que o Estado deve atuar de modo a incentivar e oferecer condições propícias à efetiva participação dos indivíduos nas decisões políticas do País e terem reconhecidas suas posições jurídicas (PAULO; ALEXANDRINO, 2018).

José Murilo Duailibe Salém Neto, Aline Matias Lima e Arthur Linhares (2017), em artigo sobre a judicialização das relações para a concretização dos direitos fundamentais no Brasil, corroboram esse entendimento ao afirmar que o ativismo judicial decorre do próprio espírito da Carta Constitucional de 1988, que busca atender os anseios sociais do povo brasileiro. Considerando as frequentes omissões dos poderes Executivo e Legislativo no atendimento desses anseios, o Judiciário termina por se sobressair, numa prática nem sempre voluntária, ao explorar ao máximo a hermenêutica constitucional.

Nesse mesmo sentido, Carlos Alexandre de Azevedo Campos (2014) observa que o ativismo judicial no Brasil se tornou fenômeno de particular importância a partir da Constituição Federal de 1988 e do período de redemocratização do País. A facilitação do acesso à justiça, o fortalecimento do Ministério Público e o aperfeiçoamento de instrumentos processuais de defesa dos cidadãos, como a ação civil pública e a ação popular, reforçaram as transformações institucionais que tornaram o Judiciário um proeminente ator no controle dos poderes políticos e na concretização de direitos dos cidadãos. No quadro geral de ascensão do Poder Judiciário, foi o Supremo que incontestavelmente ganhou mais visibilidade e participação nas decisões políticas e governamentais. Portanto, a imperfeição da democracia brasileira forçou o Judiciário a se imiscuir em assuntos políticos, pois os direitos constitucionalmente estabelecidos não se concretizaram a contento.

Neste contexto, Gerson Ziebarth Camargo (2016) entende que é inegável a tendência de superação da teoria clássica da separação de poderes pela teoria da preponderância de um poder sobre o outro:

De Aristóteles e do Iluminismo aos dias atuais, defende-se a tese de que o detentor do poder é o povo e de que todo aquele que detém o poder tende a dele abusar. Por isso, a necessidade de um sistema de freios e contrapesos entre os órgãos que, autorizados pelo titular do poder constituinte, exercem o poder. Entretanto, a concepção clássica dos poderes já não consegue mais ex­plicar as complexas relações em seu exercício. Já se fala hodiernamente, a despeito do tradicional sistema de freios e contrapesos, em preponderância de um poder sobre o outro. Isso porque as exigências sociais fizeram o Estado mudar, alterando, por sua vez, a relação entre os poderes. Em uma época em que o Estado assumia uma essência liberal, clara­mente se constatou o Poder Legislativo como protagonista das relações sociais. Por sua vez, quando o Estado avocou prestações positivas, o que se chamou de Estado social, o Poder Executivo atraiu as expectativas sociais para si. Hoje, em um cenário de Estado democrático de direito, o foco volta-se contundentemente para o Judiciário. Assim, é possível verificar que, em nenhum momento da história do direito houve um equilíbrio formal e uma justa distri­buição entre as atribuições dos poderes, pois as demandas e reivindicações da sociedade ora requeriam maior participação de um poder, ora de outro. Discute-se, portanto, uma nova teoria de separação de poderes que não se resuma tão somente à aparência formal e historicamente a ela. (p. 233-234).

Portanto, a consequência desse fenômeno de preponderância do Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito, em detrimento principalmente do Poder Legislativo, seria, para Gerson Camargo (2016), uma das causas da emergência do ativismo judicial. No cenário brasileiro, pelo fato de os magistrados, agentes públicos não eleitos, exercerem um poder político que eventualmente contra­ria as disposições dos demais poderes representantes da vontade popular, torna-se cada vez mais comum o surgimento de controvérsias e questionamentos sobre a possibilidade de o Poder Judiciário ter ou não legitimidade para inovar o ordenamento jurídico ou invalidar decisões daqueles que foram escolhidos pelo povo.

No item a seguir, discute-se como o protagonismo judicial decorrente do novo modelo de Estado Democrático de Direito tem contribuído para a judicialização da política e para o ativismo judicial, entendidos como fenômenos distintos.

2.2 Distinção entre judicialização da política e ativismo judicial

No artigo “O Ativismo Judicial e Constrangimentos a Posteriori”, Luiz Henrique Diniz Araújo (2018) elenca diversos fatos que estão relacionados a esse empoderamento do Poder Judiciário no cenário pós Constituição de 1988:

  • O Supremo Tribunal Federal foi dotado de diversas competências originárias: ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual (ADI; CF, art. 102, I, a); ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO; CF, art. 102, § 2.º); arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF; CF, art. 102, parágrafo único); mandado de injunção para sanar omissão de norma regulamentadora que torne inviável o exercício de direitos e liberdades constitucionais, assim como prerrogativas inerentes à nacionalidade, à so­berania e à cidadania (CF, art. 5, LXXI); mandado de segurança e habeas data contra atos de autoridades sujeitas à sua jurisdição (CF, art. 102, I, d); controle difuso de constitucionalidade (CF, art. 102, III, a, b e c); ampliação dos legitimados à propositura de ação direta de inconstitucionalidade;

  • A Emenda Constitucional nº 03/93 criou a ação declaratória de constitucionalidade (ADC), atribuindo legitimidade ativa a muitos atores, tais como o Presidente da República, as Mesas do Senado e da Câmara dos Deputados e o Pro­curador-Geral da República;

  • No plano infraconstitucional, as Leis nº 9.868/1999 e 9.882/1999, que trazem normas processuais sobre a ADI, ADC e a ADPF, fortaleceram e expandiram os poderes do Supremo Tribunal Federal em relação ao controle concentrado de constitucionalida­de, com a possibilidade de modulação temporal de efeitos, declaração de nulidade par­cial sem redução do texto e participação de amici curiae. Com a ADPF, fica o Supremo Tribunal Federal autorizado a julgar se um determinado ato normativo federal, estadual ou municipal, mesmo que anterior à Constituição, afronta preceito fundamental;

  • A Emenda Constitucional nº 45/04 continuou o processo de empoderamento do Supremo Tribunal Federal, materializando a Reforma do Poder Judiciário. Ampliou o rol de legitimados à propositura da ADC (CF, art. 103, caput), igualando-o ao rol de legitimados para a ADI. Além disso, deu status constitucional ao efeito vinculante da ADI (CF, art. 102, § 2.º). Criou a figura da súmula vinculante (art. 103-A), bem como instituiu a repercussão geral como mais um requisito de admissibilidade de recurso extraordinário (CF, art. 102, § 3.º).

Essas inovações legislativas aportaram profundo incremento nos poderes do Supremo Tribunal Federal, aprofundando a sua participação na vida política do país, bem como a sua aproximação à ideia de uma Corte Constitucional (ARAÚJO, 2018). Marcos Paulo Veríssimo (2008) cita outros sinais da judicialização da vida pública nacional:

  • atribuiu-se a qualquer juiz a tarefa e a prerrogativa de analisar a legalidade de atos produzidos quer pelo Legislativo, quer pelo Executivo, por meio da jurisdição una e controle misto (difuso e concentrado) de constitucionalidade;

  • consagraram-se ideais de liberdade individual e igualdade material, propriedade e redistribuição de renda, liberdade de empresa e dirigismo econômico por meio do texto constitucional, transformando em regra jurídica um conjunto amplo e por vezes contraditório de anseios sociais e políticos e outorgando à justiça a tarefa de implementar esse plano difuso de ação;

  • outorgou-se ao Ministério Público garantias de independência semelhantes às entregues ao próprio judiciário, positivando-se sua competência para agir em proteção de qualquer interesse social, coletivo ou difuso;

  • ampliou-se o rol de legitimados ao controle de constitucionalidade das leis, cuja iniciativa está à disposição da sociedade civil por meio dos partidos políticos, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, das confederações sindicais ou das entidades de classe de âmbito nacional;

  • previram-se juizados especiais para pequenas causas cíveis, criminais e federais;

  • estabeleceu-se constitucionalmente a legitimidade processual das associações para representarem seus filiados em juízo;

  • constitucionalizaram-se inúmeros princípios processuais;

  • ampliou-se a regulamentação da justiça e seus órgãos essenciais no texto constitucional, o qual traz 44 de seus 250 artigos com menção direta a esses órgãos, sem prejuízo de outras citações indiretas espalhadas ao longo de toda a Constituição;

  • criaram-se também, por força da nova Carta, cinco novos tribunais de apelação em nível federal (os Tribunais Regionais Federais - TRFs, tendo sido criado o TRF da 6ª Região em 2021), além de um novo tribunal de sobreposição em matéria infraconstitucional (o Superior Tribunal de Justiça - STJ), destinado a absorver parte das competências antes atribuídas ao Supremo Tribunal Federal.

Raquel Botelho Santoro (2014) sugere que a Constituição Federal de 1988 não só optou pela regulação excessiva das matérias políticas, como também previu, por meio de seus próprios dispositivos, instrumentos aptos a conferir ao Judiciário esse poder de interpretação alargada. Nesse contexto, o estabelecimento de diversos princípios e de dispositivo constitucional que impõe que a sua aplicação deva ser feita de forma imediata (CF, artigo 5º, §1º) estimulam essa nova hermenêutica e dão margem a um papel cada vez mais expansivo do Poder Judiciário, remodelando as balizas da atividade jurisdicional.

O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, no artigo “As Súmulas Vinculantes no Brasil e a Necessidade de Limites ao Ativismo Judicial”, de 2012, também compreende que houve uma ampliação da atuação do Poder Judiciário a partir da Constituição Federal de 1988, exacerbada pela inércia dos poderes políticos em concretizarem as normas constitucionais. Senão, vejamos:

No Brasil, a partir do fortalecimento da Jurisdição Constitucional pela Constituição de 1988, principalmente pelos complexos mecanismos de controle de constitucionalidade e pelo vigor dos efeitos de suas decisões, em especial os efeitos erga omnes e vinculantes, e das “Súmulas Vinculantes”, somados à inércia dos Poderes Políticos em efetivar totalmente as normas constitucionais, vem permitindo que novas técnicas interpretativas ampliem a atuação jurisdicional em assuntos tradicionalmente de alçadas dos Poderes Legislativo e Executivo. A possibilidade do Supremo Tribunal Federal em conceder interpretações conforme à Constituição, declarações de nulidade sem redução de texto, e, ainda, mais recentemente, à partir da edição da Emenda Constitucional n. 45/04, a autorização constitucional para editar, de ofício, Súmulas Vinculantes não só no tocante à vigência e eficácia do ordenamento jurídico, mas também em relação à sua interpretação, acabaram por permitir, não raras vezes, a transformação da Corte em verdadeiro legislador positivo, completando e especificando princípios e conceitos indeterminados do texto constitucional; ou ainda, moldando sua interpretação com elevado grau de subjetivismo (p. 267).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

O também Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes (2011, 2014), ao tratar da legitimidade, transparência e segurança jurídica do controle de constitucionalidade, demonstra que a jurisdição constitucional brasileira pode ser caracterizada pela originalidade e diversidade de instrumentos processuais destinados à fiscalização da constitucionalidade dos atos do Poder Público e à proteção dos direitos fundamentais, como a ADI, a ADC, o mandado de segurança, o habeas corpus, o habeas data, o mandado de injunção, a ação civil pública e a ação popular. Todo esse aparato de garantias e controles resultaram numa sobrecarga da Corte Constitucional, especialmente com o aumento do número de recursos extraordinários decorrente do controle difuso de constitucionalidade. No entanto, ressalta o Ministro, à demanda cada vez maior da sociedade a Corte tem respondido com profundo compromisso com a realização dos direitos fundamentais. E arremata que o caráter pluralista e aberto das Cortes Constitucionais é fundamental para o reconhecimento de direitos e a realização das garantias constitucionais. Nesse sentido, o Supremo Tribunal estaria se consolidando como instituição vital à democracia, decidindo casos relevantes com responsabilidade e, sobretudo transparência, referindo-se, neste caso, à publicização das sessões da corte em canal de televisão.

Em vários textos de sua autoria, o jurista Lênio Streck manifesta preocupação com as posturas voluntaristas dos juristas, considerando como o grande dilema contemporâneo a ausência de controles à interpretação do direito. Em um contexto de afirmação das Constituições e de judicialização da política, existe o risco de posturas subjetivistas redundarem em um fortalecimento do protagonismo judicial, fragilizando sobremodo o papel da doutrina ou da própria Constituição. Para o autor, o sentido da norma não está à disposição do intérprete e o drama da discricionariedade transforma juízes em legisladores:

Nesse sentido, é importante lembrar que é nesse contexto de afirmação das Constituições e do papel da jurisdição constitucional, que teóricos dos mais variados campos das ciências sociais – principalmente dos setores ligados à sociologia, à ciência política e ao direito – começaram a tratar de fenômenos como a judicialização da política e o ativismo judicial. Ambos os temas passam pelo enfrentamento do problema da interpretação do direito e do tipo de argumento que pode, legitimamente, compor uma decisão judicial. Esse é o grande dilema contemporâneo. Superadas as formas de positivismo exegético-racionalista (formas exegéticas), os juristas ainda não conseguiram construir as condições para o controle das posturas voluntaristas. (...) Se antes o intérprete estava assujeitado a uma estrutura pré-estabelecida, já a partir do século XX o dilema passou a ser: como estabelecer controles à interpretação do direito e evitar que os juízes se assenhorem da legislação democraticamente construída? (STRECK, 2011, p. 3).

Abre-se um parêntese neste ponto para elucidar o fenômeno do “neoconstitucionalismo”, ou o “novo constitucionalismo”. Trata-se de um movimento jurídico, filosófico, sociológico e polí­tico com o objetivo principal de limitar o poder do Estado por meio da inserção de direitos fundamentais compilados em uma Constituição, que se caracteriza por: reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e a valorização da sua importância no processo de aplicação do direito; atenção maior à ponderação do que à simples subsunção; participação mais frequente da filosofia nos debates jurídicos; comunhão de técnicas subsuntivo-jurí­dicas e éticas; onipresença da Constituição, dentre outras, mostrando a irradiação das normas e valores constitucionais para todos os ramos do direito (CAMARGO, 2016).

Para o ilustre professor Streck (2014), sob a bandeira do neoconstitucionalismo estão o uso da ponderação, a recepção da jurisprudência dos valores e o entendimento equivocado sobre os princípios, todos eles, posturas que promovem a discricionariedade judicial e que abandonam o problema interpretativo à vontade decisionista do aplicador de normas, enfraquecendo demasiadamente a legalidade constitucional.

Destarte, passadas mais de duas décadas da Constituição de 1988, e levando em conta as especificidades do direito brasileiro, é necessário reconhecer que as características desse neoconstitucionalismo acabaram por provocar condições patológicas, que, em nosso contexto atual, acabam por contribuir para a corrupção do próprio texto da Constituição. Ora, sob a bandeira “neoconstitucionalista”, defende-se, ao mesmo tempo, um direito constitucional da efetividade; um direito assombrado pela ponderação de valores; uma concretização ad hoc da Constituição e uma pretensa constitucionalização do ordenamento a partir de jargões vazios de conteúdo e que reproduzem o prefixo neo em diversas ocasiões, tais quais: neoprocessualismo (sic) e neopositivismo (sic). Tudo porque, ao fim e ao cabo, acreditou-se ser a jurisdição responsável pela incorporação dos “verdadeiros valores” que definem o direito justo (vide, nesse sentido, as posturas decorrentes do instrumentalismo processual) (STRECK, 2014, p. 27).

Outro importante jurista que aponta consequências desfavoráveis ao neoconstitucionalismo é o professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Daniel Sarmento, que assim se manifesta sobre o tema [2]:

Não gosto muito da expressão “neoconstitucionalismo”, que foi popularizada no Brasil por uma ótima coletânea do professor mexicano Miguel Carbonell, que circulou muito por aqui, e por excelentes artigos do Luís Roberto Barroso. (...) O que os neoconstitucionalistas parecem ter em comum é a defesa de um novo paradigma jurídico que envolve, dentre outros elementos: a) a afirmação da centralidade da Constituição no ordenamento jurídico; b) o reconhecimento da força normativa e irradiante dos seus princípios; c) o recurso a métodos mais flexíveis na adjudicação, como a ponderação de interesses; d) a defesa da permeabilidade da interpretação jurídica a considerações de ordem moral; e) a constatação e defesa de um certo protagonismo judicial na vida política e social, que se justificaria pela necessidade de proteção e promoção dos princípios constitucionais, especialmente os ligados aos direitos fundamentais.

Vitor Soliano (2012) resume bem a problemática do neoconstitucionalimo no Brasil. Se por um lado esse movimento influenciou fortemente a atuação judicial na direção de um constitucionalismo sério, por outro lado não conseguiu criar limites à atividade jurisdicional de concretização da Constituição. Parecem ter faltado mecanismos teóricos suficientemente adequados para lidar com a criatividade judicial e com um substancialismo democrático.

Retomando as preocupações de Lênio Streck com a ausência de controle da interpretação jurídica, interessante ressaltar suas considerações sobre a relação direta entre o ativismo judicial e o presidencialismo de coalização adotado no País. As constantes dificuldades encontradas pelo governo para constituir uma maioria parlamentar no Congresso Nacional reforçam a instabilidade política e acarretam o mau funcionamento dos Poderes Executivo e Legislativo. A consequência disto é a exigência da participação do Poder Judiciário na resolução dos conflitos, o qual termina sofrendo pressões das mesmas coalizões que atuam no âmbito do governo, e perdendo o fundamento jurídico de suas decisões em prol de sempre ter uma decisão (política) favorável (STRECK, 2013).

Essa maior interferência do Judiciário na política, tal qual descrita por vários autores, muitas das vezes é confundida com ativismo judicial. No entanto, a atividade jurisdicional pode se articular não apenas a partir da perspectiva do ativismo judicial, mas também a partir da judicialização da política (TASSINARI; LIMA, 2011). Já foi explicado no item anterior que existe a dificuldade em se estabelecer a abrangência do significado de tais expressões, o que dificulta sua diferenciação, entretanto, já é quase um consenso na literatura jurídica especializada que judicialização não é sinônimo de ativismo judicial.

Embora ambos os fenômenos proporcionem um maior protagonismo do Poder judiciário, a judicialização é uma escolha do constituinte, devido ao modelo constitucional abrangente, como é o caso da Constituição de 1988, que busca proteger e garantir o mais amplo rol de direitos possível. Já o ativismo não é uma escolha legislativa, mas sim uma atitude, um modo proativo de interpretar a constituição, avançando sobre as posições dos outros Poderes (SANTOS, 2014). Com certa frequência, a judicialização e o ativismo são vistos como acomodações institucionais e funcionais pós-ditatoriais (BORGES; CORRÊA; VILLARROEL, 2016).

Clarissa Tassinari (2016) corrobora esse entendimento ao afirmar que o movimento constitucionalista do pós-Segunda Guerra Mundial redefiniu o papel do Poder Judiciário como instância de resolução das questões políticas mais importantes da sociedade. Disso resultou a percepção da atuação judicial de duas formas: ativismo judicial como postura arbitrária (discricionária) do Poder Judiciário, e judicialização da política como decorrente de condições políticas (exemplo, a ausência de concretização de direitos assegurados). Em suma, a judicialização é consequência de uma escolha legislativa e, ativismo, de uma postura protagonista voluntária do judiciário.

A compreensão do fenômeno da judicialização da política perpassa pela compreensão de que o intricado tecido social e político de um Estado se desenvolve a partir do modelo constitucional por ele adotado. Os tribunais constitucionais são os responsáveis pela interlocução entre o conteúdo programático constitucional e a vivência cotidiana das sociedades por meio do seu filtro interpretativo, que não deixa de ser influenciado pelo conjunto de valores morais incrustados na compreensão que essas sociedades têm de si mesmas. Como afirma Miguel Carbonell, em sua obra “Presentación: El neoconstitucionalismo en su laberinto”, de 2007, a cada modelo de Constituição corresponde uma forma interpretativa específica, não sendo possível escolher entre alternativas de interpretação porque se trata de uma proposta metajurídica e não de dogmática jurídica. Ora, a partir do momento em que a Constituição estabelece que as políticas públicas são os instrumentos adequados de realização dos direitos fundamentais, por certo que se trata de matéria constitucional sujeita ao controle interpretativo do Judiciário.

Pensar que a inércia dos poderes Executivo e Legislativo de dispor sobre políticas públicas não desencadearia um aumento de demanda sobre o Poder Judiciário para a consecução da efetividade dessas políticas, seria supor que a Constituição é apenas um documento desprovido de normatividade. Estefânia Maria de Queiroz e Katya Kozicki, ao tratar de judicialização da política e controle judicial de políticas públicas (2012), afirmam que é difícil encontrar uma única causa para justificar a judicialização da política. No entanto, defendem que são os partidos políticos ou grupos de interesses que transferem muitas das questões políticas para os Tribunais. Assim sendo, verificam que o Poder Judiciário tem sido utilizado como arena política paralela, onde minorias políticas que não se sobressaem no âmbito de discussão deliberativa parlamentar têm a possibilidade de ter protegidos os seus direitos ou interesses. Nesse caso, isto não pode ser visto como um fenômeno jurídico ou um fenômeno de usurpação das funções dos outros poderes pelo Judiciário.

A judicialização das políticas públicas em saúde no Brasil é emblemática. O problema da judicialização do direito à saúde não envolve apenas os operadores do Direito, mas também os gestores públicos, os profissionais da área da saúde e a sociedade civil. As decisões judiciais sobre o tema transformaram-se em um confronto entre os elaboradores e os executores das políticas públicas (MAAS; LEAL, 2018). Essa judicialização, segundo Ana Paula Oliveira Ávila e Karen Cristina Correa de Melo (2018), iniciou sua expansão na década de 90, principalmente devido ao crescimento dos índices de infecção pelo vírus HIV, causador da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA) ou AIDS, no acrônimo em inglês. A ascensão da epidemia da AIDS no Brasil, gerando forte mobilização dos porta­dores da doença e seus familiares, estimularam a sociedade civil a buscar o fornecimento de tratamento para a doença junto ao poder público, com fundamento no direito constitucional à vida e à saúde. Conforme as autoras, o aspecto positivo dessa mobilização dos cidadãos foi a promoção da organização das políticas públicas, como a implantação da política nacional para o tratamento do HIV/AIDS. Porém, como aspecto negativo, houve um aumento de demandas judiciais iniciadas por pacientes, grupos profissionais e indústria na defesa de seus interesses particulares, em desconsideração às políticas públicas, com propensão a desor­ganizar o orçamento público, muitas vezes de forma desproporcional, em prejuízo do interesse coletivo.

Até os dias atuais, remanesce o protagonismo judicial em ações e políticas de saúde, seja determinando internações compulsórias de pacientes em hospitais sem leitos disponíveis, seja determinando o financiamento pelo Estado de medicamentos ou terapias caríssimas, muitas vezes sem respaldo científico. Intensos debates se sucedem a essas decisões, especialmente no que diz respeito à ponderação entre os princípios da reserva do possível (em termos de restrições orçamentárias) versus a dignidade da pessoa humana (direito à vida e à saúde). A título de exemplo, uma decisão do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, do ano de 2011, citando o dever do Estado de prover os meios para garantir a proteção do cidadão e invocando o espírito de solidariedade no qual os entes federativos devem se pautar para conferir efetividade ao direito constitucional da saúde:

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. DIREITO À SAÚDE (ART. 196, CF). FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. SOLIDARIEDADE PASSIVA ENTRE OS ENTES FEDERATIVOS. CHAMAMENTO AO PROCESSO. DESLOCAMENTO DO FEITO PARA JUSTIÇA FEDERAL. MEDIDA PROTELATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. 1. O artigo 196 da CF impõe o dever estatal de implementação das políticas públicas, no sentido de conferir efetividade ao acesso da população à redução dos riscos de doenças e às medidas necessárias para proteção e recuperação dos cidadãos. 2. O Estado deve criar meios para prover serviços médico-hospitalares e fornecimento de medicamentos, além da implementação de políticas públicas preventivas, mercê de os entes federativos garantirem recursos em seus orçamentos para implementação das mesmas. (arts. 23, II, e 198, § 1º, da CF). 3. O recebimento de medicamentos pelo Estado é direito fundamental, podendo o requerente pleiteá-los de qualquer um dos entes federativos, desde que demonstrada sua necessidade e a impossibilidade de custeá-los com recursos próprios. Isto por que, uma vez satisfeitos tais requisitos, o ente federativo deve se pautar no espírito de solidariedade para conferir efetividade ao direito garantido pela Constituição, e não criar entraves jurídicos para postergar a devida prestação jurisdicional. 4. In casu, o chamamento ao processo da União pelo Estado de Santa Catarina revela-se medida meramente protelatória que não traz nenhuma utilidade ao processo, além de atrasar a resolução do feito, revelando-se meio inconstitucional para evitar o acesso aos remédios necessários para o restabelecimento da saúde da recorrida. 5. Agravo regimental no recurso extraordinário desprovido” (RE nº 607.381-AgR/SC, Primeira Turma, Relator o Ministro Luiz Fux, DJe de 17/6/11).

De tanto ser demandado a decidir em ações sobre o direito à saúde, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu três orientações jurisprudenciais sobre o assunto, conforme a opinião de Ana Paula Oliveira Ávila e Karen Cristina Correa de Melo (2018). Segundo as autoras:

Na primeira, existe uma política pública e o direito está regulamentado, e o Judiciário, ao deferir determinada prestação, está apenas a determinar seu cumprimento, numa ma­nifestação típica da função jurisdicional stricto sensu, sem que se verifique qualquer exacerbação no exercício das competências constitucionalmente cometidas ao Judici­ário. Na segunda, a política pública já foi implementada e está sendo executada, mas o Judiciário concede prestação que não foi previamente incluída pelo Poder Público (omissão parcial). Neste caso manifesta-se um ativismo judicial na imposição de de­veres à Administração Pública sem prévia cominação legal ou provisão orçamentária, tanto em demandas coletivas quanto em individuais. Esta hipótese revela-se particular­mente delicada à medida que a concessão de medicamentos e terapias não registrados pressupõe conhecimentos técnicos que os magistrados geralmente não possuem. Na terceira situação, inexiste a política pública de cunho social (omissão total) e o Judici­ário determina que seja implementada. O deferimento de uma prestação fática indivi­dual nesses casos, a despeito da inexistência de qualquer regulamentação normativa, caracteriza uma forma de ativismo judicial e os mesmos problemas de falta de conheci­mento técnico relativo à saúde. Contudo, no caso das demandas coletivas (geralmente por ação civil púbica), em vez de conceder prestações materiais, o Poder Judiciário tem determinado que os poderes competentes tomem providências no sentido de formu­lar e implementar a política pública para atender prioridade já fixada na Constituição Federal (p. 85).

Portanto, na opinião das autoras, o Poder Judiciário está sendo ativista quando determina a execução de prestações de saúde não previstas nas políticas públicas instituídas para favorecer determinados indivíduos. Por outro lado, nas demandas coletivas, quando se abstém de conceder prestações materiais e determina que o poder competente tome as providências necessárias de maneira técnica, o Judiciário privilegia o adequado relacionamento institucional. Esta última orientação jurisprudencial seria a nova tendência da Corte Constitucional, preservando as competências legislativas e administrativas para que as instituições ou entes federativos executem suas funções e cumpram os deveres constitucionalmente impostos. “Essa espécie de terceira via de atuação judicial na judicialização das políticas públicas, com o Judiciário colocando-se como um articulador entre os demais poderes, tem sido referido na doutrina constitucional como a teoria do ‘Diálogo Institucional’” (ÁVILA; MELO, 2018, p. 86), que revela que a tradicional polarização autorrestrição x ativismo judicial está cedendo lugar a uma nova forma de relação, voltada a potencializar as capacidades institucionais de cada órgão, evitan­do que o Judiciário se sobreponha ou se substitua aos demais órgãos responsáveis.

Antônio Ezequiel Inácio Barbosa e Martonio Mont’alverne Barreto Lima (2018) definem a Teoria do Diálogo Institucional da seguinte forma:

Nessa ambiência, a postura dialogal, longe de representar o desprestígio ao âm­bito de atribuições próprias de cada instituição surge como componente necessário e lubrificante do postulado da separação dos Poderes. Implica a admissão de que a Corte Suprema e o Congresso Nacional são atores legitimados ao exercício da interpretação constitucional, de modo a afastar toda pretensão de sobreposição hierárquica por par­te de qualquer um deles. Desse modo, a decisão proferida pelo STF em sede de controle de constitucio­nalidade será apenas provisoriamente a última palavra sobre o tema que constitui o seu objeto. Será o derradeiro pronunciamento até que sobrevenha outro do Poder Legis­lativo, que então assumirá temporariamente a função de última palavra, enquanto não seja realizado novo julgamento pela Corte Constitucional. E assim sucessivamente, em um espiral dialético-argumentativo, em que cada nova manifestação sobre o assunto eleva a discussão para um outro patamar. (p. 121)

A teoria do diálogo institucional pode justificar e explicar adequadamente o qua­dro hoje vigente na área da saúde. “Nesse sentido, não se trata apenas de responder qual a instituição mais capaz para decidir sobre a questão, mas de integrar e potencializar as diversas instituições encarregadas das diversas facetas do problema, na medida de suas capacidades” (ÁVILA; MELO, 2018). O Poder Judiciário tem se mostrado aberto a sugestões e encaminhamentos oriundos dos órgãos técnicos envolvi­dos na área da saúde, que são as instâncias responsáveis pelos debates que implicam o conhecimento de protocolos científicos concernentes à ciência médica e farmacêutica. Desse modo, aquilo que parecia uma tendência na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal está se conso­lidando também no plano da realidade: o Poder Judiciário reconhece a neces­sidade de diálogo com as demais instituições responsáveis pela efetivação da saúde (ÁVILA; MELO, 2018, p. 104).

Se no campo da saúde o STF parece estar se abrindo para uma moderna atuação de mediação interinstitucional, em outras áreas ainda há longo caminho a percorrer. No caso das uniões homoafetivas, o Supremo Tribunal Federal reinterpretou os signi­ficados dos conceitos de homem e mulher para reconhecer as uniões de pessoas do mesmo sexo, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4.277 e da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 132, da relatoria do Min. Carlos Ayres Britto, com julgamento em 5/5/2011. Ao decidir essas ações, o Su­premo Tribunal fez a interpretação conforme do artigo 1.723 do Código Civil, entendendo pela mutação constitucional do artigo 226, § 3.º, da Constituição Federal e reconhecendo a pessoas do mesmo sexo (união homoafetiva) o regramento infraconstitucional da união estável. Isso resultou em muitas acusações de ativismo judicial ao Supremo Tribunal.

Entretanto, uma análise mais aprofundada da questão parece indicar que houve apenas mais um caso de judicialização de questão política, pelo menos esse é o entendimento de Luiz Henrique Diniz Araújo (2018). Segundo o autor, apesar da interpretação inovadora em relação aos conceitos de homem e mulher adotados pela legislação, a despeito de parcela da sociedade ainda não estar preparada para a evolução dos costumes, é importante considerar que o ordenamento brasileiro já há algum tempo vinha progressivamente reconhecen­do direitos aos casais homoafetivos. Por essa razão, o Supremo Tribunal Federal não se comportou de forma ativista neste caso, uma vez que não se valeu de uma discricionariedade inapropriada a julgamentos, mas seguiu uma linha evolutiva já esta­belecida durante anos no ordenamento brasileiro.

Nisso não concorda o constitucionalista Daniel Sarmento [3], para quem a decisão do Supremo Tribunal Federal no caso das uniões homoafetivas foi ativista. In verbis,

Considero que a postura mais ativista da Corte foi correta em alguns casos, e equivocada em outros. A decisão sobre a união homoafetiva, por exemplo, me parece ativista, pois o STF se baseou em princípios constitucionais abstratos, de elevado teor moral, para resolver uma questão altamente controvertida na sociedade, não dando tanto peso aos elementos literal e histórico da interpretação constitucional. Foi, na minha opinião, uma excelente decisão, talvez a mais importante da história da Corte em matéria de direitos humanos, que protegeu os direitos mais básicos de uma minoria estigmatizada. Já a decisão de Raposa Serra do Sol, na parte em que impôs condicionantes às futuras demarcações de terras indígenas, também foi ativista. Neste caso, porém, acho que foi um ativismo ilegítimo: o STF praticamente atuou como legislador e impôs graves restrições a direitos básicos de uma minoria étnica vulnerável, que estão em total desacordo com o texto constitucional e com a normativa internacional sobre direitos humanos. Ao julgar os embargos declaratórios opostos contra tal decisão, o lado negativo das condicionantes foi em certa medida suavizado, já que o Supremo esclareceu que elas não são vinculantes para outros casos, mas não foi eliminado, uma vez que tais restrições aos direitos indígenas foram confirmadas, tendendo a pautar a atuação do Judiciário brasileiro em outros processos.

Entretanto, o Poder Legislativo, ou ao menos parte dele, não ficou nada satisfeito com esse posicionamento e nem com o reconhecimento da interrupção terapêutica da gestação de fetos anencefálicos, uma vez que provocou a formulação da Proposta de Emenda Constitucional nº 33/2011, de autoria da bancada evangélica da Câmara dos Deputados, propondo medidas de controle da atuação do Supremo Tribunal Federal, tais como revisão ou ratificação de seus julgados (ARABI, 2013).

Portanto, a judicialização da política representa o “debruçamento jurisdicional” sobre um conjunto de matérias sob as quais o Judiciário, simplesmente, não possui controle, representando dimensões preexistentes em relação à sua atuação/atividade, refletindo-se como razões de ordem político-sociais que podem ser pensadas de diversas maneiras para além da estrita dimensão jurisdicional. Já o ativismo judicial apresenta uma natureza diversa, se caracterizando como uma ação do órgão jurisdicional no sentido de alterar certos contextos político-sociais (BORGES; CORRÊA; VILLARROEL, 2016).

Para Elival da Silva Ramos (2010), ativismo judicial significa a ultrapassagem das linhas demarcatórias da função jurisdicional, em detrimento principalmente da função legislativa, mas, também, da função administrativa e, até mesmo, da função de governo, o que acarreta a descaracterização da função típica do Poder Judiciário, com incursão insidiosa sobre o núcleo essencial de funções constitucionalmente atribuídas a outros Poderes. Portanto, para o autor, ativismo judicial é o exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento, o que denota uma sinalização claramente negativa no tocante às práticas ativistas, por importarem na desnaturação da atividade típica do Poder Judiciário, em detrimento dos demais Poderes.

Vanessa Jéssica Mansur Silva (2019), ao discutir a evolução do Poder Judiciário como legislador positivo, apresenta a preocupação sobre o ativismo judicial em face do histórico de autoritarismo no Brasil, havendo o risco de o Poder Judiciário incorrer por esse viés. Porém, a autora compreende que o fenômeno do ativismo estará sempre presente ante a modificação do direito e a morosidade dos poderes políticos. Portanto, preconiza que o Judiciário se paute pelos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, atentando para a vontade popular manifestada na escolha dos seus representantes políticos.

Caso recente e de grande repercussão foi a decisão do pleno do Supremo Tribunal Federal em sede do HC 126.292/SP que contraria frontalmente o inciso LVII do art. 5º da Constituição, ao considerar que é constitucional, no caso de condenação confirmada em segunda instância, mas sem trânsito em julgado, a execução provisória da pena. Essa decisão marca uma mudança de pensamento frente a atuação da Corte nos últimos anos, nos quais ela era considerada como progressista e inclusiva, gerando a falsa impressão de que o ativismo caminha apenas no sentido da efetivação de direitos (BORGES; CORRÊA; VILLARROEL, 2016).

Nessa questão específica, o ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal causou grande impacto social e político no País, pois multiplicaram-se as prisões provisórias com base nesse entendimento do Supremo, decididas de maneira até mesmo automática por juízes e tribunais (alterando o conteúdo da decisão da própria Suprema Corte, que estabeleceu a necessidade de justificativa fundamentada da prisão antes do trânsito em julgado conforme determinados requisitos), dando azo em determinados casos muito polêmicos a acusações de uso de lawfare (perseguição política levada a cabo por meio de decisões judiciais). Posteriormente a Corte reviu seu posicionamento no julgamento de três ações declaratórias de constitucionalidade, relatadas pelo Ministro Maro Aurélio Mello e protocoladas pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B) e pelo antigo Partido Ecológico Nacional, atual Patriota.

Anderson Vichinkeski Teixeira (2012) alerta para as consequências do ativismo judicial em sua vertente nociva, ao sinalizar que ele representa, em última instância, a deslegitimação da Política em relação à sua tarefa essencial de buscar a realização dos valores determinados pela sociedade no cotidiano dessa mesma sociedade. Por sua vez, Daniel Barile da Silveira (2017) critica também a crescente judicialização das relações sociais, pois todas as decisões prolatadas por um órgão jurisdicional comportam reflexos nos campos social e político. Assim, toda ordem emanada de uma autoridade judicial provoca necessariamente uma transformação no universo social, por mínima que seja, e o Poder Judiciário precisa estar atento quanto a essas implicações, sob pena de sofrer profundo desgaste de sua imagem e provocar o enfraquecimento do regime democrático.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORRES, Cristiane Batista Bezerra. Ativismo judicial do STF e implicações políticas em face do Executivo e Legislativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7156, 3 fev. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97425. Acesso em: 25 dez. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos