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Aspectos jurídicos da proteção dos territórios indígenas no Brasil

Aspectos jurídicos da proteção dos territórios indígenas no Brasil

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As diversas Constituições Federais evoluíram quanto à proteção dos indígenas e à sua causa maior: os territórios que originariamente lhes pertenciam.

ABSTRACT

Indian`s rights supression in Brazil is a fact started at the beggining of our colonization. The national historical process shows an indian`s subjection and elimination scenery and the same happened to their territories. Governmental policies about indian`s territories oscillated during the period between colony and empire, just becoming constant with the republic. The several federal constitutions performed evolution in sequence of their promulgation about rules referred to indian`s protection and their major cause: the territories they originally had. The 1988 federal constitution innovated the way of indian`s interests was treated, concerning ample protection to their territories. An intense discussion about the established rule of indigenato and it`s effects arose, affecting the set of problems involving the indian`s territories rights. Nowadays, governmental policies are being developed to the question which is effectived by government offices specifically created to this goal.

Keywords: Indians. Territories. Constitution. Possession. History.

RESUMO

A usurpação dos direitos indígenas no Brasil constitui fato com origem nos primórdios de nossa colonização. O processo histórico nacional denuncia um quadro de subjugação e eliminação dos povos pré-colombianos, e o tratamento em relação às terras que ocupavam em nada diferiu. As políticas referentes aos territórios indígenas oscilaram durante todo o período compreendido entre a colônia e o império, somente adquirindo alguma consistência na república. As diversas Constituições Federais evoluíram na seqüência de suas promulgações no que diz respeito aos dispositivos referentes à proteção dos indígenas e à sua causa maior: os territórios que originariamente lhes pertenciam. A Constituição Federal de 1988 revolucionou o tratamento dado à causa, conferindo aos povos indígenas ampla proteção aos seus territórios. Alargou-se a discussão sobre o instituto do indigenato e seus desdobramentos, refletindo-se nas celeumas concernentes a toda a problemática que envolve os direitos territoriais indígenas. Hodiernamente, políticas governamentais dirigidas à questão estão em desenvolvimento, efetivadas por órgãos criados especificamente para esse fim.

Palavras-chave: Indígenas. Terras. Constituição. Posse. História.


1 INTRODUÇÃO

Cuida-se de estudo jurídico acerca dos territórios indígenas no Brasil, com foco no desenvolvimento da proteção legal conferida pelo Estado à causa indígena sob comento.

Buscar-se-á delimitar os preceitos legais concernentes ao tema no decorrer do tempo, albergando uma visão ampla, porém objetiva, das vicissitudes sofridas pelos silvícolas, no que tange às suas terras, ao longo do processo histórico nacional.

Demasiada perfaz-se a importância desse estudo, uma vez que escassos são os trabalhos alicerçados no tema sob trato. Não obstante, crescentes são os conflitos envolvendo terras das populações indígenas, tornando-se urgente, portanto, o estudo e o aprofundamento sobre a causa, dadas a importância e a necessidade indiscutível da preservação desse grupo étnico no território brasileiro, uma vez que notórios são os fatos históricos que denunciam o tratamento degradante a que essas populações foram submetidas durante a maior parte do lapso temporal que compreende a existência desse país.

O tema foi desenvolvido eminentemente em pesquisa bibliográfica. A doutrina pátria foi perscrutada acerca de temas hermenêuticos, constitucionais, civis e indigenistas. No mais, foi pesquisada a legislação constitucional e ordinária, com o intuito de explicar a evolução das normas referentes aos direitos territoriais dos índios, bem como, a sua aplicabilidade no direito contemporâneo.

O objetivo deste trabalho é traçar um panorama doutrinário, legal e jurisprudencial atinentes à proteção das terras indígenas, sublinhando seu desenvolvimento histórico, culminando com a realidade jurídica hodierna sobre o tema, sempre partindo da premissa de que, para os índios, a posse de suas terras é o vetor inicial a partir do qual podem implementar o restante dos seus direitos. Observe-se que, ao se imiscuir no tema, faz-se necessário exercitar o raciocínio de que, antes mesmo de se ter notícia da existência das porções de terras conhecidas hoje como Brasil, os Índios aqui já estavam há muito tempo. Qualquer estudo sobre o tema em tela jamais atingirá perfeitamente seu objetivo sem tomar em conta essa observação que, apesar de clichê, é essencial para uma completa compreensão do significado do termo terra para os povos indígenas.

Por fim, ter-se-á também por meta apresentar uma abordagem sobre o tema que busque conciliar os antagônicos interesses particulares e sociais, sempre observando o princípio do respeito à preservação e defesa das minorias, e com o olhar atento para os valores exigidos pela Carta Constitucional de 1988.


2 BREVE RELATO HISTÓRICO

A questão da posse e da propriedade territorial dos indígenas constitui fator essencial para a sobrevivência de suas comunidades. Ao longo do processo de desenvolvimento histórico do país, muitos foram os problemas territoriais enfrentados pelos índios e, hodiernamente, o cenário apresenta-se mais favorável aos anseios e necessidades desses povos, apesar de longínquo, ainda, um panorama ideal. Qualquer tentativa de compreender a dimensão dos desafios enfrentados pelas comunidades indígenas, no que diz respeito aos seus direitos territoriais, deve ser precedida de uma revisão histórica, ainda que breve, dos percalços por que passaram seus tradicionais territórios.

Analisando a história das políticas governamentais em relação aos índios, concluímos facilmente que, desde o período colonial, esta se manteve indissociável da política territorial. Já no século XVII, a legislação portuguesa fornecia inequívocas provas da ligação entre essas duas políticas. Data de 10 de setembro de 1611 a primeira legislação colonial a referir-se à proteção de terras indígenas:

"... os gentios são senhores de suas fazendas nas povoações, como o são na Serra, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhes fazer molestia ou injustiça alguma; nem poderão ser mudados contra suas vontadas das capitanias e lugares que lhes forem ordenados, salvo quando elles livremente o quizerem fazer ..." (Carta Régia de 10/09/1611, promulgada por Filipe III) .

O Alvará de 1° de abril de 1680 já estabelecia que "(...) na concessão de sesmarias se reserva sempre o prejuízo de terceiros, e muito mais se entende, e quero que se entenda, ser reservado o prejuízo e direito dos índios, primários e naturais senhores dellas".

Essa correlação esteve presente em todos os momentos que marcaram a evolução da política indigenista. Desse modo, permeou as regulamentações pombalinas, que asseguravam liberdade aos índios, mas também a posse de seus bens e comércio. Também vislumbrou-se tal assertiva na política de aldeamentos e no Regulamento das Missões, uma vez que, em ambos os casos, foram reservadas as terras das aldeias e missões para uso e benefício dos índios aldeados. [01]

No campo da realidade, porém, apesar de as legislações garantirem os direitos dos índios sobre os territórios que ocupavam, o que se constatava era um impiedoso avanço sobre seus territórios, culminando com sua expulsão. Com a saída dos padres jesuítas, as terras das sesmarias indígenas eram alvos constantes de invasões e expropriações, quase sempre com o aval dos administradores locais, constituindo um desprezo aos títulos de sesmeiros dos indígenas.

Nos anos que se seguiram, a situação apenas se agravou, tanto porque o regime fundiário sofreu profundas mudanças, quanto porque foi intensificado o processo de incorporação de novas terras ao sistema produtivo. Seguindo o mesmo diapasão expropriatório, o direito dos índios sobre as terras foi completamente ignorado, apesar de vez ou outra surgirem normas coloniais conferindo-lhes algum direito sobre as terras que ocupavam, como o fez a chamada Lei Pombalina de 06 de julho de 1755: "... Os índios no inteiro domínio e pacífica posse das terras ... para gozarem delas por si e todos seus herdeiros".

No período compreendido entre 1822 e 1850, intervalo que situou a suspensão do Regime de Sesmarias e a edição da Lei de Terras, a apropriação territorial no Brasil aconteceu sem a égide de qualquer norma reguladora e, em função disso, a posse tornou-se a forma mais comum de aquisição de terras. Inevitavelmente, em função de um cenário tão propício, surgiram os embriões da classe dos latifundiários, que, invariavelmente, também galgaram sucesso à custa de terras originariamente indígenas, bem como de sua mão-de-obra "gratuita". [02]

Em 18 de setembro de 1850, foi promulgada a Lei n° 601, a chamada Lei de Terras. Em seu bojo, a continuidade de formação de novas posses, adquiridas, até então, de forma indiscriminada e desprovidas de qualquer rigorismo formal, foi expressamente proibida, devendo todos os interessados em adquirir terras, fazê-lo de forma legal, por via de compra. Nessa Lei, a questão dos índios foi tratada no artigo 12, de onde se extraía que caberia ao governo reservar terras devolutas para a colonização dos indígenas. Ressalte-se que não havia na Lei de Terras referência ao direito originário indígena sobre os territórios que originariamente ocupavam (indigenato).

Apenas um mês após a promulgação da Lei n° 601, foi publicada a Decisão n° 92, de 21/10/1850, determinando que as terras indígenas (sesmarias e terras de aldeias) que não estivessem efetivamente ocupadas, deveriam ser consideradas devolutas, retornando ao domínio público. Essa foi a realidade durante grande parte do período imperial: as terras dos índios eram consideradas devolutas, o que abria margem para um sem número de conchavos políticos, tendo como objeto os territórios antes pertencentes aos indígenas. Desnecessário pormenorizar os diversos artifícios utilizados pelas autoridades da época com vistas à usurpação das terras em poder dos índios. Estes eram simplesmente retirados à força de suas posses territoriais, e as mesmas eram declaradas "desocupadas", enquadrando-se assim, no permissivo legal da referida norma. [03]

Alguns anos após a publicação da Decisão n° 92, foi publicado o Decreto n° 1.318, datado de 30 de janeiro de 1854, que regulamentava a Lei de Terras e determinava, entre outras disposições, que as terras consideradas devolutas deveriam ser utilizadas para aldeamento e colonização dos índios e, ainda, que estes detinham o seu usufruto, não podendo, porém, aliená-las, in verbis:

"Art. 72. Serão reservadas as terras devolutas para colonização e aldeamento de indígenas, nos distritos onde existirem hordas selvagens. Art. 75. As terras reservadas para colonização de indígenas, e para elles distribuídas, são destinadas ao seu uso fructo; não poderão ser alienadas, enquanto o Governo Imperial, por acto especial, não lhes conceder pelo gozo dellas, por assim o permitir o seu estado de civilização."

Ironicamente, porém, na mesma linha das políticas anteriormente adotadas, com a novel Lei, o indígena passou da condição de proprietário natural da terra a expropriado, e dependente da benevolência do Estado para ter algo que um dia lhe pertenceu.


3 PANORAMA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS TERRITORIAIS INDÍGENAS

As Constituições da história do Brasil, na era republicana, com exceção da Carta de 1891, reconheceram aos povos indígenas direitos sobre os territórios por eles efetivamente habitados. Todavia, foi a Constituição Federal de 1988 a que apresentou um maior número de inovações no que diz respeito aos direitos dos índios, abordando-os com uma amplitude não encontrada nas suas antecessoras e conferindo tutela especial quanto aos direitos territoriais daquelas populações, caracterizando-se como base legal das reivindicações mais fundamentais desses povos [04].

A primeira Carta Constitucional Brasileira, datada de 1824, nada declarou acerca dos silvícolas e seus direitos, assim como a Constituição de 1891. Interessante anotar, que durante a elaboração desses dois diplomas legais, a Assembléia Constituinte debruçou-se sobre assuntos indígenas; todavia, as questões referentes a essas populações nunca despertou verdadeiro interesse nas antigas classes dirigentes brasileiras, o que fez com que não surgissem disposições sobre os índios nas duas primeiras Cartas Constitucionais. Segundo Manuela Carneiro da Cunha apud Paulo de Bessa Antunes [05], o Apostolado Positivista chegou a apresentar um texto à Constituinte de 1891, que reconhecia aos índios seus direitos originários, inclusive os territoriais:

"Art. 1° (...), II – Os Estados Americanos brasileiros empiricamente confederados, constituídos pelas hordas fetichistas esparsas pelo território de toda a República. A federação deles limita-se à manutenção das relações amistosas hoje reconhecidas como um dever entre nações distintas e simpáticas, por um lado; e, por outro lado, em garantir-lhes a proteção do Governo Federal contra qualquer violência, quer em suas pessoas, quer em seus territórios. Estes não poderão jamais ser atravessados sem o seu prévio consentimento pacificamente solicitado e só pacificamente obtido".

A Constituição de 1934 foi a que elevou, pela primeira vez, os direitos indígenas ao pedestal constitucional. Esta Carta continha dois tópicos acerca dos referidos direitos. O primeiro estava no artigo 5°, inciso XIX, alínea m, e enquadrava a "incorporação dos silvícolas à comunhão nacional" como competência privativa da União. Todavia, foi no artigo 129 da Constituição de 1934, que os indígenas tiveram a proteção aos seus direitos territoriais alçados, expressamente, a nível constitucional: "Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem, permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las".

A Constituição de 1937 suprimiu o dispositivo da Carta pretérita sobre a questão da competência privativa da União para legislar acerca da incorporação dos índios à comunhão nacional. Além disso, não trouxe maiores inovações, e manteve praticamente a mesma disposição da Constituição de 1934, ao preceituar: "Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, porém, vedada a alienação das mesmas" (art. 154).

Em 1946, a Constituição Pátria manteve as mesmas disposições dos três Diplomas constitucionais anteriores a respeito dos territórios indígenas, apresentando modificações apenas na redação do dispositivo que tratava da matéria, dispondo: "Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem" (art. 216).

Foi a partir da Carta de 1967 que os direitos dos silvícolas começaram a se tornar mais abrangentes, já num delineamento do amplo amparo à questão indígena, proporcionado na Constituição de 1988. Primeiramente, transformou as terras ocupadas pelos índios em bens da União (art. 4°, IV). Em seguida, determinou a competência da União para legislar sobre incorporação dos silvícolas à comunhão nacional (art. 8°) Porém, foi em seu artigo 186, que a Constituição de 1967 traçou os primeiros contornos do que seria a estrutura concernente ao regime jurídico das terras indígenas, tal como se tem hodiernamente: "É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes".

Esquivando-se do debate doutrinário acerca da real natureza jurídica da Emenda Constitucional n° 1, de 17 de outubro de 1969, e, ainda, olvidando-se a sua gestação revolucionária e ditatorial, a referida norma foi a que conferiu maior amplitude aos direitos indígenas, até aquele momento. O seu artigo 198 e parágrafos, além de garantir aos silvícolas a posse e o uso das riquezas naturais das terras por eles ocupadas, instituía outras medidas não menos importantes à garantia dos direitos territoriais dos índios:

"As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos têrmos que a lei federal determinar, a êles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de tôdas as utilidades nelas existentes.  § 1º Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas. § 2º A nulidade e extinção de que trata o parágrafo anterior não dão aos ocupantes direito a qualquer ação ou indenização contra a União e a Fundação Nacional do Índio".

Com a Constituição Federal de 1988 houve uma verdadeira quebra de paradigma no que toca às políticas governamentais dirigidas aos índios. Durante todo o processo colonizador brasileiro, as normas que tratavam sobre as relações entre a sociedade e os silvícolas eram embasadas no errôneo pressuposto de que os índios deviam ser desnudados de seus costumes, seu modo de vida, para transformar-se em membros regulares da sociedade. A atual Constituição pôs termo a esses princípios norteadores, garantindo aos indígenas o respeito à sua organização social, seus costumes, suas línguas, crenças e tradições. E mais: a CF/88 foi inovadora a tal ponto, que estabeleceu a natureza originária dos direitos territoriais dos silvícolas, direitos esses que passaram a ser considerados anteriores à própria formação do Estado brasileiro. Dessa forma, os direitos dos índios às terras que originariamente ocupavam passaram a não mais depender de qualquer reconhecimento oficial, estando vinculados, tão somente, ao processo de demarcação.

Observemos, ainda, que a Constituição de 1988 também levou ao patamar constitucional um conceito de terras indígenas, o que antes somente existia no plano doutrinário (CF/88, art. 231, § 1°).

Tal disposição constitucional faz com que bastem estar presentes os elementos caracterizadores de terras indígenas, para que o direito dos índios sobre elas exista, independentemente de qualquer ato constitutivo. Assim, qualquer ato que vise à demarcação de terras indígenas torna-se meramente declaratório, e com o único objetivo de determinar a exata extensão da posse pelos índios, para que os órgãos governamentais assegurem a proteção prevista na Constituição. [06]


4 PROBLEMÁTICA ATUAL DOS DIREITOS TERRITORIAIS DOS ÍNDIOS

Para os índios, a questão da terra é um ponto central dos seus direitos, uma vez que sua sobrevivência física e cultural depende, precipuamente, da garantia e manutenção de seus territórios. Logo, não há como se conferir direitos aos índios, se não lhes forem asseguradas a posse permanente e a riqueza das terras por eles ocupadas, pois a disputa dessas terras e de sua riqueza constitui o cerne da questão indígena no Brasil hoje.

A importância galgada pelo tema no ordenamento jurídico é de tal vulto, que disposições acerca das terras indígenas estão presentes, inclusive, no título da Constituição Federal de 1988, que trata da ordem econômica e financeira, quando, no artigo 176, § 1°, o constituinte dispôs que a pesquisa e a lavra de recursos minerais, quando realizada em território indígena, dependerão de condições específicas estabelecidas pela União.

Atualmente, as terras dos índios são áreas federais de domínio exclusivo da União. Por força de disposição constitucional, os direitos das populações indígenas sobre elas são imprescritíveis. As referidas terras são também inalienáveis, pois não podem ser alienadas a qualquer título, e indisponíveis, porque não podem ser destinadas a finalidades alheias à cultura indígena. [07]

Observe-se que a inalienabilidade e a imprescritibilidade referentes aos territórios dos índios, vinculam tanto a União quanto as próprias comunidades indígenas. Visando pôr fim à especulação de grandes grupos econômicos sobre as terras dos silvícolas, foi estabelecido que nem mesmo os próprios índios podem celebrar qualquer espécie de negócio jurídico que tenha por objeto disposição ou alienação dos direitos sobre as suas terras (CF/88 art. 231, § 6°).

Outra característica bastante peculiar das terras indígenas é que, sobre elas, inexiste direito de retenção por particulares. O STF já pacificou a matéria, determinando que o instituto oriundo do direito civil, não se aplica às contendas entre particulares e indígenas, acerca das terras destes últimos. Nem mesmo a caracterização da boa-fé, quando da realização de benfeitorias, constitui argumento válido quando julgadas lides que versem sobre tais direitos. [08]

A vinculação do índio ao seu território também estreitou sobremaneira as hipóteses de remoção temporária (obviamente, não há possibilidade de remoção definitiva) de indígenas, sendo possível somente em casos de epidemia ou catástrofe que provoque ameaça à sobrevivência da população em comento, em função do princípio constitucional da irremovibilidade dos índios de suas terras (CF/88, art. 231, § 5°). Ainda, em tal caso, essencial faz-se a aprovação do Congresso Nacional. Também mediante deliberação do Congresso Nacional, e em casos de risco à soberania nacional, os índios podem ser movidos de suas terras, devendo ser imediatamente realocados em seus territórios, tão logo cessem os riscos.

4.2 Exploração das riquezas naturais das terras indígenas

No que tange à exploração das terras indígenas e das riquezas nelas existentes, duas são as nuances atualmente vivenciadas: a existência da exploração clandestina e a exploração efetuada pelos próprios índios, ou mediante autorização destes. Sobre a primeira situação, existem alegações de que a não-destinação de recursos pelo governo aos índios constitui o cerne da exploração clandestina. Argumenta-se que, uma vez sem recursos para custear suas necessidades mais prementes, os indígenas acabariam coagidos a admitir a exploração vegetal e mineral em suas terras, em troca de recursos para solucionar seus problemas básicos de saúde, sanitários, etc.

Em relação à segunda situação, verifica-se uma problemática lastreada na questão da inalienabilidade e indisponibilidade das referidas terras. O conceito de terras indígenas englobou também toda a sorte de riquezas naturais presentes nos referidos territórios. Logo, conclui-se que, uma vez inalienáveis e indisponíveis as terras dos índios, também o são as riquezas minerais e todo o patrimônio ecológico vinculado a elas.

Se a terra é, em termos práticos, a própria razão de ser dos silvícolas, a proteção ao patrimônio territorial deles, incluindo suas riquezas ecológicas, deve ser a mais ampla possível. Todavia, são cada vez mais comuns os casos em que os índios exploram por si mesmos as riquezas de suas terras e as vendem, ou realizam contratos para que terceiros explorem essas riquezas, contratos estes nulos, em função do § 6°, do artigo 231 da nossa Carta Constitucional. Urge, daí, a necessidade de uma política governamental eficiente contra tal cenário, uma política que atue tanto no plano repressivo a esse comércio ilegal, quanto no assistencial, provendo os povos pré-colombianos de recursos suficientes para suprir as suas necessidades básicas enquanto população.

Outro fator que não pode ser desconsiderado em tal discussão é o disposto no artigo 225 da Constituição Federal de 1988, que imputa a todos os nacionais o dever de preservar o meio ambiente, independentemente de questões raciais ou étnicas.


5 O INDIGENATO

Embora o indigenato tenha sido previsto já nas leis portuguesas elaboradas para disciplinar questões concernentes ao Brasil Colônia, durante grande parte do império e do período correspondente à república anterior a 1988, não havia, na legislação, referência a tal instituto, ou seja, ao direito originário indígena sobre os territórios tradicionalmente ocupados por eles. [09]

Não é necessário maiores aprofundamentos historiográficos para concluir-se que a relação do índio com a terra é de "domínio imediato", "congênito", logo, originário. Partindo-se dessa ótica, pode-se afirmar que o indigenato não é um fenômeno passível de qualquer legitimação, ao contrário da ocupação aqui feita pelos povos estrangeiros, esta sim, ao menos teoricamente dependente de requisitos que a legitimassem.

Todavia, os fatos trazidos pela história apresentam um resultado fático bem diverso. O indígena, usurpado das terras que naturalmente lhe pertenciam, assumiu a condição de expropriado, dependente da benevolência do Estado para ter de volta os territórios que outrora lhe pertenciam pela mais legítima forma de aquisição: o indigenato.

Nosso ordenamento jurídico somente abrigou definitivamente o referido instituto, quando do advento da Constituição Federal de 1988. Foram reconhecidos cabalmente os direitos originários dos índios sobre as terras que ocupavam, reafirmando o indigenato, vale consignar, direito congênito dos índios, independente de título ou reconhecimento formal, sobre as terras que ocupam ou ocuparam.

José Afonso da Silva [10] tece os seguintes comentários acerca do instituto sob exame: "Os dispositivos constitucionais sobre a relação dos índios com suas terras e o reconhecimento de seus direitos originários sobre elas nada mais fizeram do que consagrar e consolidar o indigenato, velha e tradicional instituição jurídica luso-brasileira que deita suas raízes já nos primeiros tempos da Colônia, quando o Alvará de 1º de abril de 1680, confirmado pela Lei de 6 de junho de 1755, firmara o princípio de que, nas terras outorgadas a particulares, seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas."

O indigenato origina-se no fato histórico de terem sido os habitantes pré-colombianos do Brasil os primeiros ocupantes dessas terras. Não há vinculação entre a existência do referido instituto com a situação de fragilidade e desproteção em que se encontram. Como de outra forma não poderia ser, os direitos territoriais originários dos silvícolas são preexistentes e superiores a qualquer outro que por ventura se alegue e, portanto, oponíveis erga omnes. [11]

Ressalte-se que o processo de demarcação das terras indígenas em si, não possui condão constitutivo, uma vez que é a presença do índio e a sua vinculação às terras que lhe conferem o caráter constitutivo de seus direitos*. O referido processo visa, todavia, tão somente à delimitação espacial dos referidos territórios, com o intuito de possibilitar o exercício das prerrogativas constitucionais conferidas aos índios, e opor-se a terceiros que, por ventura, aleguem direitos constituídos sobre suas terras.


6 DA POSSE INDÍGENA E SUA CONCEITUAÇÃO CONSTITUCIONAL DIFERENCIADA DO DIREITO CIVIL

A posse dos índios sobre as terras que originariamente lhes pertencem não pode ser observada sob o prisma do direito civil, sob pena de serem constatadas incoerências e aparentes conflitos doutrinários e conceituais.

O principal desses conflitos é a questão da proteção à propriedade privada contraposta aos direitos territoriais dos silvícolas. Se, de um lado o ordenamento garante a proteção à propriedade e à posse particular, como forma de garantir o patrimônio dos cidadãos, por outro, faz-se necessário entender essa prerrogativa sob o prisma Constitucional de que tal garantia apresenta-se como proteção de forma geral. Assim sendo, sempre que outras razões mostrarem-se mais relevantes ao interesse público e à justiça social, essa prerrogativa será excepcionada. Exemplo claro de tal afirmativa são os casos das desapropriações por interesse público e das requisições administrativas.

Para o Direito Civil, a posse é uma relação material com a "res", na medida em que seu titular guarda e age como senhor do bem. Nessa posse há uma vinculação ao conceito de propriedade, posto que se busca proteger uma relação de fato que aparenta todos os traços de uma relação de domínio.

Já a posse indígena é preliminar a qualquer outra relação. Não pode ter sua proteção subordinada à existência de uma aparência com a propriedade ou confundida meramente com a posse civil ou ocupação geral que decorre de transferência entre terceiros. Mister considerar-se o indigenato, ainda, como cerne original de tais direitos, para que se possa alcançar uma interpretação condizente com a intenção do legislador constituinte*.

A posse indígena possui natureza mais ampla e flexível que a prevista no direito civil. O conceito tradicional de habitação deve ser adaptado ao modo de vida dessas populações, à natureza e ao modo de vida com características nômades. Sob essa ótica, a posse dos índios passa a se vincular não com a idéia de habitação, como costuma-se entender sob o prisma do direito civil, mas em consonância com os seus costumes e as necessidades de sua subsistência, levando em consideração a importância da caça e da pesca em suas vidas. [12] Logo, a posse dos silvícolas sobre suas terras, estabelecida na Constituição, está diretamente ligada aos seus costumes e hábitos, à sua vinculação com a terra que ocupam, às agressões sofridas no passado, bem como à dizimação vivida no presente.

A posse, no que se refere ao âmbito dos direitos indígenas, deve ser encarada de forma mais flexível, sem a exigência do rigorismo na verificação de requisitos civis para se conferir proteção à permanência desses povos em suas terras.

Analisando-se a relação do índio com o seu território, chega-se à conclusão de que esse vínculo é mais que econômico, perfaz-se, isto sim, numa interação ecológica da qual depende para subsistir. Logo, conclui-se que a retirada de um índio do seu habitat é mais traumática que o desalojamento de um não-índio de sua terra.

Vislumbra-se uma aparente colisão entre, de um lado, o direito dos índios à vida, à dignidade da pessoa humana e à diversidade cultural, e, do outro, o direito de posse clássica ou propriedade dos titulares da área. Tal conflito encontra solução mediante a aplicação do princípio da proporcionalidade, para que prevaleça o interesse que apresente maior consonância com os objetivos e fundamentos do Estado, previstos na atual Constituição Federal. Neste caso específico, destaquem-se a redução das desigualdades sociais e a garantia da justiça distributiva.

Analisando-se, então, o caso concreto, mediante o sopesamento entre os interesses particulares e a relação do índio com a terra, conclui-se que esta é mais importante que a correlação econômica que o particular tem com a sua propriedade. Assim, a preservação do interesse indígena soa mais condizente com a Constituição Federal que o mero privilégio ao patrimônio particular e, portanto, via de regra, deve haver a sua prevalência.

Necessário ressaltar que sempre que um particular for desintrusado de terras indígenas, não terá por perdido seu patrimônio. Destarte, este civil será devidamente indenizado pelas benfeitorias de boa-fé presentes naquela terra, por aplicação do Artigo 1.219, da Lei 10.406/2002. As decisões dos tribunais pátrios são pacíficas no sentido de que a União deve indenizar os particulares em tal situação. [13] Por fim, o real alcance do conceito da posse indígena tem o afã de salvaguardar a subsistência física e cultural desses povos, dada a dependência vital entre estes e seus territórios.


7 DA COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL DA JUSTIÇA FEDERAL NAS CAUSAS QUE APRESENTEM INTERESSES TERRITORIAIS DOS ÍNDIOS

Anteriormente ao advento da Constituição Federal de 1988, havia um entendimento majoritário, no sentido de que todos os processos que tratassem de interesses indígenas seriam de competência da Justiça Estadual. No Supremo Tribunal Federal esse posicionamento era unânime. Tal interpretação abrigava seu fundamento no fato de a Constituição anterior, a de 1969, não determinar, expressamente, a competência da Justiça Federal para dirimir lides envolvendo direitos indígenas.

A Norma Constitucional de 1988 trouxe expressamente prevista a Competência da Justiça Federal para julgar causas relativas a direitos dos povos indígenas, in verbis: "art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: (...) XI - a disputa sobre direitos indígenas".

O referido dispositivo constitucional é uma norma de índole processual, que define a área de competência de atuação jurisdicional quando o assunto relaciona-se a direitos indígenas. Caracteriza-se como preceito instrumental que visa a operacionalizar outros preceitos substanciais presentes na própria Constituição, mormente o disposto no artigo 231, CF/88: "Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".

Uma vez que o artigo 231 impõe à União o dever de proteger as populações indígenas, preservando, sem ordem de preferência, sua cultura, sua terra, sua vida e, em função das disposições do artigo 109, XI, passa a Justiça Federal a ser competente para dirimir as contendas sobre direitos dos índios, inclusive, e como não poderia de outra forma ser, possuindo competência para processar e julgar lides, que digam respeito aos direitos territoriais dos índios.

Seguindo o entendimento preconizado pela doutrina após a promulgação da Novel Constituição da República, o Supremo Tribunal Federal uniformizou sua jurisprudência no sentido de retirar a competência da Justiça Estadual para julgar demandas que versem sobre direitos indígenas, incluindo suas terras, para atribuí-la, exclusivamente, à Justiça Federal, e.g.:

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. USUCAPIÃO. PERÍMETRO DE ALDEAMENTO INDÍGENA. MANIFESTAÇÃO DE INTERESSE DA UNIÃO FEDERAL. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM PARA AVALIAÇÃO DO PEDIDO. 1. Ação de reconhecimento de domínio sobre imóvel situado no perímetro de aldeamento indígena. Manifestação de interesse da União, perante a Justiça Estadual. Somente à Justiça Federal cabe avaliar a realidade ou não desse interesse. 2. Incompetência da Justiça Comum para exame da pretensão. Recurso conhecido e provido (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Re 197628/ SP. T2. Min, Maurício Corrêa. j. 25/03/1997).

Por fim, cabe ressaltar que a Constituição também determinou que os índios, suas comunidades e organizações, são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses (CF/88, art. 109, XI); logo, possuem autonomia para demandar judicialmente quando necessitarem da tutela jurisdicional do Estado no tocante aos seus direitos sobre as terras que ocupam. Essa disposição Constitucional, que constitui estrutura basilar de qualquer Estado democrático de direito, equipara os indígenas e suas organizações às pessoas físicas e jurídicas do Brasil, que sempre gozaram da prerrogativa de invocar diretamente o Poder Judiciário quando necessário à garantia e defesa de seus direitos.


8 POLÍTICAS GOVERNAMENTAIS E A QUESTÃO DAS TERRAS INDÍGENAS

Historicamente, no Brasil, o conjunto de ações, políticas e relações que envolvem o governo e os povos indígenas tem sido implementado por instituições específicas.

A primeira dessas instituições foi a Igreja Católica que, no período colonial, possuía a função de "civilizar" os índios através da catequização*. Com a expulsão dos jesuítas, o Estado Português assumiu essa tarefa, executando uma política específica, expressa no Diretório de pombal, que objetivava a assimilação dos índios à sociedade nacional.

Durante o Império, a política indigenista objetivava a integração dos índios à sociedade nacional, e foi executada pela Diretoria Geral dos Índios, repartição pública exclusiva para este fim.

Em 1910, foi criado o SPI - Serviço de Proteção ao Índio, que não trouxe alterações significativas na política então implementada. O SPI era o órgão indigenista do país, e executava uma política de proteção aos índios, de caráter integracionista: proteger os índios até que deixassem de ser índios e se tornassem brancos.

Com a criação da Fundação Nacional do Índio - FUNAI, em 1967, observou-se apenas uma mudança de nome de instituição. Foram mantidas as mesmas regras do SPI e, inclusive, muitos dos seus funcionários. Somente em 1973, com a promulgação da Lei 6.001 datada do mesmo ano, denominada Estatuto do Índio, houve um novo empenho governamental no que diz respeito às políticas garantidoras e protecionistas das terras dos índios. A Lei 6001/73 dedicou um título inteiro para tratar das terras indígenas, abordando, inclusive, a questão da demarcação delas, remetendo à regulamentação ao Decreto n° 22, de 04/02/1991. Atualmente, a sistemática administrativa de identificação e demarcação das terras indígenas está disposta no Decreto 1.775, de 08 de janeiro de 1996.

A FUNAI é a executora da política indigenista da União e responsável pela demarcação das terras indígenas. Parte da atuação da FUNAI consiste na realização de trabalhos junto aos índios para que não promovam ocupações e ou manifestações que, de alguma forma, firam o Estado de direito; o órgão também procura orientá-los no sentido de que, quando desejarem fazer reivindicações, que o façam de forma legal e pacífica. Importante anotar que a referida Instituição, fundação pública federal, não possui poder decisório sobre as atitudes tomadas pelos indígenas. Tal, aliás, seria totalmente inconcebível à luz da Constituição de 1988, que reconhece aos índios, às suas comunidades e organizações, legitimidade para requerer seus interesses e direitos, independentemente de apoio ou autorização por parte do Poder Público. A FUNAI, portanto, por sua própria atribuição institucional, busca sempre atuar ao lado dos indígenas na defesa de seus direitos e pode representá-los ou assisti-los, conforme o caso, em demandas individuais ou coletivas, não decidindo, entretanto, sobre o próximo passo a ser dado por este ou aquele determinado grupo indígena.

O campo de atuação, no que diz respeito especificamente às terras indígenas, objetiva o cumprimento das determinações constitucionais e das políticas governamentais dirigidas à questão. Suas atividades são desenvolvidas em várias frentes, buscando albergar todos os aspectos vinculados à problemática dos territórios indígenas, perfazendo-se em: atividades de fiscalização preventiva; operações de extrusão para retiradas de invasores e reocupação tradicional de territórios; mapeamento, identificação e diagnóstico de problemas ambientais nos entornos das terras indígenas com vistas a elaborar programas de prevenção aos crimes ambientais, como: extração ilegal de madeiras e minérios, expansão agrícola, caça e pesca ilegais. Atualmente, a Fundação também desenvolve trabalhos de contenção da pressão do Movimento dos Sem Terra, quando as terras reivindicadas englobem territórios dos índios.


9 CONCLUSÕES

A análise dos aspectos jurídicos concernentes à proteção das terras indígenas aponta que uma das formas, senão a mais importante, de garantir a perpetuação desses povos, é por meio da salvaguarda dos seus direitos, máxime a proteção à posse das suas terras. Destarte, a terra, para o indígena, tem uma representação especial, haja vista que é por meio dela que os índios conseguem a sua subsistência e consolidam a prática das atividades que distinguem a sua etnia. Todavia, o curso da história apresentou um quadro de profundo atentado aos direitos territoriais dos silvícolas, os quais sofreram toda sorte de agressão ao bem que, ao lado de sua cultura, desponta como o mais precioso para a perpetuação de seu povo.

O próprio diploma legal máximo do país, qual seja, a Constituição Federal, oscilou sobremaneira ao longo dos anos e dos momentos políticos de suas promulgações pelo legislador constituinte. A questão indígena, mesmo sendo levada para debate nos trabalhos legislativos, quase sempre era preterida em função da pouca atenção despendida pela classe política, isso quando os membros das comissões não cediam aos apelos da classe dos latifundiários e outras que, direta ou indiretamente, tinham interesse em ver abrandadas as disposições relativas às referidas terras. Tanto o é, que, alternando-se entre garantias por vezes mais, por vezes menos amplas, as diversas Constituições da República não fizeram nada mais que refletir as nuances dos interesses das classes burguesas e políticas que permeavam o cenário nacional à época dos trabalhos que resultavam em suas promulgações.

A mais recente Carta Magna brasileira - a Constituição Federal de 1988 - procurou garantir aos indígenas seus direitos territoriais, reconhecendo que os índios, assim como outras minorias nesse país, precisam mais que outros indivíduos, de instrumentos garantistas para que possam manter sua existência, ante a sempre constante afronta, por setores da sociedade econômica, à ocupação pelos indígenas dos territórios que lhes pertencem por direito. A Carta Constitucional reconhece essas terras como direitos originários que consagram uma relação jurídica fundada no instituto do indigenato, uma velha e tradicional instituição jurídica luso-brasileira que deita suas raízes nos primeiros tempos da Colônia, firmando o princípio de que, nas terras outorgadas a particulares, seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas. Dessa forma, patente é a necessidade de proteção cada vez mais ampla a essas populações por parte do Estado, através do Judiciário, Legislativo e Executivo, este último, por meio das Políticas indigenistas traçadas, coordenadas e executadas pelas Instituições cumpridoras dos objetivos governistas.

Por fim, a posse das terras pelos índios deve ser encarada como direito fundamental desses povos, e posta em primazia quando em conflito com os mais diversos interesses particulares em jogo. Nesse sentido, a posse dos indígenas sobre as terras tradicionalmente por eles ocupadas, deve ter sua existência aferida de forma mais flexível quando comparada à noção de posse obtida a partir do estudo do direito civil. Logo, outros requisitos além dos estritamente civis, devem ser tomados em conta quando da análise dessa relação jurídica diferenciada. Questões características unicamente à situação dos índios para com suas terras, tais como o indigenato e a tradicionalidade, são de sopesamento obrigatório quando da análise do tema visando à demarcação de terras silvícolas, bem como ao julgamento de quaisquer lides envolvendo territórios ocupados originariamente pelas populações em questão.


REFERÊNCIAS

ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 9. ed. São Paulo: Lumen Juris. 2006. P. 911-943.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Os Direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Brasiliense, 1987.

______. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

GRUPIONI, Luis Donisete Benzi. Índios no Brasil. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.

JUNIOR, Luiz de Freitas. Hermenêutica Constitucional da Posse Indígena. Revista da Advocacia Geral da União. Ano VII, n° 15, março de 2008.

MOREIRA, Vânia Maria Losada. Terras indígenas do Espírito Santo sob o Regime Territorial de 1850. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n 43, p. 153-169, jul. 2002.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2005. P. 748-749.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007.


Notas

  1. MOREIRA, Vânia Maria Losada. Terras indígenas do Espírito Santo sob o Regime Territorial de 1850. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n 43, p. 154-155, jul. 2002.
  2. GRUPIONI, Luis Donisete Benzi. Índios no Brasil. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992, pg 158-159.
  3. MOREIRA, Vânia Maria Losada. Terras... Op. Cit. p. 163-164.
  4. ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 9. ed. São Paulo: Lumen Juris. 2006. P. 925.
  5. CUNHA, Manuela Carneiro da. Os Direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Brasiliense, 1987, P.152.
  6. CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, P. 422.
  7. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2005, P. 749.
  8. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Embargos à Execução 323-7. Min, Sepúlveda Pertence. j. 06/03/1997. DJU. 14/03/1997. S. 1. p. 6946 – 6947.
  9. CUNHA, Manuela Carneiro da. História... Op. Cit. p. 117.
  10. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, P. 859.
  11. MOREIRA, Vânia Maria Losada. Terras... Op. Cit. P. 160-161.
  12. JUNIOR, Luiz de Freitas. Hermenêutica Constitucional da Posse Indígena. Revista da Advocacia Geral da União. Ano VII, n° 15, março de 2008, P. 8.
  13. TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL. 4ª Região. AG 2005.04.01.021350-6. T4. Min, Valdemar Capeletti. j. 24/08/2005. DJU. 21/09/2005.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAULA, Leonardo Nascimento de. Aspectos jurídicos da proteção dos territórios indígenas no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2135, 6 maio 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12759. Acesso em: 25 abr. 2024.