Resumo: As novidades trazidas pela Força Nacional de Segurança Pública exigiram aprofundamento nos estudos doutrinários e jurisprudenciais para dirimir eventuais dúvidas quanto à competência para investigar, processar e julgar militares que cometerem crimes militares quando em serviço da Força Nacional. Com este estudo é possível concluir acerca da constitucionalidade da FNSP, sua natureza jurídica e da competência das justiças militares estaduais de processar e julgar os militares das corporações militares respectivas, bem como sobre a autoridade competente a lavrar Auto de Prisão em Flagrante e instaurar Inquérito Policial Militar, que possa subsidiar decisões acerca de conflitos de competência e legalidade.
Palavras-chave: militares; Força Nacional de Segurança Pública; competências; crimes militares.
INTRODUÇÃO
1 SOBRE A FORÇA NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA - FNSP
A Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) foi criada em 2004 e tem sede em Brasília/DF. É um programa de cooperação de Segurança Pública brasileiro, coordenado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), do Ministério da Justiça (MJ).
A Força Nacional é formada por policiais militares e civis, além de bombeiros e profissionais de perícia dos estados membros (BRASIL, 2004), indicados pelas Secretarias de Segurança de seus respectivos Estados.
A carga horária de treinamento dos agentes é de aproximadamente 100 horas, divididas em quinze dias de aula. As disciplinas, em regra, são: direitos humanos, controle de distúrbios civis, policiamento ostensivo, gerenciamento de crise, técnicas de tiro, entre outras. (BRASIL, 2014)
O Batalhão de Pronta Resposta é a unidade de elite da FNSP e tem sede na Região Administrativa do Gama, no Distrito Federal. Seu efetivo treina com unidades de elite do Brasil e exterior para estar apto a ser empregado no policiamento ostensivo ou em operações policiais especiais em qualquer parte do país. Criado pelo Ministério da Justiça com o intuito de se tornar a principal e mais bem treinada tropa policial brasileira, e poder agir em situações de emergência na segurança pública, quando os órgãos de segurança pública estaduais solicitarem auxílio federal em caráter de urgência. As solicitações dos Estados são rapidamente respondidas, já que seu contingente é permanente e não desmobilizável, ficando de prontidão a atender situações críticas na segurança pública. (BRASIL, 2014)
A perícia forense é uma das atribuições da Força Nacional de Segurança Pública. É composta por profissionais de perícia oriundos das polícias civis e órgãos periciais de todos os Estados da Federação e do Distrito Federal que, após mobilizados e treinados, atuam com autonomia para resolução de atividades estritamente periciais destinadas a colher e resguardar indícios ou provas da ocorrência de fatos ou de infração penal, auxílio na ocorrência de catástrofes ou desastres coletivos e na identificação civil e criminal. (BRASIL, 2014)
O pessoal da FNSP é composto por peritos oficiais (peritos criminais, médico-legistas, odontolegistas) e papiloscopistas, atuando em diversas operações pelo Brasil de acordo com suas habilidades. Atualmente o foco de atuação da perícia forense são os exames voltados para as metas dos programas de redução de crimes violentos da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) e atualmente tem contribuído em perícias de locais de crime, exames balísticos, necropapiloscopia e levantamento de impressões papilares. (BRASIL, 2014)
A Polícia Judiciária passou a integrar a Força Nacional de Segurança Pública em meados de 2010. Composta por delegados, agentes e escrivães, oriundos de todos os Estados e do DF, que após mobilizados e instruídos, atuam com autonomia para o desempenho de atividades de polícia judiciária, na condução de inquéritos policiais que investigam crimes de homicídio, apontando indícios de materialidade e autoria de práticas delitivas, representando pelas respectivas medidas cautelares quando necessárias. (BRASIL, 2014)
A Força Nacional é acionada quando um Governador ou um Ministro de Estado (BRASIL, 2013) requisita auxílio federal para conter atos que atentam contra a lei e a ordem e que perigam sair do controle das forças de segurança locais.
A Força Nacional já fora empregada por várias vezes. Como última atuação de destaque, a Força Nacional agiu no Estado do Espírito Santo devido à paralisação dos trabalhos da Polícia Militar do Estado por conta do movimento que as esposas dos policiais militares fizeram na porta dos quartéis para impedir que seus maridos fossem às ruas, lutando pela reposição salarial e melhores condições de trabalho e segurança para seus maridos policiais. (BRASIL, 2017)
2 BREVES COMENTÁRIOS ACERCA DA CONSTITUCIONALIDADE DA FORÇA NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA
Como visto, a Força Nacional foi criada em 2004 através do Decreto 5.289, que buscou desenvolver um programa de cooperação federativo no âmbito da segurança pública. Porém, daí parece despontar a inconstitucionalidade do mencionado decreto pois inovou no âmbito de segurança pública a despeito da previsão constitucional que reserva à lei organização e funcionamento dos órgãos de segurança pública, conforme art. 144 §7º da Constituição Federal.
Importa salientar que a Força Nacional tem natureza jurídica de convênio de cooperação nos termos do art. 13 do dito decreto. Assim, atrai ao estudo a incidência do art. 241 da CF que disciplina que A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos. (BRASIL, 1988, grifamos)
O art. 241 da CF reservou à lei em sentido formal a disciplina dos convênios de cooperação, o que, no caso do Decreto 5.289/04, não foi atendido e leva consequentemente à sua inconstitucionalidade. (ASSIS, 2005)
Para sanar o evidente vício do Decreto, em 2007 o Presidente da República editou Medida Provisória 345 que tratou da cooperação federativa no âmbito da segurança pública. Ainda no mesmo ano, a MP foi convertida na Lei 11.473/07, resolvendo assim, qualquer argumentação que sustentasse a inconstitucionalidade da Força Nacional de Segurança Pública. (BRASIL, 2007)
Há quem defenda a inconstitucionalidade com fundamento na alegação de que o art. 144 da CF já elencou todos os órgãos de segurança pública, não podendo haver inovação a não ser por meio de emenda constitucional. Entretanto, tal alegação não tem respaldo pois a Força Nacional não é novo órgão de segurança pública, e sim fruto de convênio de cooperação federativo. Assim, não dispõe de pessoal próprio, sendo empregado pessoal das instituições de segurança de todos os Estados do país, inclusive da própria União no caso da Polícia Federal. (OLIVEIRA, 2009)
Conforme leciona Velasquez (2015), o convênio de cooperação denominado Força Nacional de Segurança Pública firmado entre o Ministério da Justiça e os Estados Federados possuem características que o revestem de constitucionalidade, consubstanciados na comunhão de objetivos, competências institucionais comuns, convergência de objetivos e resultados, colaboração bilateral, natureza precária e inexistência de cláusulas de permanência obrigatória e de sanção por inadimplência. Arremata afirmando que a Força Nacional atende ao art. 241 da CF, conferindo-lhe constitucionalidade.
2 SÍNTESE SOBRE DO DIREITO PENAL MILITAR
Na lição de Neves e Streifinger (2012, p.91), Direito Penal Militar consiste no conjunto de normas jurídicas que têm por objeto a determinação de infrações penais, com suas consequentes medidas coercitivas em face da violação, e, ainda, pela garantia dos bens juridicamente tutelados, mormente a regularidade de ação das forças militares, proteger a ordem jurídica militar, fomentando o salutar desenvolver das missões precípuas atribuídas às Forças Armadas e às Forças Auxiliares.
Os ditos autores salientam que a legislação penal castrense decorre da complexidade de normas jurídicas destinadas a assegurar a realização dos fins essenciais dessas instituições, baseadas na hierarquia e disciplina. (2012, p.90)
Ensinam que (2012, p.119) crimes militares são dotados de peculiaridade. Se classificam em própria e impropriamente militares conforme a teoria clássica, a mais aplicada. Neste contexto, por crime propriamente militar entende-se os que só podem ser cometidos por militares, pois consistem em violação de deveres que lhes são próprios. Em suma, é crime funcional praticável somente pelo militar. Salienta ainda que a doutrina especializada admite uma exceção que é o crime de insubmissão do art. 183 do Código Penal Militar, considerado o único crime propriamente militar que somente o civil pode cometer.
Por sua vez, crimes impropriamente militares são aqueles praticáveis por qualquer pessoa, civil ou militar. (NEVES; STREIFINGER, 2012, p. 119)
Conforme uma abordagem literal e topográfica, os crimes propriamente militares têm definição diversa na lei penal comum ou nela não se encontram. Assim, crimes militares próprios são aqueles tratados no inciso I do art. 9 do CPM; e impropriamente militares os abarcados pelo inciso II. (NEVES; STREIFINGER, 2012, p. 120)
De forma didática e prática, os crimes militares se classificam ainda como de tipificação direta e indireta. A primeira classificação diz respeito aos crimes nas condições do inciso I do art. 9º do CPM. Como crimes militares de tipificação indireta tem-se os alcançados pelos incisos II e III do dito artigo. A distinção trazida consiste na necessária conjugação do tipo incriminador com os elementos de uma das alíneas dos citados incisos, uma vez que são crimes que estão também previstos na legislação penal comum. (RAMOS; ROTH; COSTA, 2011, p.88)
Para ser possível configurar um crime militar, o sujeito do crime deve ser militar da ativa, que por sua vez não se confunde com militar em serviço. Conforme previsto no CPM, militar em serviço é aquele que está escalado para missão ou em efetivo desempenho de suas atividades. Militar da ativa é aquele que não está na reserva nem está reformado. (BRASIL, 1969).
Assim, militares inativos (reserva e reforma) não podem ser sujeitos de crime militar, salvo na hipótese prevista no art. 12 do CPM, que os equipara a militar da ativa para fins de aplicação da lei penal militar. (BRASIL, 1969).
No tocante às penas, o Direito Penal Militar também guarda particularidades. Conforme o Título V do CPM, as penas se dividem em principais e acessórias. As penas principais estão elencadas no art. 55 e consistem na morte, reclusão, detenção, prisão, impedimento, suspensão de graduação, posto, cargo ou função, e a reforma. A pena de morte só tem aplicabilidade em tempos de guerra e é executada através de fuzilamento. (BRASIL, 1969)
As penas acessórias estão dispostas no art. 98 e constituem-se na perda do posto e patente, indignidade e incompatibilidade para o oficialato, exclusão, perda da função pública, inabilitação para exercício de função pública, suspensão do pátrio poder, tutela e curatela, e suspensão dos direitos políticos. (BRASIL, 1969)
No Código Penal Militar há ainda a previsão de medidas de segurança que são diferentes das dispostas no Código Penal comum. Estão expostas no art. 110 e são denominadas pessoais, que por sua vez se subdividem em detentivas e não detentivas, e as patrimoniais. (BRASIL, 1969)
As medidas de segurança pessoais detentivas são a internação em manicômio judiciário e a internação em estabelecimento psiquiátrico anexo ao manicômio judiciário ou ao estabelecimento penal, ou em seção especial de um ou de outro. Já as não detentivas consistem na cassação de licença para direção de veículos motorizados, o exílio local e a proibição de frequentar determinados lugares. (BRASIL, 1969)
Por último, as medidas de segurança patrimoniais são a interdição de estabelecimento ou sede de sociedade ou associação, e o confisco. (BRASIL, 1969)
Assim, cuidou-se neste tópico de trazer uma sintética explanação acerca do conceito de crime militar e das penas previstas na legislação penal castrense no que se diferem da legislação penal comum a fim de facilitar na compreensão do presente artigo.
3 DA JUSTIÇA MILITAR
Assim como as instituições militares e o direito militar são dotados de grande peculiaridade, a justiça militar também possui características muito próprias, que a difere dos demais ramos da justiça.
Para começar, a justiça militar pode ser dividida em Justiça Militar da União e Justiça Militar dos Estados, para facilitar a compreensão. Ambas têm competência constitucional, que abarca perda de posto e patente, indignidade e incompatibilidade para o oficialato e perda de graduação, e criminal, mas à JMU não compete processar e julgar ações judiciais sobre atos administrativos disciplinares, cuja competência é da Justiça Federal, que se referem à competência cível. Na JME, é possível discutir tais atos disciplinares. Porém, a JMU é competente para processar e julgar civis que cometerem crimes militares, mas a JME não tem essa aptidão, que deverão ser processados e julgados pela justiça comum estadual. (BRASIL, 1988)
Quanto à competência criminal é interessante esmiuçar mais um pouco. Os órgãos jurisdicionais detém a formação de escabinato e são compostos por juízes militares e civil, sendo quatro daqueles dentre oficiais e um deste, no tocante aos Conselhos de Justiça. (BRASIL, 1988)
O Conselho Permanente de Justiça é competente para processar e julgar praças e civis (estes quando cometerem crimes militares que atingirem as Forças Armadas) e cada formação perdura por três meses. Por outro lado, o Conselho Especial de Justiça possui competência para processar e julgar somente oficiais. Os generais são julgados diretamente pelo Superior Tribunal Militar. (BRASIL, 1988)
No âmbito estadual, o juiz de direito do juízo militar ou juiz auditor é o competente para processar e julgar crimes militares praticados por civis contra as instituições militares estaduais e as ações contra atos disciplinares militares. (BRASIL, 1988)
A Constituição Federal, no art. 125 §3º, faculta aos Estados que possuem efetivo militar (Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares) acima de vinte mil, a criação da Justiça Militar Estadual, que poderão ser compostas pelo juiz auditor e pelos Conselhos de Justiça na primeira instância e pelo Tribunal de Justiça Militar ou pelo próprio Tribunal de Justiça em segunda instância. Atualmente, somente os Estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul utilizaram dessa possibilidade constitucional e criaram os seus Tribunais de Justiça Militar. A segunda instância da Justiça Militar da União é de atribuição do Superior Tribunal Militar. (BRASIL, 1988)
4 COMPETÊNCIA CRIMINAL PARA PROCESSAMENTO E JULGAMENTO DE MILITAR a SERVIÇO DA FNSP
Embora muitos estudiosos defendam a inconstitucionalidade da Força Nacional de Segurança Pública, fato é que ainda não houve provocação do Supremo Tribunal Federal para que houvesse a sua declaração. Também, é consolidada a existência, necessidade e utilização da FNSP pela União e pelos Estados que solicitam o reforço na segurança pública local.
Assim, a doutrina e a jurisprudência têm que se voltar para o estudo e tratamento das consequências das condutas dos militares componentes da Força. Neste diapasão, este artigo cuidou de analisar a repercussão criminal dos militares que cometam crimes militares enquanto estão a serviço da FNSP.
A celeuma pairava sobre a competência territorial para processar e julgar os militares de diversos Estados que compõem o efetivo da FNSP, já que a permanência destes é temporária e não deixam de pertencer juridicamente às forças militares estaduais de origem. Assim, um policial militar do Distrito Federal que está designado para compor o efetivo da Força continua pertencendo as fileiras da Polícia Militar do Distrito Federal, embora desempenhe suas atividades em nome da União em outras Unidades da Federação.
Nesta linha, tem-se que a Constituição Federal delimita as competências do Poder Judiciário. No particular, o art. 125 §4º da Carta Maior determina que as justiças militares estaduais detém a competência para processar e julgar os militares estaduais nos crimes militares definidos em lei. Em suma, fica definido que cada Justiça Militar Estadual processa e julga os militares do respectivo Estado. No caso do Distrito Federal, apesar do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios pertencer à estrutura da União, na prática funciona como corte distrital, competindo processar e julgar os militares da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militares do Distrito Federal. (BRASIL, 2004)
Nota-se do dispositivo constitucional que não há qualquer exceção à competência. Desta feita, é patente que os militares a serviço da Força Nacional de Segurança Pública, que continuam pertencendo às suas respectivas corporações militares estaduais, que cometerem crimes militares deverão ser julgados pelas justiças militares respectivas. Para possibilitar o processamento e julgamento pelo juízo competente, quando houver concurso de agentes de mais de um Estado (por exemplo, um PM do Distrito Federal e um PM do Goiás) em crime cometido no Estado do Espírito Santo, haverá a instauração do Inquérito Policial Militar pela respectiva corporação do DF e do GO, desmembrando a apuração para que cada militar seja processado e julgado pela justiça militar de seu ente federado. (ASSIS, 2005, p.3)
Em 1993, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 78 que preconizou que Compete à Justiça Militar processar e julgar policial de corporação estadual, ainda que o delito tenha sido praticado em outra unidade federativa.. Assim, mesmo onze anos antes da criação da Força Nacional, o STJ sumulou entendimento que viria bem a calhar na situação fática trazida pela inovação do decreto de criação da FNSP. Esse posicionamento corrobora com o previsto na CF/88, fazendo com que não paire dúvidas acerca da celeuma acerca competência criminal objeto deste estudo. (BRASIL, 1993)
No âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, na comarca de Novo Gama, em abril de 2017, o juízo decidiu por sua incompetência para processa e julgar militares dos Estados do Amapá e do Mato Grosso que estavam a serviço da FNSP no município da comarca e praticaram os crimes de lesão leve do art. 209 e ameaça do art. 223, ambos com tipificação indireta baseada no art. 9º, II, c, todos do Código Penal Militar. Em consequência, o juízo determinou a remessa dos autos às Justiças Militares dos Estados de origem dos militares. (TJGO, 2017)
Nesta linha, o Conselho Nacional do Ministério Público, no II Encontro Nacional do MP com atuação na Justiça Militar realizado em novembro de 2016 em Brasília/DF, chegou à conclusão que crimes militares praticados por militares a serviço da Força Nacional devem ser processados e julgados pela justiça militar de seu Estado de origem. Traz ainda o entendimento que a própria Força Nacional pode e deve instaurar o respectivo Auto de Prisão em Flagrante e Inquérito Policial Militar para apurar as condutas militares, por força da aplicação analógica do art. 250 do Código de Processo Penal Militar, com vistas a possibilitar a investigação adequada, eficiente e oportuna. (CNMP, 2016).