4. O RECONHECIMENTO JURÍDICO DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA
Os laços afetivos vêm sendo formador da entidade familiar e, por conta disso, vem ganhando proteção Estatal, enfraquecendo-se a tese de que o vínculo biológico constitui o critério exclusivo na construção da relação entre as famílias.
Convém salientar o posicionamento do Ilustre doutrinador Paulo Luiz Netto Lobo (2007) acerca do fenômeno da afetividade:
A afetividade é construção cultural, que se dá na convivência, sem interesses materiais, que apenas secundariamente emergem quando ela se extingue. Revela-se em ambiente de solidariedade e responsabilidade. Como todo princípio, ostenta fraca densidade semântica, que se determina pela mediação concretizadora do intérprete, ante cada situação real. Pode ser assim traduzido: onde houver uma relação ou comunidade unidas por laços de afetividade, sendo estes suas causas originária e final, haverá família.
Ora, a afirmação no sentido de que, atualmente, as relações alicerçadas no afeto e carinho são inferiores à filiação consanguínea constitui um equívoco, na medida em que a criação do filho (por meio do afeto, amor, zelo e cuidado) independe da existência de vínculo biológico com os pais.
Dessa forma, a formação da paternidade afetiva advém da posse do estado de filho, da intensa convivência familiar, do carinho, amor, zelo, assistência material, e do próprio afeto existente entre as pessoas que se encontram nos papeis de pai e filho, ainda que estes não possuam vínculo biológico, conforme se verifica dos julgados abaixo:
RECURSO ESPECIAL. RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE. CANCELAMENTO PELO PRÓPRIO DECLARANTE. FALSIDADE IDEOLÓGICA. IMPOSSIBILIDADE. ASSUNÇÃO DA DEMANDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. DEFESA DA ORDEM JURÍDICA OBJETIVA. ATUAÇÃO QUE, IN CASU, NÃO TEM O CONDÃO DE CONFERIR LEGITIMIDADE À PRETENSÃO. RECURSO NÃO CONHECIDO. 1. Salvo nas hipóteses de erro, dolo, coação, simulação ou fraude, a pretensão de anulação do ato, havido por ideologicamente falso, deve ser conferida a terceiros interessados, dada a impossibilidade de revogação do reconhecimento pelo próprio declarante, na medida em que descabido seria lhe conferir, de forma absolutamente potestativa, a possibilidade de desconstituição da relação jurídica que ele próprio, voluntariamente, antes declarara existente; ressalte-se, ademais, que a ninguém é dado beneficiar-se da invalidade a que deu causa. 2. No caso em exame, o recurso especial foi interposto pelo Ministério Público, que, agindo na qualidade de custos legis, acolheu a tese de falsidade ideológica do ato de reconhecimento, argüindo sua anulabilidade, sob o pálio da defesa do próprio ordenamento jurídico; essa atuação do Parquet, contudo, não tem o condão de conferir legitimidade à pretensão originariamente deduzida, visto que, em assim sendo, seria o mesmo que admitir, ainda que por via indireta, aquela execrada potestade, que seria conferida ao declarante, de desconstituir a relação jurídica de filiação, como fruto da atuação exclusiva de sua vontade. 3. Se o reconhecimento da paternidade não constitui o verdadeiro status familiar, na medida em que, o declarante, ao fazê-lo, simplesmente lhe reconhece a existência, não se poderia admitir sua desconstituição por declaração singular do pai registral. Ao assumir o Ministério Público sua função precípua de guardião da legalidade, essa atuação não poderia vir a beneficiar, ao fim e ao cabo, justamente aquele a quem essa mesma ordem jurídica proíbe romper, de forma unilateral, o vínculo afetivo construído ao longo de vários anos de convivência, máxime por se tratar de mera "questão de conveniência" do pai registral, como anotado na sentença primeva. 4. "O estado de filiação não está necessariamente ligado à origem biológica e pode, portanto, assumir feições originadas de qualquer outra relação que não exclusivamente genética. Em outras palavras, o estado de filiação é gênero do qual são espécies a filiação biológica e a não biológica (...). Na realidade da vida, o estado de filiação de cada pessoa é único e de natureza socioafetiva, desenvolvido na convivência familiar, ainda que derive biologicamente dos pais, na maioria dos casos" (Mauro Nicolau Júnior in "Paternidade e Coisa Julgada. Limites e Possibilidade à Luz dos Direitos Fundamentais e dos Princípios Constitucionais". Curitiba: Juruá Editora, 2006). 5. Recurso não conhecido (grifos nossos). (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial: 1999/00939923-9, Data de Julgamento: 22/10/2007)
(...)
CIVIL - AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE C/C NULIDADE DE REGISTRO CIVIL E ALIMENTOS - CRIANÇA EM SITUAÇÃO DE RISCO - VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE - EXAME DE DNA - RESULTADO NEGATIVO PARA A PATERNIDADE INDICADA PELA GENITORA DO MENOR - PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA DAQUELE QUE PROMOVEU O REGISTRO DE NASCIMENTO - NÃO CONFIGURAÇÃO - RETIFICAÇÃO DO ASSENTO DE NASCIMENTO COM EXCLUSÃO DO NOME DO GENITOR E DOS AVÓS PATERNOS - ALTERAÇÃO DO PATRONÍMICO DO MENOR - SENTENÇA MANTIDA. 1. Cuida-se de ação de investigação de paternidade c/c com nulidade de registro civil e alimentos ajuizada pelo Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios em substituição processual de menor gerado à época em que a genitora prestava serviços domésticos na residência do suposto pai. Os autos comprovam que a genitora permitiu que seu filho viesse a ser registrado pelo companheiro do irmão daquele que acreditava ser o pai biológico da criança, autorizando que a mesma viesse a residir com ele e seu companheiro no Canadá.2. Realizado o exame de DNA, comprovou-se que a criança não é filha biológica daquele que era apontado pela genitora como pai, admitindo, por sua vez, o autor do registro de nascimento que a paternidade assumida não é verdadeira. Invoca, contudo, a paternidade sócio-afetiva para manter o vínculo civil com o menor.3. Segundo a doutrina e jurisprudência mais abalizadas "A filiação sócio-afetiva decorre da convivência cotidiana, de uma construção diária, não se explicando por laços genéticos, mas pelo tratamento estabelecido entre pessoas que ocupam reciprocamente o papel de pai e filho, respectivamente". 4. Na hipótese, não se vislumbrando os elementos indispensáveis à caracterização da filiação sócio-afetiva, mormente a convivência cotidiana, a afeição, a solidariedade, o auxílio, o respeito e o amparo do registrando para com o menor, há que se dar prevalência à verdade real, de modo a propiciar, futuramente, a identificação do genitor biológico da criança. 5. Apelação conhecida e improvida (grifos nossos)” (Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Apelação: 52795120078070001 DF 0005279-51.2007.807.0001 - Órgão Julgador: 3ª Turma Cível, Data de Julgamento: 18 de Fevereiro de 2009, Relator: HUMBERTO ADJUTO ULHÔA).
Importa trazer à baila o entendimento do Ilustre Mestre Rubens Alves (2002) acerca da paternidade socioafetiva:
Pai é alguém que, por causa do filho, tem sua vida inteira mudada de forma inexorável. Isso não é verdadeiro do pai biológico. É fácil demais ser pai biológico. Pai biológico não precisa ter alma. Um pai biológico se faz num momento. Mas há um pai que é um ser da eternidade: aquele cujo coração caminha por caminhos fora do seu corpo. Pulsa, secretamente, no corpo do seu filho (muito embora o filho não saiba disso)
A condição de pai vem sendo vinculada ao relacionamento afetivo com a criança/adolescente. Isto significa que a qualidade paterna não está inerente apenas ao vínculo biológico com o filho, mas também à convivência contínua, duradoura e harmônica com este, promovendo-lhe a educação, tutela, subsistência material, além de conceder-lhe amor e preservar os interesses e o bem estar social do filho.
Nesse sentido, leciona Fernanda Barros (2001):
Todo laço revestido de afeto poderá ser chamado de laço familiar. Não é um espermatozóide que define o que é um pai e nem o fato de uma mãe gestar um filho em seu ventre que garante a maternidade. Também não veremos brotar da letra fria da lei, um pai, uma mãe, ou uma família para um filho [...].
O Superior Tribunal de Justiça também vem decidindo, favoravelmente, ao reconhecimento da paternidade socioafetiva, conforme se verifica das palavras da Ministra Nancy Andrighi, in verbs:
(..) uma gota de sangue, não pode destruir o vínculo de filiação, simplesmente dizendo a uma criança que ela não é mais nada para aquele que um dia declarou perante a sociedade, em ato solene e de reconhecimento público, ser seu pai. (STJ. Terceira Turma. REsp 932.692/DF. Relatora: Min.ª Nancy Andrighi. Julgado em 09.12.2008)
A paternidade socioafetiva visa à preservação da estabilidade social, tendo em vista que é construída através de um relacionamento contínuo e harmônico, pautada no afeto, capaz de promover na criança/adolescente um crescimento físico e psicológico em sua plenitude. Em outras palavras, configura a realização existencial do próprio ser humano.
Nesse contexto, Boeira (1999) sustenta que "ter um filho e reconhecer sua paternidade deve ser, antes de uma obrigação legal, uma demonstração de afeto e dedicação, que decorre mais de amar e servir do que responder pela herança genética".
É obvio que o vínculo sanguíneo é insuficiente para a formação de uma relação afetiva entre pais e filhos. Isto porque, em certos casos, o pai registra seu filho, após o resultado positivo do Exame de DNA, bem como realiza compulsoriamente (muitas vezes, por meio de decisão judicial) o pagamento da pensão alimentícia, no entanto, não reconhece seu filho, através do afeto.
Exemplificando, existem casos em que a mãe possui a guarda unilateral da criança e o pai entende pelo cumprimento do seu papel tão somente por suprir a despesas alimentares do seu filho, ou seja, não possui qualquer interesse na convivência com o menor, em suma, não se dedica rotineiramente à criação e ao desenvolvimento do seu descendente.
Entende-se, portanto, que ser pai é construir, diariamente, um vínculo afetivo e harmônico, com seu filho, de forma permanente, independentemente da existência do elo biológico.
Dessa forma, a paternidade socioafetiva fundamenta-se no Princípio da Proteção Integral da Criança e do Adolescente. Atualmente, busca-se a verdade sociológica, alicerçada no estado de filiação, na qual um terceiro assume a função paterna e um outro, o papel de filho, independentemente do vínculo sanguíneo.
5. O FENÔMENO DA PLURIPARENTALIDADE NO DIREITO DE FAMÍLIA
Importa trazer à baila, inicialmente, que a doutrina vem entendendo pela supremacia da paternidade socioafetiva em detrimento da biológica. Ocorre que, já se vislumbra em alguns julgados o reconhecimento simultâneo da paternidade biológica e afetiva, em observância ao princípio da dignidade da pessoa humana e da proteção integral aos interesses do menor, o qual terá amor, carinho, zelo, tutela, em duplicidade.
Dessa forma, o instituto da multiparentalidade significa a existência concomitante de dois pais, sem que haja a exclusão de um pelo outro. Nesse sentido, entende o Mestre Mauricio Cavallazzi Póvoas (2012): “é direito tanto do filho, como do genitor biológico e/ou afetivo, de invocar o princípio da dignidade da pessoa humana e da afetividade, para ter assegurado a manutenção ou o estabelecimento dos vínculos parentais”.
Desse modo, a pluriparentalidade caracteriza-se como um Instituto sociológico moderno, por meio do qual uma mesma pessoa possui mais de uma paternidade e/ou maternidade. Em outras palavras, vai legitimar a paternidade do padrasto, que zela, cria e ama seu enteado como se fosse seu próprio filho, sem gerar a exclusão dos pais biológicos. Dessa forma, o objetivo de tal instituto consiste justamente na inclusão no registro de nascimento dos pais socioafetivos, e na permanência do nome da família biológica.
Assim, a multiparentalidade ratifica o direito da criança e do adolescente em manter uma convivência familiar através da paternidade biológica juntamente com a paternidade socioafetiva.
Nesse contexto, leciona Maria Berenice Dias (2013) que:
Na realidade dos dias de hoje é indispensável ter uma visão plural das estruturas vivenciais, inserindo no conceito de entidade familiar todos os vínculos afetivos que, por imperativo de ordem ética devem gerar direitos e impor obrigações.
Não é mais possível viver em um mundo que exclua pessoas do direito à felicidade. Afinal, esta é a finalidade da sociedade e a razão de ser do estado. Por mais piegas que possa parecer, é só isso que todos queremos: o direito de ser feliz.
Desse modo, o reconhecimento jurídico da paternidade socioafetiva não representa impedimento à investigação da paternidade biológica, todavia, uma vez demonstrada a socioafetividade, esta sempre existirá, em observância à garantia do princípio do melhor interesse à criança e do bem estar social dos filhos afetivos, surgindo, assim, o fenômeno da pluriparentalidade, o qual não é vedado pela Constituição Federal de 1988.
Ademais, importa salientar a ementa do julgamento proferido pelo Tribunal de Justiça da Comarca de Joinville/Santa Catarina, nos autos 2016.015701-6, a qual reconheceu o fenômeno da pluriparentalidade, fundamentando-se na tese de que o enquadramento da paternidade socioafetiva não constitui elemento de impedimento para a declaração da ascendência biológica da infante:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE C/C ALIMENTOS. EXTINÇÃO DO FEITO, SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO PELA IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO E ILEGITIMIDADE DA REPRESENTANTE DA AUTORA. RECURSO DA AUTORA. RECONHECIMENTO DA LEGITIMIDADE DA GENITORA DA AUTORA LHE REPRESENTAR EM JUÍZO, VISTO INEXISTIR CONFLITO DE INTERESSES. REPRESENTAÇÃO CONFORME ARTIGO 1.634, DO CÓDIGO CIVIL. DIREITO PERSONALÍSSIMO DOS SUJEITOS DIRETAMENTE ENVOLVIDOS NA RELAÇÃO PARENTAL. EXEGESE DO ARTIGO 27 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. EVIDENCIADO O INTERESSE DE AGIR DA FILHA A FIM DE VER ESCLARECIDA SUA ASCENDÊNCIA BIOLÓGICA. EXISTÊNCIA DE LAÇOS AFETIVOS COM O PAI REGISTRAL QUE NÃO SE AFIGURA OBSTÁCULO INTRANSPONÍVEL AO RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA. POSSIBILIDADE DO REGISTRO CIVIL DA MULTIPARENTALIDADE. PRECEDENTE UNÂNIME DO GRUPO DE CÂMARAS DE DIREITO CIVIL DESTA CORTE. INTERESSE DE AGIR CONFIGURADO. NECESSIDADE DE RETORNO DOS AUTOS A ORIGEM PARA INSTRUÇÃO PROCESSUAL. SENTENÇA CASSADA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. - "A preexistência da paternidade socioafetiva não impede a declaração judicial da paternidade biológica, com todas as consequências dela decorrentes, inclusive as de natureza patrimonial.” (Processo AC 20160157016 Joinville 2016.015701-6. Relator Denise Volpato. Órgão Julgador Sexta Câmara de Direito Civil. Julgamento 19 de Abril de 2016).
Nesse diapasão, a jurisprudência brasileira vem decidindo pela simultaneidade da paternidade biológica e socioafetiva, gerando consequências exorbitantes no Direito de Família, especialmente, inclusão do nome do pai afetivo no registro de nascimento da criança, guarda e regulamentação de visitas, dever de pagamento de alimentos daquele para com a criança, além da existência de efeitos no ramo sucessório.