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Ativismo judicial do STF e implicações políticas em face do Executivo e Legislativo

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3 ATIVISMO JUDICIAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E IMPLICAÇÕES POLÍTICAS SOBRE OS DEMAIS PODERES

3.1 A tensão institucional entre os poderes frente ao ativismo do Supremo Tribunal Federal

Sabe-se que a concentração de competências em sede de um só corpo coletivo ou de uma pessoa não seria compatível com um Estado moderno. Tal é a imprescindibilidade de que haja equilíbrio e controles na relação entre os poderes, que o constituinte originário erigiu o princípio da separação dos poderes como cláusula pétrea no art. 60, §4º, III da Constituição (ÁVILA, 2012). Entretanto, como discutido anteriormente, a verdade é que a divisão de poderes sempre se mostrou, ao longo da história do direito, como imperativo meramente formal, pois o que ocorreu foi um Poder prevalecendo sobre o outro em determinado momento histórico (CAMARGO, 2016).

André Cambuy Ávila (2012) relembra Montesquieu, que em 1748, publicou a obra “Do Espírito das Leis”, na qual elabora conceitos de formas de governo e exercício da autoridade que se tornaram fundamento para o pensamento político moderno. Em Montesquieu, o Poder Judiciário é tratado como poder necessariamente autônomo e independente para ter a força para frear a natural tendência de o governante concentrar diversas competências em si mesmo e abusar dos privilégios que lhe são concedidos. A doutrina de Montesquieu, que preconizava o equilíbrio entre os entes estatais por meio do controle e da distribuição clara de competências serviu de motivação para os constitucionalistas inserirem nas novas Cartas Políticas dos Estados liberais uma exagerada separação dos poderes.

Hoje já se entende que a interpretação e aplicação direta dos textos de Montesquieu não combinam de fato com um Estado Constitucional, pois como se faria a legitimação, por exemplo, da competência do Chefe do Poder Executivo para a iniciativa de leis delegadas ou medidas provisórias? Ou a competência do Senado Federal de julgar crimes de responsabilidade? Ou a competência do Supremo Tribunal Federal para estabelecer súmulas vinculantes a toda a estrutura organizada do Estado? Dessa forma, os limites adotados por cada país para fundamentar o princípio da separação dos poderes se modificam a depender das exigências sociais e políticas que se materializam de acordo com a época considerada (ÁVILA, 2012).

Conforme a Constituição Federal de 1988, cabe ao legislativo editar normas gerais e abstratas, mas estabelece-se também que, nesse arranjo, participe o executivo, seja pela iniciativa de leis, seja pela sanção ou veto. Por um lado, isto é compensado pela possibilidade de o Congresso alterar o projeto por emendas ou simplesmente rejeitá-lo. Por outro lado, o poder de veto do Chefe do Executivo confere maiores embaraços à aprovação da lei, pois há necessidade de maior mobilização parlamentar para derrubar o veto do Executivo. Os tribunais, por sua vez, não podem interferir na realização dos trabalhos legislativos, mas poderão, se for o caso, declarar a norma inconstitucional, deixando de aplicá-la. Assim, nas palavras de André Cambuy Ávila,

(...) fundamentalmente cabe ao Judiciário a missão constitucional de controlar os atos emanados dos outros poderes sob o crivo da constitucionalidade à medida que lhe são submetidos e houver uma real contenda. Logo, apesar de esses atos governamentais (leis e atos administrativos) se revestirem de presunção de constitucionalidade, é certo dizer que a palavra final quanto à conformidade deles à Carta Política pertence ao Judiciário. A esse é dado historicamente o controle de constitucionalidade (2012, p. 12).

Importante ressaltar que, apesar de os Poderes da União serem estruturados para se relacionarem modo independente e harmônico, por força de exigência expressa da Constituição da República de 1988, a estrutura interinstitucional complexa que decorre daí será sempre fonte de conflitos, conforme observam Antônio Ezequiel Inácio Barbosa e Martonio Mont’alverne Barreto Lima (2018). Segundo os autores,

(...) já se deve ter por claro que o conflito integra o conceito de democracia e, por esta razão, a separação de poderes possui em sua natureza explicativa a evidente percepção de que o conflito entre os Poderes também estará presente. (...) Desse modo, na realidade cotidiana concreta, nem sempre é muito nítida a deli­mitação do campo de atuação legítima das instituições, o que pode dar ensejo a emba­tes envolvendo acusações recíprocas de invasão das esferas de competência próprias de cada Poder. Exemplo notável disso é o tipo de relação, não raro conflituoso, que se estabelece entre, de um lado, o Legislativo e o Executivo, como produtores de leis e atos normativos e, de outro lado, o Judiciário, responsável pelo controle de constitucionali­dade dessa produção (p. 110).

A possibilidade do Supremo Tribunal Federal conceder interpretações conforme à Constituição, ou declarações de nulidade sem redução de texto, e, ainda, mais recentemente, à partir da edição da Emenda Constitucional n. 45/04, a autorização constitucional para editar, de ofício, súmulas vinculantes, não só no tocante à vigência e eficácia do ordenamento jurídico, mas também em relação à sua interpretação, acabaram por permitir, não raras vezes, a transformação da Corte em verdadeiro “legislador positivo”, completando e especificando princípios e conceitos indeterminados do texto constitucional, ou ainda, moldando sua interpretação com elevado grau de subjetivismo (MORAES, 2012).

Como advertem Estefânia Maria de Queiroz Barboza e Katya Kozicki (2012), o caráter aberto e abstrato das normas constitucionais modifica a expectativa positivista de previsibilidade decisória na aplicação da norma ao caso concreto, aproximando a proteção dos direitos fundamentais contra as arbitrariedades estatais da técnica do common law, especialmente no que diz respeito à jurisdição constitucional. Aduzem, portanto, que:

Como não há possibilidade de se apontar previamente qual o direito aplicado ao caso, caberá ao Judiciário densificar e dar significado a esses direitos, de acordo com o contexto histórico, social, político, moral e jurídico da sociedade naquele determinado momento. A norma, portanto, não existe no texto, mas apenas no caso concreto. Esse novo papel dos Tribunais Constitucionais, especialmente com a possibilidade de dar conteúdo aos direitos humanos, reflete em grande expansão de sua autoridade, o que se dará por meio do judicial review.

Rogério Volpatti Polezze (2015) traz como exemplo desta ideia de expansão da atuação do Supremo Tribunal Federal, além dos já citados anteriormente, a inclusão da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no quadro de ações diretas de controle de constitucionalidade, que gerou ampliação nítida da atuação do Tribunal em relação a temas variados e sensíveis, com reflexos sobre toda sociedade:

“É que o caráter aberto da ADPF – “descumprimento de preceitos fundamentais” – reforça bastante a óptica subjetiva do STF. E tal subjetividade – em clara consonância com o texto constituinte originário, bom frisar (não se trata usurpação, mas de competência prevista na CF) – reforça um papel do STF muito além de uma Corte jurídica, promovendo evidente atuação política (p. 94).

É nesse contexto que tem aumentado a tensão institucional entre os Poderes Judiciário e Legislativo, segundo Abhner Youssif Mota Arabi, no artigo intitulado “A Ascensão do Judiciário e a Tensão Institucional: Judicialização, Ativismo e a Reação do Poder Legislativo (PEC 33/2011)”, de 2013. Consoante o autor, o exercício da Jurisdição Constitucional estaria sendo ativista e se projetando sobre assuntos tipicamente políticos, invadindo esferas de competência do Poder Legislativo enquanto órgão de representação política da República.

Seriam exemplos desse protagonismo exacerbado do Supremo Tribunal Federal: instituição de contribuição dos inativos na Reforma da Previdência (ADI 3105/DF); criação do Conselho Nacional de Justiça na Reforma do Judiciário (ADI 3367); pesquisas com células troncos embrionárias (ADI 3510/DF); liberdade de expressão e racismo (HC 82424/RS – caso Ellwanger); interrupção da gestação de fetos anencefálicos (ADPF 54/DF); restrição ao uso de algemas (HC 91952 e Súmula Vinculante nª 11); demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol (Pet 3388/RR); legitimidade de ações afirmativas e quotas sociais e raciais (ADI 3330); vedação ao nepotismo (ADC 12/DF e Súmula nº 13); não recepção da Lei de Imprensa (ADPF 130); a questão relativa à importação de pneus usados (ADPF 101/DF), a proibição ou não do uso do amianto (ADI 3937/SP), e, um dos principais julgamentos da história recente do Supremo Tribunal Federal e um dos primeiros a ser lembrados quando o assunto é ativismo judicial, dadas as divergências principalmente de ordem religiosa que o assunto envolve, a possibilidade de existência das uniões estáveis homoafetivas (ADPF 132 e ADI 4277) (ARABI, 2013).

Antônio Celso Baeta Minhoto (2014) aponta que o mais destacado crítico da postura ativista do Poder Judiciário talvez seja o filósofo Jürgen Habermas, a quem atribui um alinhamento ao grupo dos procedimentalistas:

Para os “procedimentalistas”, o verdadeiro espaço de construção da democracia é o parlamento, e isso não somente porque sua composição partiu de uma escolha popular, mas também porque se trata de um órgão de proporções muito maiores que uma corte constitucional, composta, normalmente, de alguns poucos juízes ou ministros, e também porque o parlamento, justamente por ser órgão de composição popular, está muito mais permeável às interferências críticas da população, o que não ocorre com uma corte constitucional ou mesmo com a atividade jurisdicional de um modo geral. Habermas critica duramente o papel desempenhado especialmente pelas cortes constitucionais na dinâmica político-social, chegando a afirmar que “ao deixar-se conduzir pela ideia da realização de valores materiais, dados preliminarmente no direito constitucional, o tribunal constitucional transforma-se numa instância autoritária” e mais adiante ainda completa sua crítica vendo na atuação do Judiciário relativamente às grandes questões da cidadania uma “colonização do mundo da vida” (p. 174).

Entretanto, Minhoto revela que os “procedimentalistas” são criticados por se isolarem demasiadamente numa realidade sócio-política de nações já desenvolvidas. Habermas, assim, estaria fazendo uma abordagem excessivamente centrada na realidade europeia, notadamente alemã, ignorando outras realidades em que o papel do Judiciário pode ser relevante na construção de uma sociedade mais desenvolvida e avançada em termos humanísticos. Nesse sentido, existem três situações em que cabe a intervenção do Judiciário nas políticas públicas: “quando a omissão ou a política já implementada não oferecer condições mínimas de existência humana; se o pedido de intervenção for razoável; e, do ponto de vista administrativo, a omissão ou a política seja desarrazoada. Em todos os casos, é preciso que haja verba para a implementação das medidas” (p. 175).

Mas o espaço de poder que de certa forma foi ocupado pelo Judiciário, na verdade, foi cedido pelos outros poderes, na opinião de Arabi (2013), e, em matéria de direitos fundamentais e garantias individuais, principalmente em se tratando daquelas constitucionalmente asseguradas, não pode existir um vazio de poder, sob pena de lesão a esses próprios direitos e garantias. E nesse sentido, ante à omissão dos outros dois poderes, o Judiciário foi sendo provocado e aos poucos exercendo essa parcela desocupada de poder. Para o autor, “vendo-se em descrença frente à opinião pública e sentindo ter lesado suas atribuições, o Legislativo tenta forçosamente recuperar um espaço de poder que durante anos renegou exercer” (p. 39). O autor aduz ainda que

Não se pode agora acusar o Judiciário de quebrar a harmonia e independência dos três poderes, ou de estar agindo de forma extremamente ativa. Acertadamente o STF, por exemplo, tem tomado decisões que não podem ser adiadas, visto que intencionam garantir e concretizar os princípios norteadores da Constituição Federal, e muitas ampliá-los (sic), estendendo o alcance da sempre aberta figura do sujeito constitucional. É claro que com maiores poderes e atribuições deve também ser maior a responsabilidade no exercício destes; e carece também o Judiciário de um maior controle, de uma certa accountability judicial. A mera autocontenção (self-restraint) não é suficiente, uma vez que alguém não pode controlar a si mesmo, principalmente quando se trata de poderes tão grandes quanto os que se está a tratar. Nesse sentido é que se tem feito importante a atuação de órgãos como o CNJ, que imponham ao Judiciário mecanismos de controle e accountability. É necessário sim aumentar o controle sobre as ações do Judiciário como um todo, porém não julgo ser eficiente e acertado passar tal atribuição ao poder Legislativo, como, não oficialmente, propõe a PEC 33/2011. (ARABI, 2013, p. 41)

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 33/2011 é um perfeito exemplo do mal-estar que se estabelece entre os Poderes Legislativo e Judiciário num contexto de preponderância de um poder sobre o outro, conforme já explicado anteriormente. A não adoção de um diálogo interinstitucional harmonioso cria embates desnecessários e crises políticas que desestabilizam o frágil equilíbrio entre os poderes. A PEC foi proposta em razão das decisões da Suprema Corte nas ações sobre as uniões estáveis homoafetivas e o aborto de fetos anencefálicos, e dentre os dispositivos que sugere modificação estão os artigos 97, 102 e 103-A da Constituição Federal. A proposta prevê o aumento do quórum para a declaração de inconstitucionalidade nos Tribunais (passaria para quatro quintos), o condicionamento do caráter vinculante das súmulas aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal à prévia aprovação pelo Poder Legislativo, e a submissão das decisões que afirmem a inconstitucionalidade de Emenda Constitucional à análise do Congresso Nacional. Na justificação constante do texto da proposta, os signatários afirmam que o protagonismo que o Poder Judiciário desempenha no cenário nacional é:

um modo proativo de interpretar a Constituição [...] além do que o caso concreto exige, criando normas que não passaram pelo escrutínio do legislador (...) É o conhecido ativismo judicial considerado distinto da judicialização dos conflitos sociais, o qual, prossegue a Proposta, estaria gerando quadros de insegurança jurídica e um cenário, dito prejudicial à democracia, no qual o agigantamento do Judiciário estaria atraindo questões relevantes do Poder Legislativo.” (ARABI, 2013, p. 34)

A justificativa da proposta ainda traz a afirmação de que o Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal, deixou de ser um “legislador negativo”, figura idealizada pelo jurista austríaco Hans Kelsen, e passou a legislar de forma positiva, sem ter, no entanto, legitimidade democrática e eleitoral para tanto. Seria devido a esse ativismo do STF que se propunham as mudanças no texto constitucional. A proposta chegou a sugerir a criação de um mecanismo institucional exótico: no caso de a declaração de inconstitucionalidade de emenda constitucional feita pelo Supremo Tribunal Federal ser rejeitada pelo Congresso Nacional, convocar-se-ia a população para que diretamente votasse e decidisse a controvérsia entre os Poderes (ARABI, 2013). No momento, a PEC nº 33/2011 encontra-se arquivada, nos termos do art. 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, em virtude do encerramento da legislatura. Entretanto, tornar o Poder Judiciário subjugado ao Poder Legislativo, como sugere a PEC nº 33/2011, não resolve o problema da fragilidade das relações entre os Poderes, só o desloca de um âmbito para o outro.

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Pode-se mencionar também, como exemplo do conflito entre a Suprema Corte e o Congresso Nacional, a série de decisões envolvendo a constitucio­nalidade da vaquejada, em que poucos Ministros do Supremo Tribunal Federal demonstraram preocupação com a deferên­cia ao legislador, consoante a opinião de Mônia Clarissa Hennig Leal e Maria Valentina De Moraes no artigo “‘Diálogo’ entre Poderes no Brasil? Da Inconstitucionalidade da Regulação Da Vaquejada à Vaquejada Como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro: Uma Análise Crítica”, de 2018. In casu, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 4983/CE, foi declarada a in­constitucionalidade da lei cearense que regulamentava a prática da vaquejada. Como reação, houve a promulgação de uma lei, no mesmo ano, elevando a vaquejada e outras manifestações culturais à condição de pa­trimônio cultural brasileiro, em clara oposição ao posicionamento adotado pelo Supre­mo Tribunal Federal. Meses depois, foi apresentada uma Proposta de Emenda Constitucional com a mesma finalidade, a qual originou a Emenda Constitucional nº. 96/2017, que excluiu do rol de práticas cruéis aos animais aquelas que, reguladas por lei específica (como a Lei nº. 13.364/2016), configurem-se como manifestações culturais.

Mas o Supremo Tribunal Federal nem sempre foi ativista, conforme aponta Luiz Henrique Diniz Araújo (2018). Após ser reconfigurado pela Constituição Federal de 1988, em seus primeiros anos, mante­ve a passividade que marcara o período pré-1988. O Tribunal, além de ter restringido alguns de seus poderes, também limitou o acesso à sua jurisdição. Como exemplos, o autor cita o mandado de injunção, a partir da adoção da teoria da proibição do judiciário como legislador positivo; a imposição de limitações aos legitimados ativos para propositura de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI), em uma clara restrição aos termos do art. 103 da CF/88; a criação do conceito de pertinência temática, segundo o qual, para a propositura de ADI, os Governadores, Assembleias Legislativas, Confederações Sindicais e Entidades de Classe de âmbito na­cional deveriam comprovar repercussão direta sobre os seus interesses; e nas medidas provisórias, o Supremo adotou uma pos­tura passiva, entendendo que o controle de constitucionalidade sobre os pressupostos de relevância e urgência apenas seriam controláveis em caso de excesso de poder de legislar.

Apenas nos anos 2000, teve início a fase que se poderia chamar ativista na história do Supremo Tribunal Federal, com criação de direitos, em decisões muitas vezes pobremente fundamentadas (ARAÚJO, 2018). Nisso corroboram Ingo Wolfgang Sarlet e Carolina Zancaner Zockun, no artigo “Notas Sobre o Mínimo Existencial e sua Interpretação Pelo STF no Âmbito do Controle Judicial das Políticas Públicas com Base nos Direitos Sociais”, de 2016, ao lembrar que o Supremo Tribunal Federal, ao longo dos últimos anos, especialmente desde os anos 2000, vem tendo papel de destaque e tem recorrido reiteradamente à noção de “mínimo existencial” em diversos contextos, especialmente no domínio dos direitos fundamentais sociais, como um “direito (subjetivo) às condições materiais mínimas para que possa fruir de uma vida com dignidade” (p. 134). No mesmo sentido se posicional o Prof. Daniel Sarmento [4], para quem a Corte era mais autocontida na primeira década de vigência da Constituição, talvez pela hegemonia de Ministros nomeados durante o regime militar, que não se sentiam muito confortáveis no papel de guardiães de uma nova ordem, cujos valores não compartilhavam integralmente.

Essa mudança de postura do Supremo Tribunal Federal tem sido avaliada tanto como positiva quanto negativa por diversos setores da sociedade. Quanto ao aspecto positivo, há quem entenda que a Corte Suprema está atendendo a demandas da sociedade que não puderam ser satisfeitas a contento ou a tempo pelo legislador. A multiplicidade de novas relações sociais, num tempo de pluralização da subjetividade jurídica, torna a tarefa do legislador por vezes sobre-humana, se sua intenção for regular toda e qualquer atividade com implicação jurídica. Dessa forma, a Corte Constitucional teria atendido as demandas sociais ao apreciar temas como a greve do serviço público, a abrangência da realização do plebiscito para a definição de novos quadros geográficos de estados e municípios, a estipulação de um regime jurídico para o exercício do direito constitucional ao aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, dentre outros (ÁVILA, 2012).

Todavia, há juristas, como Lênio Luiz Streck (2013), que veem com bastante preocupação o Supremo Tribunal Federal adentrar nas veredas da política, e, com isso, indiretamente incentivar as demais instâncias a fazerem o mesmo. O autor cita o caso da ADI 4.424/DF, que questionava dispositivos da chamada “Lei Maria da Penha”:

No caso, o STF alterou – via interpretação conforme a Constituição (na verdade, o correto teria sido utilizar a Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung, ou seja, uma nulidade parcial sem redução de texto) – a ação penal do crime de lesão corporal tutelado pela lei, estabelecendo que, nos casos em que o crime for cometido no âmbito da violência doméstica, a ação penal seria pública incondicionada (e não condicionada à representação, como se previa anteriormente). Preocupa-me, sobremodo, o fato de que, em inúmeros votos, os ministros mencionaram o fato de que as estatísticas sobre a violência doméstica são “alarmantes”, estando a necessitar de um meio mais rigoroso de persecução criminal. Pergunto: manejar estatísticas e planejar ações futuras não seria tarefa pertencente ao âmbito da política legislativa? Seria esse um argumento jurídico suficiente para adicionar um sentido à lei? (p. 213).

Outro caso importante é lembrado por João Marcelo da Costa e Silva Lima e Diego Werneck Arguelhes, no artigo “Políticas Públicas, Interpretação Judicial e as Intenções do Legislador: O Prouni e o ‘Criptoativismo’ do Supremo Tribunal Federal”, de 2017. No artigo, os autores discutem a decisão do Supremo Tribunal Federal em alterar a finalidade do Projeto PROUNI do governo federal, considerando-a ativista. O programa foi concebido pelo Ministério da Educação (MEC), integrante do Poder Executivo, e posteriormente convertido em lei. Nos termos da exposição de motivos do programa, o PROUNI seria uma política de acesso democrático ao ensino superior para estudantes de baixa renda e, também, para minorias étnico-raciais, estruturado como um programa de democratização do ensino superior mediante a concessão de bolsas de estudo. A Corte Constitucional foi demandada em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Confederação Nacional de Estabelecimentos de Ensino (CONFENEN) e pelo partido Democratas (DEM) sobre a constitucionalidade da lei que instituiu o PROUNI. Para legitimar sua decisão pela constitucionalidade da lei e aplacar os questionamentos de setores da sociedade, a Corte alterou o objetivo atribuído ao programa pelo Poder Executivo e pelo Congresso Nacional, que seria a democratização do acesso ao ensino superior, para outro objetivo mais ambicioso e nobre, a redução das desigualdades sociais. João Marcelo da Costa e Silva Lima e Diego Werneck Arguelhes (2017) argumentam que, apesar de o Supremo Tribunal Federal ter sido deferente ao Poder Legislativo, declarando a constitucionalidade da lei correspondente, por outro lado desconsiderou a intenção do legislador ao alterar o conteúdo social da política pública, desvirtuando-a quanto a seus propósitos e efetividade.

Na leitura do STF, o objetivo do ProUni não é o nº 1 (objetivo original), e sim o nº 2: a correção de um problema social específico – a desigualdade de renda. Com isso, a lógica do ProUni passa a ser a eficiência na solução desse problema específico (...). Se tomamos essa como a finalidade do ProUni, porém, o programa não parece estar funcionando da melhor maneira possível. De fato, ele direciona seus alunos a cursos que lhes permitem acessar mercados de trabalho menos valorizados e, portanto, menos aptos a contribuir para a mobilidade social. Para promover seu “novo” objetivo normativo – o da redução de desigualdades sociais -, o ProUni precisaria focar sua oferta de bolsas em cursos mais valorizados pelo mercado de trabalho. E tudo indica que isso é algo que o ProUni, da forma que está hoje estruturado, não consegue fazer, pois a lógica do programa é se valer das altas ociosidades que marcam alguns cursos cujos custos fixos e marginais são baixos – como é o caso de direito e administração (p. 176). (...) Nesse caso, a origem do erro está no fato de o STF ter ignorado, por completo, pistas no processo legislativo que pudessem sugerir qual o objetivo do ProUni. Ao não recorrer ao processo legislativo, o STF se distanciou muito do legislador na definição do objetivo de uma lei. (p. 178).

Lima e Arguelhes (2017) entendem que é particularmente preocupante quando a matéria discutida possui dimensões técnicas que fogem à competência técnica dos juízes, de modo que a livre escolha judicial pode acabar gerando consequências negativas para além do caso concreto. Segundo os autores, isto tem sido comum no Brasil: os elementos do processo legislativo são considerados secundários na atividade de interpretação de leis e, ainda que em menor medida, da própria Constituição.

Essa é uma posição disseminada no direito brasileiro. A ideia de que os elementos objetivos da lei – o que inclui tanto as palavras de seu texto, quanto a sua “finalidade objetiva” ou mens legis – não apenas são independentes dos elementos mais “subjetivos” (as intenções concretas dos legisladores que aprovaram a lei - a mens legislatoris), mas devem prevalecer sobre eles, aparece em várias outras decisões do Supremo e ecoa em diversas obras doutrinárias (LIMA; ARGUELHES, 2017, p. 183).

Por fim, os autores supracitados denominam de criptoativismo a esse comportamento de aparente deferência ao Poder que criou a política pública ou a norma jurídica, mas que na verdade altera seu conteúdo ou sua finalidade. Nas palavras dos autores,

Chamamos esse fenômeno de “cripto-ativismo” – um tipo de intervenção judicial forte na produção legislativa que fica oculta sob sinais exteriores de deferência, como a declaração de constitucionalidade. A maneira mais clara pela qual isso pode acontecer está em decisões de “interpretação conforme a constituição” que acabam acrescentando, no texto legal, exceções, requisitos ou regras adicionais que os legisladores não chegaram a aprovar - e talvez jamais tivessem aprovado, se tivessem sido forçados a se pronunciar sobre a questão. (LIMA; ARGUELHES, 2017, p. 165)

Juliana Gonçalves de Oliveira e Rafael Fonseca Ferreira (2017) afirmam que a Corte Constitucional assumiu um manifesto papel de Corte Política, decidindo sobre diversos aspectos de ordem social, econômica e política, entretanto, em sua maioria, as decisões não têm seguido uma fundamentação capaz de criar uma jurisprudência coerente. Nos últimos tempos, segundo os autores, as decisões do Supremo fundadas no clamor público e/ou social tem se tornado corriqueiras, o que demonstra que a atuação política deste Tribunal pende muito mais para o lado do ativismo judicial do que para o da jurisdição constitucional.

No entendimento do atual Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, em artigo publicado no ano de 2012, o ativismo judicial é indesejável e só poderia ocorrer em situações excepcionais e de maior gravidade na defesa da supremacia dos princípios constitucionais. Sua proposta é a reestruturação da teoria da separação dos poderes de modo a alcançar-se um maior equilíbrio entre a atuação judicial e a legislativa na busca da máxima efetividade das normas constitucionais, senão, vejamos:

Essa realidade torna cada vez mais necessária a reestruturação da tradicional teoria da tripartição de Poderes e, principalmente, a compatibilização e harmonização das duas “grandes qualidades” existentes no moderno Estado Constitucional: Estado de direito e Estado Democrático (p. 268). (...) O Estado Constitucional conciliando de forma harmônica e fortalecendo aos noções de Estado de Direito e Estado Democrático, introduziu fortemente no constitucionalismo efetivas garantias de legitimação e limitação do poder; e, se, realmente, como afirmou o professor Jean Marcou, da Universidade de Grenoble, “o século XX é o século dos tribunais constitucionais”, o século XXI deve ser o século do equilíbrio entre a Jurisdição Constitucional e as Instituições legislativas. O bom senso entre a “passividade judicial” e o “pragmatismo jurídico”, entre o “respeito à tradicional formulação das regras de freios e contrapesos da Separação de Poderes” e “a necessidade de garantir às normas constitucionais à máxima efetividade” deve guiar o Poder Judiciário, e, em especial, o Supremo Tribunal Federal na aplicação do ativismo judicial, com a apresentação de metodologia interpretativa clara e fundamentada, de maneira a balizar o excessivo subjetivismo, permitindo a análise crítica da opção tomada, com o desenvolvimento de técnicas de autocontenção judicial, principalmente, afastando sua aplicação em questões estritamente políticas, e, basicamente, com a utilização minimalista desse método decisório, ou seja, somente interferindo excepcionalmente de forma ativista, mediante a gravidade de casos concretos colocados e em defesa da supremacia dos Direitos Fundamentais (p. 283).

Continuando com o raciocínio do Ministro Alexandre de Moraes, “o ativismo é uma forma virulenta de pragmatismo jurídico” (MORAES, 2012, p. 282). Ao adotar o ativismo, o juiz ativista ignoraria o texto da Constituição, a história de sua promulgação, as decisões anteriores da Suprema Corte que buscaram interpretá-la e as tradições políticas da sociedade. Tudo isso seria ignorado para conseguir impor a outros poderes do Estado o seu próprio ponto de vista sobre o que a justiça exige.

Em termos globais, a Corte Constitucional brasileira ora se mostra mais ativista, ora menos, ao sabor dos embates sociais e políticos que se apresentam. Flávia Danielle Santiago Lima e José Mário Wanderley Gomes Neto resumem bem essa postura da Corte no texto “Autocontenção à Brasileira? Uma Taxonomia dos Argumentos Jurídicos (E Estratégias Políticas?) Explicativo(a)s do Comportamento do STF nas Relações com os Poderes Majoritários”, de 2018. Em suma, o Supremo Tribunal Federal possui uma postura seletiva quanto à escolha dos casos a decidir, isto é, entre as dimensões de árbitro, de ativista ou de instituição autocontida. Desse modo, alternaria rotineiramente o seu comportamento de maneira estratégica, dependendo, por exemplo, do contexto econômico ou do tema envolvido em sua agenda de julgamentos, ora invocando o dogma para eximir-se de decidir, ora superando o dogma total ou parcialmente para decidir em flagrante atividade criativa legiferante.

O Ministro Roberto Barroso, ilustre magistrado do Supremo Tribunal Federal, reconhece que o binômio ativismo-autocontenção judicial está presente na maior parte dos países que adotam o modelo de supremas cortes ou tribunais constitucionais com competência para exercer o controle de constitucionalidade de leis e atos do Poder Público. Mas é importante ressaltar que o Ministro reconhece que o movimento entre as duas posições costuma ser pendular e varia em função do grau de prestígio dos outros dois Poderes (BARROSO, 2008).

Quando Ministros da Corte Constitucional adotam comportamento de afastamento do argumento jurídico da fundamentação por meio da primazia da vontade daquele que julga, acabam criando um ambiente de fragilização constitucional. A maior atuação do Poder Judiciário, em decorrência da crescente judicialização, não deve ocorrer no sentido de um ativismo político-ideológico, mas, ao contrário, deve ser determinado pela busca de uma maior efetividade dos preceitos e princípios previstos na Constituição de 1988. A redefinição pós-Constituição de 1988 do Poder Judiciário não lhe permitiu uma atuação totalmente arbitrária, livre de qualquer controle democrático. Faz-se necessário construir as condições imprescindíveis para que o poder dos juízes não se sobreponha ao Direito (TASSINARI; LIMA, 2011).

O que todos os casos anteriormente apresentados explicitam é que o crescente ativismo judicial (nas diversas dimensões já estudadas, especialmente a interpretação ampliativa da Constituição, a criação legislativa para preenchimento de lacunas das normas jurídicas, a deferência parcial ou não deferência às decisões de outros poderes, a utilização de juízos de validade moral e política para justificar decisões judiciais e a alteração substancial das políticas públicas – as mais exercitadas pelo Supremo Tribunal Federal) revela uma fragilidade no relacionamento entre os poderes e uma consequente debilidade da democracia no Brasil, que ainda é relativamente jovem e necessita de consolidação e estabilização.

Ainda que o ativismo pudesse ser visto como uma espécie de necessidade para países como o Brasil, o fato é que a fixação de limites para tal atividade segue sendo tema pendente e polêmico, cujo equacionamento não parece ser simples ou célere. O certo é que os juízes devem agir dentro dos ditames constitucionais e das leis infraconstitucionais, deixando de lado a vontade política, atuando em nome da sociedade dentro de limites plausíveis e justificáveis. Quando decisões da Suprema Corte ultrapassam esses limites, “cria para a população uma perspectiva bastante preocupante: o eventual autoritarismo dos juízes. Uma minoria passaria a ditar os rumos de várias questões de relevo transcendental para a sociedade” (MINHOTO, 2014, p. 182).

Porém, também não se pode atribuir a responsabilidade deste fenômeno completamente às custas de um protagonismo do Poder Judiciário. A falta de credibilidade do Poder Legislativo, acentuada em virtude de graves casos de corrupção e da atuação em prol de interesses outros que não os do povo a quem representam, e a ausência de comprometimento do Poder Executivo com um Projeto de Nação, de longo prazo, que trate seriamente de reformas estruturais há muito necessárias, resultam na politização da atuação jurisdicional, na judicialização da política e no ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal.

3.2 A busca de um novo equilíbrio entre a jurisdição constitucional e os demais poderes

O debate sobre o ativismo judicial está ganhando corpo e atenção no Brasil e a razão é simples: vive-se uma crescente inquietação com a atenuação das fronteiras entre o direito e a política, decorrente do novo modelo constitucional inaugurado pela Carta Magna de 1988, que entre outros efeitos, propiciou uma progressiva judicialização da política, dando margem também ao ativismo judicial. É inegável o papel de fiscalização constitucional do Judiciário em face da atuação dos outros Poderes, no escopo de garantir direitos fundamentais e defender o Estado Democrático de Direito. Porém, salta aos olhos que o protagonismo do Poder Judiciário, mesmo que não intencional, é uma das causas do esgarçamento da dinâmica dialógica entre os Poderes. Fica cada vez mais claro que é necessário elaborar novos arranjos institucionais para legitimar a jurisdição constitucional. Várias propostas têm sido apresentadas, algumas das quais serão citadas aqui.

Uma primeira proposta para que o Poder Judiciário cultive uma atuação equilibrada frente aos demais poderes é a adoção da autorrestrição. Segundo Carlos Alexandre de Azevedo Campos (2014), o marco da sistematização teórica da autorrestrição judicial é o ensaio escrito por James Bradley Thayer, em 1893, segundo o qual uma lei só deve ser declarada inconstitucional pelas cortes na hipótese de a violação à constituição ser tão manifesta que não deixe espaço para dúvida razoável (“regra do erro manifesto” ou rule of the clear mistake). Caso não esteja presente erro dessa natureza, juízes e cortes devem abster-se de pronunciar a inconstitucionalidade, ainda que não concordem com isso. Desde então, importantes constitucionalistas norte-americanos têm desenvolvidos formulações teóricas sobre a autorrestrição, como as virtudes passivas de Alexander Bickel, o minimalismo judicial de Cass Sunstein e a análise institucional da capacidade decisória das cortes por Adrian Vermeule.

Alexander Bickel sugeriu mecanismos processuais estratégicos (ilegitimidade do autor para a propositura da demanda; falta de maturidade do caso para julgamento; inexistência de controvérsia atual e por isso a perda do objeto da ação; questão discutida eminentemente política, carecendo a Corte de competência para julgá-la e ausência de relevância do caso para ser julgado pela Suprema Corte) como forma de exercício da prudência, sendo as virtudes passivas verdadeiras limitações procedimentais. Já o minimalismo judicial de Cass Sunstein (“uso construtivo do silêncio”) consistia em adotar decisões estreitas em vez de amplas, ou seja, evitar dizer mais do que o necessário para justificar o resultado de um caso concreto e adotar decisões superficiais em vez de profundas, isto é, deixar as questões teóricas ou filosóficas mais fundamentais sem decidir para evitar generalizações prematuras. Adrian Vermeule, por sua vez, defendeu que a revisão judicial (judicial review) e o processo de interpretação constitucional deveriam ser avaliados à luz das capacidades institucionais do intérprete e dos efeitos sistêmicos das decisões, de modo que interpretações ambiciosas e equivocadas não fossem cometidas (CAMPOS, 2014).

O problema dessas teorias é que são de pouca aplicabilidade prática, pois ostentam um caráter homogêneo, sendo muito difícil trabalhar o controle de constitucionalidade das leis a partir de normas que não têm a mesma importância, como é o caso dos direitos fundamentais, que se destacam em comparação a outras normas (CAMPOS, 2014). Outra opção mais viável seria conceber a presunção de constitucionalidade de forma graduada e heterogênea, de acordo com diversas variáveis. Nesse sentido, Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento (2012) sugeriram parâmetros para “calibrar a presunção de constitucionalidade dos atos normativos, e também, por consequência, o grau de ativismo do Poder Judiciário no exercício da jurisdição constitucional” (p. 373). Estes parâmetros, citados a seguir, delimitam as condições em que o juiz deve reconhecer maior presunção de constitucionalidade das leis ou, de outro lado, deve exercer controle mais rígido sobre a validade dos atos. Trata-se de proposta teórica de fixação de standards que definem quais circunstâncias requerem mais ou menos autorrestrição judicial ou mais ou menos ativismo judicial:

  1. Grau de legitimidade democrática: quanto mais democrática tenha sido a elaboração do ato normativo, mais autocontido deve ser o Poder Judiciário no exame de sua constitucionalidade para prestigiar a efetiva participação popular e o maior grau de consenso político na elaboração do ato normativo;

  2. Condições de funcionamento da democracia: o Poder Judiciário deve atuar de maneira mais ativa para proteger direitos e institutos que são diretamente relacionados com o funcionamento da democracia (direitos políticos, liberdade de expressão, direito de acesso à informação e as prerrogativas políticas da oposição), assegurando os pressupostos mínimos necessários ao seu funcionamento;

  3. Proteção de minorias estigmatizadas: justifica-se uma relativização da presunção de constitucionalidade de atos normativos que impactem negativamente os direitos de minorias estigmatizadas, devendo o Poder Judiciário ser mais ativista na defesa dos direitos e interesses de grupos excluídos dos processos decisórios ou cujas pretensões não são alcançadas pela vontade majoritária;

  4. Fundamentalidade material dos direitos em jogo: normas que restrinjam direitos básicos merecem um escrutínio mais rigoroso do Poder Judiciário, tendo a sua presunção de constitucionalidade relativizada. Isto se refere às liberdades públicas e existenciais, os direitos sociais em seu âmbito de mínimo existencial, mas excluem as vantagens corporativas e direitos de natureza exclusivamente patrimonial;

  5. Comparação de capacidades institucionais: é recomendável uma postura de autocontenção judicial diante da falta de expertise do Judiciário para tomar decisões em áreas que demandem profundos conhecimentos técnicos fora do Direito, como ocorre para a área de regulação econômica e de políticas públicas redistributivas;

  6. Época de edição do ato normativo: normas editadas antes do advento da Constituição não desfrutam de presunção de constitucionalidade equiparada àquelas feitas posteriormente.

Outra proposta que leva em consideração a superação da tripartição clássica dos poderes e lança um olhar sobre desenhos institucionais mais contemporâneos é a Teoria dos Diálogos Institucionais, já referida anteriormente. Clèmerson Merlin Clève e Bruno Meneses Lorenzetto, em artigo de 2015 intitulado “Diálogos institucionais: estrutura e legitimidade”, preconizam esse modelo para legitimar a jurisdição constitucional. Segundo os autores,

Em substituição a uma leitura tradicional da separação dos poderes, a prática dos diálogos institucionais procura evidenciar pelo menos dois aspectos a respeito da formulação de decisões de casos controvertidos. Primeiro, as decisões, tomadas em qualquer um dos poderes, passam a ter um caráter parcialmente definitivo, pois, podem ser contestadas em outras instâncias públicas. Segundo, cada espaço de poder possui características que o potencializam ou o inibem para a realização de tomada de decisões. Isso reafirma a necessidade de canais de diálogo entre as instituições, pois, uma pode ter melhores condições que outra para lidar com o caso concreto em apreço (p. 189).

Como exemplo, os autores supracitados apontam o Canadá, onde diante da edição da “Carta de Direitos e Liberdades” de 1982 surgiu o questionamento sobre o problema da legitimidade democrática do controle de constitucionalidade. A resposta para tal dificuldade foi a de que o controle seria parte do diálogo entre juízes e legisladores. Evocando o modelo canadense, em que é possível observar a continuidade de decisões institucionais nas quais a decisão judicial pode ser revertida, modificada ou evitada por uma nova lei, Clève e Lorenzetto (2015) ressaltam que os diálogos institucionais poderiam substanciar uma restrição ao processo democrático. Todavia, as práticas de revisão das leis editadas e do acomodamento das decisões da jurisdição constitucional seriam características importantes do próprio jogo democrático. No caso do Canadá, a Carta de Direitos e Liberdades acabou por agir como catalisadora dos intercâmbios entre o Judiciário e o Legislativo, ao não erguer uma barreira intransponível para as decisões tomadas pelas instituições. Esse modelo funcionaria bem no Brasil? Talvez, se houvesse uma mudança na compreensão de que democracia não é a ditadura das maiorias e que o juiz não é um “super-herói” ou um ser “com poderes supremos”.

Como bem afirma Matheus Souza Galdino (2016), parece existir um paradoxo na legitimação democrática da jurisdição constitucional. Pergunta o autor: “Como a decisão de uma jurisdição constitucional pode legitimar-se democraticamente se uma de suas próprias razões de ser consiste exatamente em apresentar-se em defesa de uma regra contramajoritária pela proteção do direito das minorias?”. Responde o autor que esse paradoxo não existe. Na verdade, o problema consiste basicamente em se ter uma concepção errônea de democracia como a vontade da maioria. A democracia não pode ser vista, apenas e tão somente, como o governo das maiorias. Uma visão ampliada de democracia compreende que o poder decisório das maiorias seja conjugado com o império da lei e a tutela dos direitos fundamentais, protegendo a dignidade das minorias e seu tratamento igualitário.

Certamente a jurisdição constitucional pode se constituir em ferramenta útil para a defesa da própria democracia. As respostas adequadas ao problema proposto da legitimação da jurisdição constitucional precisam estar atentas à necessidade de superação de uma teoria da decisão estruturada sob um positivismo normativista, o qual outorgou excessiva discricionariedade ao Poder Judiciário na aplicação do direito. Deve-se assim, buscar uma redução da discricionariedade judicial para evitar decisões ilegítimas, vez que proferidas em ato de vontade do julgador (GALDINO, 2016).

Por fim, apresenta-se a Teoria da Decisão, que no entendimento de Lênio Streck (2011), permite refutar relativismos e rejeitar discricionariedades no ato de interpretar e aplicar a lei, e fazer distinção entre decisão jurídica e escolha política. Seria o grande dilema contemporâneo o controle das posturas voluntaristas dos juízes, pois é difícil perceber se, ao interpretarem a Constituição, estão se substituindo ao legislador e proferindo argumentos de política ou de moral. Para tanto, recomenda que, “A partir da feitura da lei, a decisão judicial passa a ser racionalizada na lei, que quer dizer, ‘sob o comando da Constituição’ e não ‘sob o comando das injunções pessoais-morais-políticas do juiz ou dos tribunais’” (p. 28).

Lênio Streck tem, na verdade, em Ronald Dworkin, uma das suas fontes de inspiração. Dworkin (2010), defende que as decisões judiciais nos casos civis, mesmo em casos difíceis, devem ser geradas por princípios e não por políticas. Os argumentos de política justificariam uma decisão que fomenta ou protege algum objetivo de uma coletividade como um todo. Já os argumentos de princípios justificariam uma decisão que respeita ou garante o direito de um indivíduo ou de um grupo. Um exemplo de argumento de princípio, segundo Dworkin, é aquele favorável a leis contra a discriminação, segundo o qual uma minoria tem direito a consideração e respeito. Sem dúvida, as decisões judiciais não originais, que apenas aplicam os termos de uma lei de validade inquestionável, sempre são justificadas por argumentos de princípios, mesmo que a lei em si tenha sido gerada por uma política.

Na verdade, Dworkin pretendeu apontar para os limites que devem ser observados no ato de aplicação judicial, sendo imperioso que o julgador deixe de lado suas convicções pessoais e morais e decida por princípios. Sem essa proteção da atuação judicial contra o voluntarismo e a discricionariedade, jamais será possível consolidar o próprio Estado Democrático de Direito.

Há que ser otimista e manter a expectativa de que a sociedade brasileira irá encontrar o ponto de equilíbrio entre a jurisdição constitucional e a deferência aos agentes políticos democraticamente eleitos para fazer política e construir as leis conforme a vontade popular. Já há caminhos teóricos em franca construção para pavimentar o êxito desse processo.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORRES, Cristiane Batista Bezerra. Ativismo judicial do STF e implicações políticas em face do Executivo e Legislativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7156, 3 fev. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97425. Acesso em: 25 dez. 2024.

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