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Orientalismo e o Direito Internacional.

Relações internacionais, eurocentrismo, colonialismo e a imagem do árabe-palestino durante o conflito em Gaza (2008-2009)

Orientalismo e o Direito Internacional. Relações internacionais, eurocentrismo, colonialismo e a imagem do árabe-palestino durante o conflito em Gaza (2008-2009)

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A violência do Outro é interpretada pelo colonizador como uma demonstração da sua bestialidade e a violência do colonizador é sempre vista como um ato defensivo contra o não-civilizado.

Resumo: O artigo analisa o discurso jurídico israelense e suas representações orientalistas do árabe-palestino. Usando como arsenal teórico o pós-colonialismo, a pesquisa descreve os atos de fala israelenses como continuação do orientalismo europeu, em que o Outro (o árabe-palestino) não é somente sem valores, mas a negação de todos os valores. Deste modo, qualquer violência usada por este Outro é imoral. Seguindo esta estrutura discursiva, a violência do Outro é interpretada pelo colonizador como uma demonstração da sua bestialidade. Conseqüentemente, a violência do colonizador é sempre vista como um ato defensivo contra o não-civilizado. Este texto apresenta a hipótese de que o Direito Internacional apresenta um sofisticado vocabulário para as potências coloniais para apresentar os Outros como sujeitos para a conquista colonial e legitimar a violência imperialista como uso da força "proporcional" e "necessário". Assim, através do Direito Internacional, estas potências empregam este poder simbólico para desumanizar e criminalizar o Outro, o interpelando como crime de guerra qualquer violência empregada contra o colonizador.

Palavras-chave: Direito Internacional; Orientalismo; Pós-Colonialismo; Abordagens do Terceiro Mundo do Direito Internacional [Third World Approaches to International Law]; Guerra em Gaza; Oriente Médio; Palestina.


1. Apresentação

Este texto é resultado de inquietações. Fui profundamente perturbado pelos acontecimentos em Gaza. A brutalidade colonialista 1 se mostrava mais uma vez em uma guerra aberta contra todos os limites aceitáveis para o exercício de sua violência. A mídia, que usualmente acobertando episódios desta natureza, foi obrigada a divulgar grandes manifestações ao redor do mundo 2, acentuando o divórcio entre os níveis de violência "antiterror" aceitáveis pela sociedade daqueles praticados pelas potências colonizadoras. Israel lançou uma massiva operação de destruição em uma diminuta área da Palestina. O objetivo foi causa de disputa: por um lado foi alegado que os únicos fins seriam o massacre e arrasamento 3 e de outro uma justificação vaga de alterar a situação de segurança no sul de Israel.

O texto irá buscar na tradição crítica de Edward Said (2003) o seu lineamento e demonstrar como o discurso colonial 4 representou o árabe-palestino (Orientalismo) no discurso jurídico e filosófico durante o Genocídio. Apresentaremos como a intelligentsia israelense – o colonizador e orientalista no caso em análise – representou o árabe-palestino. Os dados utilizados são discursos, aqui entendidos em sentido foucault-saidiano amplo. Ou seja, discurso não só como "fala" e sim como estratégia de dominação. Discurso que não é neutro ou objetivo, mas politicamente carregado e levando mensagens não-perceptíveis, postulados ideológicos. Estes atos de fala tomados por densa roupagem político-ideológica desconstituem o sujeito real e o reconstituem em uma forma totalmente diferente. O árabe, por exemplo, é transmutado em algo maléfico por si só – como foi o índio ou o negro por toda a América.

Chamo de "discurso jurídico" os artigos publicados em periódicos e jornais acadêmicos contendo vocabulário pautado em uma argumentação legal principalmente fundada no Direito Internacional Público, Direito Internacional Humanitário e Direitos Humanos. Os artigos usados foram Bell (2008), Bryen (s.d.), Dershowitz (2009), Gold (2008) e Maurer (2009). Embora nem todos os autores sejam de nacionalidade israelense, foram agrupados nesta categoria por, em termos gerais, apresentarem semelhanças do ponto de vista político-ideológico e argumentativo pró-Israel. Estes autores e textos não são uma lista exaustiva, no entanto são significativos por representarem influentes think-tanks (Bryen e Gold) e reconhecidas universidades (Bell e Dershowitz). Em decorrência da exaustiva citação do material em inglês, os trechos mencionados foram traduzidos para facilitar a leitura. Finalmente, na delimitação temporal, este texto se detém ao Genocídio de Gaza iniciado com a operação militar israelense no dia 27 de dezembro de 2008 e encerrada em 19 de janeiro de 2009 com mútuas declarações unilaterais de cessar-fogo.

O Orientalismo é parte da estratégia e prática colonial, podendo ser sintetizado como um discurso para o domínio, introduzido para a universalização de um modelo de controle territorial e populacional aplicado da Europa para o Oriente Médio. É uma forma particular de discurso em que o colonizador se auto-representa como "civilizado" e representa o Outro como seu extremo oposto, isto é, "a barbárie". O discurso orientalista foi então colocado à disposição das administrações imperialistas da Europa para controlar e ordenar o Oriente Médio. O Orientalismo como saber acadêmico retido nas mãos da intelectualidade européia acrescentou um poder moral ao poder militar e à superioridade religiosa: o orientalista/colonizador sabe sobre o Outro. Através do Orientalismo é possível identificar percepções e representações comuns do Oriente produzidas pelos colonizadores – um mecanismo para assegurar e justificar a prevalência da superioridade colonial e inferioridade do colonizado (Said, 2003). Há um padrão (a estrutura do discurso colonial) de difícil reconhecimento por conta dos protegidos sistemas ideológicos.


2. Estrutura do discurso colonial

Uma nação que coloniza ou justifica o colonialismo já é uma civilização doente, uma civilização que está moralmente deturpada (Césaire, 1955).

The investigation has now been completed and has uncovered no violations of international Law [...] (State of Israel, July of 2009, p. 151)

O discurso colonial é também método de transmissão de relações de poder: cria e/ou atualiza diuturnamente a hierarquização dos sujeitos. Alega (por meio de sua narrativa e violência simbólico-lingüística) e assegura (por meio da coação física) um processo de dominação. A fala do colonizador é um conjunto de práticas violentas intencionais, buscando a subjugação psicossocial quando muitas vezes já foi assegurada a dominação político-econômica. Simultânea à desarticulação das instituições sociais do colonizado, ocorre a intencional prática para sua desumanização 5 e inferiorização. A crueldade (materializada seja pela expulsão e tomada das terras, o assassinato em massa ou a degenerada destruição para instigar o pavor na população colonizada) nada mais que é que a consolidação desta prévia classificação do Outro/colonizado como o não-Eu/não-humano (Césaire, 1955; Fanon, 1991; Said, 2003; Sartre, 1985).

O colonialismo não é um plano mental ou ato isolado; é inerentemente um conjunto de práticas para transformar o Outro em Outro, em um não-ser e contido nesta não-existência constituído como um sub-ser, obter a permissão para sua manipulação que pode ser sua eliminação por meio ou da remoção física (com a expulsão/o deslocamento territorial) ou mesmo da destruição total (com o extermínio físico e apagamento de suas entidades políticas, sociais e culturais). Para o colonizador não há nada de errado com a destruição do Outro - o Outro é justamente o Outro. Um não-ser pode então ser tornado no nada – o assassinato em massa sob a forma das expedições punitivas do colonizador é mera formalidade processual para a conformação do "selvagem" neste nada.

A estrutura do discurso colonial segue este padrão de nulificação do Outro: o Outro é criado a partir da negação do Eu em arquétipos dicotômicos (Said, 2003). O Outro não é uma criatura sem valores, "mas a negação dos valores [do colonizador]", "ele é o mal absoluto" (Fanon, 1991, p. 72). O Outro é percebido como uma criatura bestial e não-humana cujo único idioma que compreende é o trovoar dos fuzis do colonizador. A violência do Outro é interpretada como comprovação de sua bestialidade contra o civilizado colonizador. A violência do colonizador é em si mesma auto-justificada: violência que se apresenta como violência induzida contra a agressão [do Outro] e, desta forma, legítima defesa (Sartre, 1985). A violência das relações coloniais é resultado desta totalidade discriminatória que é o discurso colonial.

As relações coloniais envolvem subordinação do Outro através de extrema violência. A desarticulação econômica 6 e arrasamento político-institucional são objetivos do colonizador ambicionando a prevalência das relações de domínio. O arrasamento político, social e cultural é perpetrado primordialmente pelo Orientalismo, descrevendo o Outro como uma caricatura do real. Mas o Outro não é apenas descrito no Orientalismo: ele é desconstituído e refeito como algo novo de tal maneira que o Oriente existente na narrativa do colonizador é uma representação ideológica sem conexão com o real. É fantasia do orientalista. A prática discursiva orientalista tem por objetivo criar uma entidade histórica e geográfica não apenas inventando o outro, mas sujeitando-o/dominando-o e expropriando-o do direito de se "auto-explicar", privando-os da fala e representando-os de maneira a impedir sua auto-representação.

Ao fim, o Orientalismo obtém hegemonia cultural e determina como o "Eu" ocidental percebe e apreende o Outro meso-oriental. Não apreendemos o mundo de forma objetiva, mas sob a cobertura ideológica do Orientalismo. A forma pela qual entendemos o Oriente é distorcida pela grande narrativa Orientalista transmitida através de gravuras, literatura, filmes e atos de fala. O Outro é representado nesta forma distorcida e a representação – do Outro como total estranho, como inferior, como bárbaro atrasado e não-civilizado - é universalizada permitindo práticas que não são aceitas com o Eu (ou mesmo com diversos "Outros"), como por exemplo, a expulsão em massa e o assassinato coletivo (práticas que não seriam toleradas se exercitadas contra brancos-cristão-europeus ou afro-descendentes ou um albanês kosovar). O árabe/muçulmano/palestino foi representado como terrorista, personificação da fúria incivilizada e manifestação da ameaça ao civilizado. O oriental é sempre associado aos adjetivos "extremista fanático religioso", negação da "moderação científico-racional" (Said, 2003). Esta representação (preconceituosa e demonizante) se faz presente também no discurso jurídico-político, como será apresentado a seguir.

Apresento um adendo à tese clássica do Orientalismo: a perspectiva da existência de um Orientalismo Jurídico. Não há apenas uma permeabilidade do discurso jurídico para com o Orientalismo. Há algo de inovador em mediar a guerra através de discursos jurídicos. A linguagem jurídica invoca poder; pretende-se legítimo e "justo", tal como as vozes do episcopado católico na Idade Média. O discurso jurídico traz para si o fardo de ser o determinante final, buscando ser decisivo para a resolução dos conflitos. Assim, o discurso jurídico substituiu os antigos atores na capacidade de definir o sagrado/pecaminoso e o lícito/ilícito. O Orientalismo Jurídico é um avanço potencialmente perigoso, mesclando a manipulabilidade advinda (i) da superioridade civilizatória do colonizador e (ii) a pretensa intangibilidade moral da justiça. Com essa dupla determinação de capitais simbólicos, o Outro é também duplamente enfraquecido: é racialmente/culturalmente inferior e, como se não bastasse, é ilegal/injusto. O Outro, através do Orientalismo Jurídico, navega então no limbo da criminalidade, da ilicitude e da imoralidade, para muito além da sua condição de bárbaro e bestial. Em momentos em que a legitimação para a violência colonial não pode surgir ou manter-se totalmente pela força da religião, o discurso jurídico-orientalista alimenta os agentes coloniais com uma nova fonte de virtude, que agora é provinda da legalidade/juridicidade.

Estas práticas coloniais foram em grande parte permitidas ou legalizadas (consideradas permissíveis e aceitáveis) pelo Orientalismo Jurídico. Exemplificando, a "Partilha da Palestina", ato de brutalidade colonial supremo. Potências européias estrangeiras (Inglaterra e França 7) negociando terras 8 com um segundo grupo (judeu-europeus sionistas 9) esquecendo-se que estas terras eram ocupadas por terceiros (árabe-palestinos). O Orientalismo permitiu tornar invisível 10 toda uma população local e o Orientalismo Jurídico deu-lhe as vestes de juridicidade. Em primeiro momento então, a Conferência de San Remo (Itália, 1920) referendada pela Sociedade das Nações (em 1922) constituiu o Mandato Britânico 11 para a Palestina, usando do Direito Internacional para efetivar os acordos coloniais. O Mandato toma um território ocupado e adquirido militarmente e passa a tratá-lo como uma área de possessão britânica, podendo dispor dela como bem entendesse. Posteriormente (e já com a dissolução da Sociedade das Nações), o Plano de Partilha da Palestina emitido pela Assembléia Geral da ONU 12 (A/RES/181 II, 181 in Institute for Palestine Studies, 1980) fez exatamente a mesma coisa: atende solicitação da Potência Mandatária e sugere a divisão geográfico-política da região. Embora faltasse legitimidade para a Sociedade das Nações ou a ONU para decidir sobre o futuro dos povos à revelia da autodeterminação e vínculos territoriais deste, o Orientalismo Jurídico permitiu estas operações.

No ano seguinte, a antiga potência colonial (Inglaterra) retirou-se e uma nova entidade jurídica, Israel foi constituída (se não de jure, ao menos de facto), mantendo as relações coloniais para com os árabe-palestinos. A velha tradição de ignorar os povos tradicionais não seria possível e foi preciso uma larga operação militar para o desalojamento, expulsando e impedindo o retorno destes 13. O Sionismo, repetindo o discurso colonial, apresentou o Outro/Palestino como não-detentor de direitos (sejam direitos coletivos como à independência política e autodeterminação, ou mesmo direitos individuais, como direito à vida, à propriedade e liberdade) e deu continuidade ao Orientalismo. As representações dicotômicas, típicas do Orientalismo persistem: Israel é civilizado, a Palestina é barbárie; Israel é democrático, a Palestina é autoritária. E ignora-se a contradição política fundamental: Israel é um Estado que ocupa militarmente a Palestina e a Palestina é um território militarmente ocupado por Israel. Novamente, qual a fonte do pretenso direito de Israel em militarmente ocupar a Palestina pelos últimos 60 anos? Mais uma vez, o Orientalismo Jurídico irá conferir legalidade à brutalidade do colonizador e sua violência será mero exercício legítimo da força para a proteção de seus civis barbaramente atacados por criminosos palestinos, enquanto a violência do colonizado é barbárie criminosa contra o justo colonizador.

Uma única fonte perpetua todos os tipos de relações coloniais: a violência. Em relações entre colonizado e colonizador só há espaço para a força. A diferenciação preconceituosa quer assuma a fantasmagórica fachada de conflito étnico, religioso, lingüístico, cultural, nacional ou uma combinação de todos estes, é uma diferenciação para segregação e opressão do colonizado. O Orientalismo é veículo para administração colonial, incorporando as representações do Outro no discurso acadêmico-científico – e no caso, jurídico – assistindo a expansão dos interesses coloniais (Iskandar, 2009; Said, 2003). O Orientalismo Jurídico toma forma de meios para justificar a subjugação do colonizado ou mesmo a de um manual com claras indicações do que e como fazer com o Outro, contribuindo para a preservação de um sistema de idéias e poder.

Estas descrições incorporadas na pesquisa científica passam a justificar o colonialismo baseando seus argumentos na lógica binária de que "nós" somos benevolentes e "eles" são traiçoeiros (Assayag, 2007; Iskandar, 2009; Said, 2003). Por esta razão, o colonizador/Israel tem o direito e o fardo de executar sua "violência civilizadora" através da colonização, atualizando e reforçando a mítica narrativa dualística do "civilizado" contra o "bárbaro". A distinção é reforçada pela equivocada idéia de que o colonizador é movido pelos ideais de democracia e liberdade, enquanto o Outro não aceitou ou repudia integralmente estas idéias. Na última guerra em Gaza, como exemplo desta formulação, foram insistentes as antigas alegações de que Israel é "a única democracia do Oriente Médio" enquanto o Hamas é uma "organização terrorista" cujo único objetivo é a "destruição de Israel". Além das eventuais críticas quanto aos problemas do regime democrático israelense e dos reais e pragmáticos objetivos do Hamas, outra questão deve ser ressaltada: que o antagonismo entre o "democrático Israel" e o "terrorista palestino" é repetição da visão Orientalista de longa data. É exatamente a mesma acusação feita aos países árabes vizinhos em 1948, exatamente a mesma contra Gamal Abdel Nasser na década de 1960 e exatamente a mesma contra Organização para a Libertação da Palestina nos anos 1970. Isto reitera a noção de que o Oriente é uma região atrasada e que rejeita o progresso e modernização, mantendo a velha e única obsessão com a destruição de Israel, o que, certamente, não é verdadeiro.

Desta maneira, com a formatação do Outro como ameaçador, desumano e maligno, a eliminação se prova como um processo interminável. O Outro não é apenas adversário com desacordos de ordem política, mas um inimigo sombrio que precisa ser destruído e cuja destruição é aceitável pelos padrões do intervencionismo benevolente do civilizado/colonizador com o objetivo de remodelá-lo, administrá-lo, guiá-lo e "democratizá-lo" manu militari, como se a única via aceitável fosse a reprodução da imagem do colonizador por meio de sua coerção generativa (Assayag, 2007). A próxima parte do texto irá descrever essas representações orientalistas no discurso jurídico.


3. Representações do árabe-palestino no discurso jurídico israelense durante o Genocídio de Gaza

O discurso colonial se dissemina por variados artefatos culturais e não seria diferente com a esfera jurídico-filosófica. Com esta transmissão da hegemonia colonial o discurso jurídico é instrumentalizado e passa a fazer apologia das relações de subjugação existentes. O vocabulário jurídico é cooptado e explorado para justificar e defender o colonialismo. Por esta razão, contém elementos "orientalistas", ou seja, representações do árabe-palestino de acordo com a matriz hegemônica de pensamento, reforçando essa mesma hegemonia e fragilizando o uso do Direito Internacional como instrumento de contestação da violência colonial. A ideologia colonial serve como mecanismo de justificação e encobrimento do ódio preconceituoso do colonizador: perseguir injustificadamente, trancafiar ilegalmente e assassinar ordenadamente o Outro não é sequer percebido como ato de suprema ilegalidade. Se a civilização ocidental se define em oposição ao Oriente, o mesmo se dá com sua legalidade (Haldar, 2007). O genocídio não é visto como genocídio; o crime de guerra vira pura legítima defesa. Os discursos aqui estudados seguem este padrão que envolve a manipulação da argumentação filosófica e vocabulário jurídico para desumanizar o Outro, inferiorizá-lo e apresentá-lo como o agressor irracional. A violência colonial, no entanto, se mostra como a conformada e necessária defesa de uma vítima injustamente ultrajada.

Imagem 1: Representação do Ministério de Relações Exteriores de Israel

Imagem divulgada pelo governo de Israel onde se vê um grande míssil disparado contra um casal de adultos e um casal de crianças sob a inscrição "A guerra do Hamas contra Israel". A família transmite a categoria de não-militar. As crianças deixam explícitas no imaginário a condição de não-combatente.

Fonte: Ministério de Relações Exteriores de Israel (2008)

O que fica claro é que o Orientalismo (Jurídico ou não) não é apenas descrição, é prática política para (des)ordenar/(re)estruturar. Não é um campo do saber acadêmico restrito a discussões herméticas. É um "fazer algo" com o Outro, que passa pela necessidade de se alcançar uma representação aceita por uma sociedade, como uma hegemonia no sentido gramsciano, produzindo consenso e aceitação. No caso em questão, a discussão voltou-se aos princípios do Direito Internacional Humanitário, notadamente o princípio da proporcionalidade que não pode ser distinto de seus gêmeos siameses, a distinção entre civis e combatentes e necessidade militar. Israel usou da manipulabilidade do argumento jurídico mobilizando o repertório orientalista que foi aceito pela opinião pública dada a persistência deste Orientalismo – a aceitação do Outro/Palestino como o mal em oposição à bondade do Eu/Israel.

O primeiro ponto a ser combatido neste Orientalismo Jurídico é um documento oficial emitido pelo Ministério de Relações Exteriores de Israel 14. A primeira frase atesta que "Israel está em um conflito que não causou". Trágico argumento colonial, transferindo a culpabilidade para o colonizado. E a violência do colonizado é descontextualizada: a violência militar desde 1948 e a ocupação em 1967 15 subitamente desaparecem. Para o orientalista, o roubo de terras palestinas não ocorreu e a obliteração de cidades inteiras ao longo destes anos nunca foi um fato. A limpeza étnica ao longo de 60 anos repentinamente não existiu. Os grotescos mecanismos de controle físico, como o medonho muro 16 construído desde 2000 cercando todas as saídas da Faixa de Gaza com o Egito e Israel não são mencionados. O estrangulamento econômico com o controle do espaço aéreo e marítimo, bem como o boicote e total bloqueio desde 2006 somem. Desta forma, o conflito é cinicamente descontextualizado de sua historicidade e apresentado como um bárbaro, injustificado e incompreensível ato de terrorismo do colonizado por si só. O terrorismo é incompreensível para o colonizador por conta de seu cinismo intencional.

O Orientalismo Jurídico vai além, transformando indivíduos – seres humanos – em categorias jurídicas abstratas de modo que seja lícito assassiná-las. A formação discursiva do Ministério de Relações Exteriores de Israel vai além. A estrutura do discurso colonial segue: "Israel foi forçado a atuar em defesa de seus cidadãos" "atacados pela organização terrorista Hamas". "O Hamas não faz nenhum esforço para observar o Direito Internacional" e está sempre "em clara violação aos princípios do Direito Internacional Humanitário", enquanto "Israel está comprometido a se limitar com uma resposta legal" (p. 1). "Israel aceita o fardo para assegurar que seus ataques contra alvos militares legítimos (...) sejam mantidos em níveis mínimos" (p. 5). E se "Israel procura minimizar os danos aos civis" o Hamas busca "deliberadamente" usar civis contra "os resultados inevitáveis de suas ações" (p. 5). A dicotomia não poderia ser mais polarizada. Israel defende, Hamas ataca; Israel observa a lei, Hamas viola a lei, Israel protege a população civil e lamenta suas trágicas mortes, o Hamas ambiciona matar civis.

Estes fatos poderiam ser aceitos como verdadeiros, se desconsiderado que Israel planejou o ataque por seis meses (Ravid, 2009) e que os delineamentos da estratégia empregada já haviam sido confessados sob o nome de Doutrina Dahiyah, aparecendo dois meses antes do ataque em Dezembro de 2008 (Mizroch e Gazzar, 2008). É nesta doutrina que a intelligentsia das forças armadas israelenses apresenta a tese da licitude do ataque a civil e governos que abriguem o que consideram terroristas. Além disto, em agosto de 2008 Ehud Olmert, então Primeiro-Ministro de Israel, promete o emprego de "força massiva", usando de "todos os meios disponíveis" (Ravid, 2008) para atingir os inimigos de Israel. Em igual sentido, demonstrando o planejamento do uso excessivo de força, encontramos as declarações do major aposentado das forças armadas de Israel Giora Eiland que prometeu "a destruição da infraestrutura nacional e intenso sofrimento à população" como resposta (Eiland, 2008, p. 16). Ultimamente, quem usou pesada artilharia - o que só poderia resultar em vítimas civis - e bombardeou prédios de uso civil foi Israel – e não o Hamas. Independente dos fatos persiste a representação orientalista do palestino. Como o resultado de um antagonismo extremado de tudo que Israel é, o palestino é representado como tudo o que Israel não é.

Outro autor, Shoshana Bryen 17 (s. d.), demasiado preocupado com o clamor que acusava Israel de reação desproporcional, afirmou: "Mas proporcionalidade como doutrina no Direito Internacional não requer que o poder de fogo empregado tenha que ser igual ao poder de fogo usado anteriormente e também não requer que as vítimas sejam iguais em ambos os lados" (Bryen, s.d.). Sim, certamente o poder de fogo empregado não deve necessariamente ser igual, mas evidentemente não se responde com bombas atômicas quando se há uma simples violação de fronteira, por exemplo. O uso comum de proporcionalidade implica uma noção geral de retributividade – não se condena um homem a 200 anos de cadeia por roubar uma maçã. Mas a retribuição aqui não trata de iguais – são relações coloniais. Uma vítima entre o povo colonizado não tem o menor valor para o colonizador. Para Bryen, Israel luta uma guerra de legítima defesa. Miraculosamente, Bryen não menciona o direito palestino à resistência e a obrigação israelense de se abster de atacar a população civil. Não menos contraditória é a alegação de que "a morte de civis durante um conflito armado, não importando quão grave ou lamentável, não constitui um crime de guerra" (s.d., s.p.) ao passo de que os alvos do Hamas não atendem aos requerimentos de necessidade militar. Em outras palavras, Israel pode atacar civis palestinos sem cometer crimes de guerra enquanto que os civis israelenses atacados pelos árabes-palestinos são ilegais.

Abraham Bell 18 (2008) atesta que "a imposição israelense de sanções econômicas à Faixa de Gaza é um modo perfeitamente legal de responder aos ataques palestinos". Considerando que a potência ocupante é responsável por atender as necessidades da população civil ocupada, ele está enganado. Há ainda a expressa proibição à punição coletiva nas Convenções de Haia e Genebra. Ironicamente, na história do Direito Internacional, Israel apresentou o bloqueio egípcio do Canal de Suez como uma "guerra econômica", atividade para "justificar operações que se assemelham a guerra" e "incitamento à guerra", vez que a "atividade belicosa" do Egito "ilegalmente impediu a livre navegação de navios israelenses e impediu o trânsito de mercadorias pelo Canal". Estas palavras foram ditas por Golda Meir então ministra das Relações Exteriores de Israel na ONU em 1959 e exemplificam os duplos estandartes de Direito Internacional para o Oriente Médio. Quando se trata do conflito árabe-israelense é o Outro/árabe-palestino que é ilegal: "O conflito em Gaza vem sendo caracterizado por extensa prática de crimes de guerra, atos de terrorismo e atos de genocídio pelos palestinos, enquanto as contramedidas israelenses têm obedecido aos requerimentos do Direito Internacional" (Bell, 2008). Ele ainda afirma que "os ataques palestinos miram civis israelenses e, portanto violam o princípio de distinção" bem como suas "armas primitivas não podem ser direcionadas para alvos específicos" o que significa que "qualquer uso destas armas" viola o Direito Internacional Humanitário.

Estranhamente, é perfeitamente aceitável do ponto de vista do Orientalismo de Bell todo e qualquer uso de armas de avançada tecnologia assassinando milhares de civis. O imaginário colonial entende que o palestino (com "armas primitivas") é genocida, antagonicamente, a mesma fúria genocida do colonizador (com avançada tecnologia utilizada para assassinar civis) é percebida como amparada pelo Direito Internacional. O posicionamento contrário de Cannizzaro (2006) defende que a parte atacante deve abster-se de um ataque se não puder avaliar os efeitos colaterais de tal operação. Ao assumir o ataque desconhecendo os impactos ou não se importando com eles, a parte atacante assume os eventuais riscos pelos excessos, podendo cometer crimes de guerra. Bell alega que "o princípio da distinção permite um ataque, mesmo que ocorram danos colaterais contra civis e mesmo que, em retrospectiva, o ataque seja um erro baseado em informações de inteligência erradas" e "por outro lado, os ataques palestinos objetivam atingir civis israelenses". Assim, as vítimas civis palestinas são justificadas a priori como mero dano colateral. Já a mera tentativa palestina de ataque contra Israel é um crime por atentar contra civis israelenses...

Na mesma estrutura, Alan Dershowitz 19 (2009) alega na primeira sentença de seu artigo que "As ações de Israel em Gaza são justificáveis sob o Direito Internacional e Israel deveria ser aplaudido por sua legítima defesa contra o terrorismo". O Outro é terrorista e a violência do colonizador deve ser glorificada... E a estrutura dicotômica segue: Israel protege seus civis e o Hamas deliberadamente expõe os civis palestinos; o Hamas é designado para matar civis israelenses, Israel "inadvertidamente mata" civis palestinos, "Israel encerrou a ocupação 20 de Gaza" e o "Hamas disparou milhares de foguetes designados para matar civis no sul de Israel", uma prova de que são os "terroristas que exploram a moralidade das democracias". Ao fim, seu encerramento sintetiza o pensamento orientalista: "Hamas comete crimes de guerra" e "Israel atua em legítima defesa". Juridicamente, Dershowitz comete um erro ao dizer que o Hamas comete um crime de guerra por ter por objetivo destruir Israel – ainda que esta seja a meta maximalista do grupo – pela simples razão de que não há este crime de guerra (para esta e outras inconsistências no argumento legal de Dershowitz, ver Heller, 2009).

Outro a empregar os recursos do Orientalismo em seus textos jurídicos foi Joseph Maurer (2009). Para ele é o Hamas que comete atos de perfídia se misturando a civis, lançando foguetes de escolas 21 e, por estas razões, "qualquer civil morto resulta inteiramente das ações bárbaras do próprio Hamas" (p. 4). Os "alvos [atacados por Israel]" "são militares por natureza" (p. 2), Israel "apóia a solução do conflito enquanto o Hamas trabalha para destruir e conquistar Israel" (p. 3). Suas conclusões sintetizam a dicotômica perspectiva orientalista: "Os dois jogadores nesta disputa estão separados por dois tipos diferentes de regras: para Israel há o escrutínio e a ira do olho internacional. Para o Hamas, há apenas o desejo de destruir as regras da sociedade ocidental" (p. 4). Por fim, Dore Gold 22 (2008) afirma que haveria baixas civis mesmo "com os esforços de Israel de evitar estas mortes", no entanto essas mortes, embora "verdadeiramente lamentáveis", "ultimamente não são responsabilidade de Israel". "Israel tem que defender seus cidadãos" contra "organizações terroristas" que cometem um crime de guerra por serem seus ataques direcionados contra civis israelenses. Como se evidencia, os civis mortos por Israel são lamentados pelo próprio agressor e não são de sua responsabilidade. Já a violência do palestino é terrorista – com toda a carga negativa associada à palavra - e um crime de guerra.

Imagem 2: Caricatura reproduzida pela imprensa israelense

Caricatura sob o título "Treinamento básico do Hamas". Um homem mascarado e armado se esconde sob um berço em que um bebê dorme. Detalhe para os brinquedos do berço: pequenos mísseis.

Fonte: Israel National News (2008)

Destes autores, três (Bell, 2008; Dershowitz, 2009; Gold, 2008) sustentam a tese de que Israel não é mais uma potência ocupante em Gaza, estando desobrigado de observar leis pertinentes à ocupação militar e que, em decorrência da ausência da ocupação, o Hamas não teria mais motivações para continuar com sua plataforma política de enfrentamento, gerando a hipótese do "terrorismo sádico e niilista", sem razão de ser e esvaziado de qualquer demanda política minimamente aceitável e/ou negociável. Dentro do repertório orientalista, há uma tendência a ignorar clivagens e transformar toda a região e povos em um só aglomerado disforme (Said, 2003). Assim, há uma insistência em mencionar outros atores não-estatais como se fossem parte de uma só figura, a do fundamentalismo terrorista islâmico (e as três palavras, "fundamentalismo", "terrorismo" e "Islã", tornam-se sinônimos em outra perigosa generalização). Deste modo, Bryen (s. d.) e Gold (2008) trazem ao debate o Hezbollah e a Al’Qaeda 23 como se fossem aliados naturais e estivessem em cooperação com o Hamas. Igualmente, Gold (2008) e Maurer (2009) insistem em uma conexão entre o Irã e o Hamas, da mesma forma que no contexto pré-invasão do Iraque, em 2003, os EUA apresentaram Saddam Hussein como vinculado à Al’Qaeda.

Este texto não buscou apresentar uma refutação baseada no Direito Internacional. O objetivo desta subdivisão era apresentar a estrutura do discurso israelense demonstrando como este representou o palestino. Em resumo, há uma repetição da seguinte estrutura: Israel foi obrigado a agir para defender seus cidadãos. Hamas ataca as crianças israelenses 24. Israel atua em legítima defesa e dentro da mais perfeita legalidade, isto é, observando os princípios de proporcionalidade, distinção entre combatentes e necessidade militar. Hamas atua ilegalmente, cometendo crimes de guerra e intentando genocídio. Israel é um Estado que de maneira cândida se protege. Hamas é uma organização terrorista que almeja a destruição de Israel. Em suma, Israel é virtude e o Árabe/Palestino/Hamas é a totalidade do mal. Evidentemente, estas simplificações não são verdadeiras e descontextualizam a complexidade do conflito.


4. Considerações finais

O discurso jurídico foi elaborado para ofuscar. Assim, ou encobre e torna invisível o Outro, ou o vê como criminoso em sofisticado processo de demonização. No caso em apreço, o Direito Internacional deu a fundamentação e a legitimidade para a dominação colonial. Desloca-se a culpa, atribuindo-a ao Outro e emprega-se a teoria para proclamar e justificar a exterminação do homem (Fanon, 1995). Como demonstrado, o Direito Internacional é uma artificial estrutura conceitual que apresenta os não-europeus como adequados para a conquista colonial por conta de seu status de incivilizado (Anghie, 1999). É também legitimação de formas extremas de violência apresentadas em nome do Direito Internacional, a levar a ordem colonial para a barbárie do nativo, que nunca preenche os requisitos para se constituir como um sujeito dotado de personalidade jurídica (Fitzpatricks, 1992). Outro exemplo disso é a não criação ou reconhecimento de um Estado soberano palestino que persiste desde 1948 no limbo jurídico e onde o Direito Internacional atua facilitando a gestão dos territórios ocupados, desumanização daqueles que em primeira instância são as vítimas da ocupação militar. No mais, quando necessário, o Direito Internacional facilita a transformação do árabe-palestino em criminoso, por, segundo essa prática discursiva, empreender crimes de guerra.

A forma jurídica obscurece ideologicamente as relações sociais. Apresentam-se conceitos jurídicos abstratos, ignorando que há um conteúdo colonial por trás destes. O antagonismo quase insolúvel entre as necessidades humanitárias e os imperativos militares (Princípio da Preservação dos Civis vs Necessidade de Repelir a Agressão) é uma falsa contradição, contradição que se apresenta dissociada da concomitante dominação econômica e ambições de hegemonia regional. O Direito Internacional, mais do que outros ramos da ciência jurídica, encarna a dualidade da ação política: dialeticamente é violência e consentimento; bestialidade e humanidade. A cultura jurídica não se afasta nunca da força militar, o Direito Internacional, sendo forma de regulamentação das profundas disparidades entre Estados coloniais e povos oprimidos, se equilibra entre a promessa de civilidade e o báculo da ferocidade imperial. Diante do clamor contraditório de duas partes para impor sua própria interpretação do Direito Internacional prevalece um ciclo interminável de argumentos jurídicos em que nenhuma das partes parece estar errada, levando à aparente noção de indeterminação do Direito Internacional (Koskenniemi, 2005).

No entanto, perante dois argumentos mutuamente excludentes entre duas partes que invocam uma igualdade jurídica para interpretar e apresentar sua versão de legalidade/ilegalidade é a força que prevalece, vetor determinante das contendas no Direito Internacional (Miéville, 2005). Ao invés de concluir pela fragilidade do Direito Internacional e seus mecanismos de enforcement, é preciso reconhecê-los como um sistema coerente funcionando em benefício de Estados hegemônicos, capazes de impor suas visões particulares sobre os demais atores. A natureza indeterminável do argumento jurídico no Direito Internacional é parte do processo fluido de criação de um Direito onde violência e coerção são imanentes, em especial, para a interpelação do Outro/não-europeu "não como sujeitos, mas como objetos da política colonial dos Estados imperialistas" (Pashukanis, 1978 apud Miéville, 2006, p. 23).

Foi mostrada a existência de duas narrativas: primeiro a identificação de um padrão orientalista nos escritos de Direito Internacional demonizando o árabe/palestino; a outra narrativa é o uso do Direito Internacional contra o colonizado. O Direito Internacional não é tão somente uma fonte onde se encontram representações médias do Outro/árabe/palestino; é ainda local e veículo para ataque contra o colonizado. Tal qual afirmado por Miévielle (2005), "a violência colonial é Direito Internacional". O recurso à força militar brutal do colonizador é seguida por uma retórica de autovitimização e elogio à própria virtude da violência colonial (sempre justa, legal e legítima) contra o colonizado (sempre mostrado como criminoso e ilegal) (Shlaim, 2009). Miéville (tradução nossa) sintetiza de forma clara a interrelação entre o Direito Internacional e Imperialismo, regime no qual floresce o Orientalismo:

Ações imperialistas são articuladas em termos jurídicos e não apenas por razões de propaganda, mas fundamentalmente porque imperialismo e direito internacional são parte de um mesmo sistema. O capitalismo moderno é um sistema imperialista e um sistema jurídico. As formas constituintes do direito internacional são formas constituintes do capitalismo global e, desta maneira, do imperialismo (2006, p. 24).

Miéville (2005; 2006) refere-se à forma-mercadoria do Direito e da Lei. Na dimensão histórica, Miéville aponta que o surgimento do campo de estudo e prática do Direito Internacional buscou favorecer a expansão comercial para a burguesia mercantil e a expansão do domínio europeu, enquanto interpelava o Outro como não-titular de capacidade jurídica. Para este trabalho, o que se ressalta é o aspecto colonialista do Direito Internacional, que é aplicado de modo meramente punitivo contra o palestino, o que não é simples "uso" e instrumentalização da disciplina, mas parte de sua formação. Isso se evidencia desde o estágio originário da disciplina, quando o bellum iustum (as justificativas para a guerra) era extraído dos livros de Direito Internacional para apresentar um modo coerente de argumentação contra o colonizado e sua eventual resistência à mission civilisatrice.

Aqui, se sugere uma inversão dialética aplicada ao Direito (Engels, 1890; Pashukanis, 1924): não é o Direito Internacional autoriza a operação militar em Gaza tanto para o jus ad bellum como as práticas in bello, são as categorias jurídicas e princípios legais que são criados para autorizar o intervencionismo militar dos Estados hegemônicos. Em outras palavras, um arranjo institucional ou o desenvolver das relações jurídicas não surgem por elas mesmas, mas originam-se em condições materiais objetivas 25. Assim, o "Outro" foi vilificado de modo que todas suas práticas são descritas como criminosas enquanto as práticas do colonizador são, em sua totalidade, a priori aceitáveis e não recriminadas. Esta dinâmica não é um "mal uso" do Direito Internacional, mas o Direito Internacional em si (Allain, 2004; Miéville, 2005).

Quanto aos argumentos trazidos pela intelligentsia pró-Israel e/ou favorável à legalidade da operação militar, se nota um ciclo de argumentos nem sempre coerente. Primeiro se formatou uma doutrina militar (Dahiyah Doctrine) divulgada meses antes em que se prometia (i) emprego desproporcional de força contra um eventual adversário e (ii) a assegurava uma nova interpretação do Direito Internacional em que civis, governantes e infra-estrutura seriam encarados como um único alvo. Posteriormente, diante das acusações de organismos variados como ONU e Cruz Vermelha, Israel alegou que a perfídia e desonestidade eram do Hamas, por misturar combatentes e "infra-estrutura terrorista" com civis, tornando impossível não atingi-los. Ao mesmo tempo, era alegado insistentemente o direito de Israel em retaliar em decorrência "dos nove anos de ataques com foguetes qassam", ignorando não apenas os nove, mas quarenta anos de ocupação militar israelense 26, bem como os limites legais para resposta militar, condicionados à imediata necessidade de repelir o ataque e feito de maneira proporcional à agressão, tendo em consideração os custos aos civis e vantagens esperadas desta contramedida. Mas como afirmado anteriormente, estes argumentos aqui trazidos podem gerar uma quantidade inimaginável de contra-argumentos, sem necessariamente se obter uma solução "jurídica" ou "política" – ou mesmo de se objetivar uma eventual solução.

Esta indeterminação revela não apenas uma das fraquezas do Direito Internacional como a necessidade de se opor à agressão israelense por outros meios. O massacre em Gaza não deve ser moralmente condenado e ser elemento de objeção política por ser uma guerra "ilegal", "injusta" ou pelos sinais de "crimes de guerra" cometidos (Weizman, 2009). O massacre deve encontrar oposição por ser parte da grande estratégia de controle territorial e populacional palestino privando-os dos mais fundamentais direitos sociais, econômicos e culturais bem como por excluir do debate – que agora se concentra em questões sobre a proporcionalidade da operação militar - outras questões inerentes e basilares: a ocupação israelense, a expansão dos assentamentos com nova tomada de terras palestinas, a construção do muro do apartheid, o status de Jerusalém, o direito ao retorno dos refugiados e, por fim, o direito à autodeterminação palestina. Infelizmente, em todas as questões, o Direito Internacional foi aplicado de modo seletivo: puramente punitivo contra o colonizado.

O Direito Internacional é aparente como formação discursiva capaz de fornecer um vocabulário em que defendeu a guerra do colonizador e insuficientemente limitou a incidência de novos focos de tensões e explosões de violência por meio de soluções negociadas para o conflito. Ao contrário, o Direito Internacional providenciou uma forma narrativa para encorajar a guerra israelense ao justificar suas causas em termos de "justa" e "legítima defesa" contra um oponente hostil e traiçoeiro, em síntese, um "criminoso de guerra". Estes pontos demonstram a incapacidade do Direito Internacional em apresentar soluções para os povos submetidos à ocupação e colonização e deve provocar a reflexão para um Direito Internacional além do Orientalismo. Alfim, é imperioso o surgimento de um Direito Internacional não comprometido com o colonialismo, onde, além das distinções jurídicas entre combatentes e civis ou a diferenciação orientalista entre "terroristas árabes/palestinos" e "vítimas israelenses", ambas as categorias sejam percebidos como seres humanos.


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Notas

  1. Por colonialismo estou descrevendo as mais variadas metodologias para controle de uma população/território por forças estrangeiras. Historicamente, foi constituído para assegurar o acesso à força de trabalho e recursos naturais a custos reduzidos. Na dimensão legal, o Direito Internacional reconhece aos povos o direito à autodeterminação como antítese ao colonialismo. Na "Declaração de Princípios de Direito Internacional sobre Relações amigáveis e cooperação entre os Estados" da Assembléia Geral da ONU (A/RES/25/2625 em 1970 in Brownlie, 1983) se afirma que o colonialismo ("sujeição dos povos à subjugação estrangeira, dominação e exploração") é incompatível com os princípios da igualdade e autodeterminação e, portanto contrário à Carta da ONU. O Protocolo Adicional I à Convenção de Genebra (1977) também fez referência à prática, incluindo na gama de "conflitos armados" as guerras de libertação nacional definidas como lutas "contra dominação colonial, ocupação estrangeira ou regimes racistas" (art. 1º par. 4º) (in Roberts & Guelff, 2000). A história de Israel enquanto colonialismo - entendido simplesmente como transferência de uma população para um território ocupado por outro agrupamento populacional distinto - pode ser encontrado em Rodinson (1967 1988), Finkelstein (2003) e Said (1979).

  2. Na segunda semana da agressão israelense, protestos eclodiram em Londres, Paris, Amsterdã, Berlim, Madri, Atenas e outras cidades européias, somando dezenas de milhares de pessoas (The Associated Press, 2009).

  3. Do outro lado, O Ministério de Relações Exteriores de Israel (MREI) declara ser uma "Guerra do Hamas contra Israel", invertendo a agência de modo que Israel apenas se defende contra uma agressão iniciada pelo Hamas. Em seu FAQ (2009) sobre a operação militar, o MREI apresenta o lançamento de mísseis pelo Hamas como sua motivação. O fato é que Israel não atacou apenas pontos de lançamento de foguetes ou depósitos de armas (como exigiriam os requerimentos da necessidade e proporcionalidade para impedir uma imediata agressão), mas deliberadamente bombardeou escolas, hospitais e prédios governamentais. A suposta razão da guerra – os ataques com os artesanais foguetes qassam – apesar do grande número (8500 entre foguetes e morteiros) mataram 20 israelenses desde 2000. Por outro lado, os ataques israelenses, a partir de 2005 – data do suposto fim da ocupação de Gaza, quando Israel retirou-se da região embora mantendo o controle do espaço aéreo e fronteiras marítimas e terrestres – mataram 1700 palestinos (desconsiderando os outros 1400 assassinados na ofensiva de dezembro de 2008 e janeiro de 2009) (McGreal, 2009).

  4. Detenho-me às práticas do colonial/colonialismo concernentes à dimensão política e cultural, embora sabendo que os fatores econômicos são determinantes e indissociáveis. O discurso não existe no vácuo histórico-social e nem apartado de sua prática de deslocamento/"transferência"/expulsão da população palestina tradicional e substituição por uma população judaica-sionista convertida em uma cidadania israelense – ou seja, colonialismo no senso comum.

  5. O agente colonizador assume que o colonizado não possui sequer semelhança com um ser humano: "A violência colonial não se faz somente com o objetivo de obter o respeito dos homens subjugados; ela busca desumanizá-lo" (Sartre in Fanon, 1991, p. 45).

  6. No caso palestino – como em muitos outros – o processo para subdesenvolver a sociedade foi variado, iniciando pela brutal tomada da terra dos palestinos ao longo de várias décadas (tomada que foi acelerada nas guerras de 1948 e 1967 e aprofundada com a construção do Muro do Apartheid, em 2000). A Palestina não é pobre, foi pauperizada por anos de ocupação militar impedindo o desenvolvimento da indústria local para permitir a sua fácil submissão econômica, fornecendo por anos mão de obra barata até 2005. Em 2005, 8.000 colonos judeu-israelenses controlavam 25% do território de Gaza, incluindo 40% de toda a terra arável deixando o restante para um milhão e meio de palestinos (Shlaim, 2009). O controle de recursos permeia a tomada de recursos hídricos; de acordo com relatório divulgado pelo Banco Mundial em abril de 2009, Israel utiliza 80% da água disponível, violando os Acordos de Oslo e o Direito Internacional Humanitário e afetando diretamente o desenvolvimento da agricultura e saúde pública (Issacharoff, 2009). O governo israelense também estrangula qualquer possibilidade de desenvolvimento econômico palestino através do controle de fronteiras, impedindo a mobilidade de matérias-primas, produtos e pessoas. Mercadorias apodrecem aguardando passagem. Além disso, o clima de instabilidade política e permanentes toques de recolher impossibilitam o aproveitamento da força de trabalho. A insegurança de retornos serve de desestímulo para qualquer investimento e o controle de recursos naturais como terras cultiváveis e água são monopolizadas pelo colonizador (Roy, 1987), seja para seu uso ou alegando questões de segurança, fazendo com que o uso 30% da terra arável seja proibido (ICRC, 2009). Por fim, não podemos ignorar a sistêmica destruição de infra-estrutura, como estradas e construções. Atendo-nos ao Genocídio de Gaza, as forças armadas de Israel destruíram 209 indústrias e 724 estabelecimentos comerciais, 187 estufas e cerca de 10.000 estabelecimentos de pequena agricultura ou agricultura familiar foram arrasados. As indústrias reduziram em 97% sua atividade causando a perda de 70.000 empregos, atingindo a marca de 44% da população em idade produtiva desempregada (Al Mezan, 2009; ICRC, 2009; Mackenzie, 2009; UN, 2009).

  7. Negociação já secretamente definida no Acordo de Sykes-Picot (1916). Igualmente, a Declaração de Balfour (1917) antecede sua "juridicidade" efetivada no Tratado de Sèvres (1920).

  8. A França acabaria ficando com o território da Síria e a Inglaterra com a Palestina e Iraque.

  9. O objetivo destas negociações era ainda facilitar a criação de "um lar nacional" para um povo estrangeiro (o Estado judeu), permitindo a imigração destes estrangeiros e seu assentamento em território que não o seu original, uma colônia de povoamento.

  10. Não é que os sionistas-colonizadores desconhecessem a existência dos árabes nativos, é que eles simplesmente não se importavam com isso (Finkelstein, 2003; Said, 1979). Um memorando do próprio Arthur Balfour ao seu secretário de assuntos internacionais George Curzon em 11 de agosto de 1919 é claro quanto a isto: "As quatro grandes potências estão comprometidas com o Sionismo e o Sionismo [...] é muito mais importante do que os desejos e preconceitos de 700.000 árabes que hoje habitam aquela terra ancestral. [...]. Eu não acho que o Sionismo irá prejudicar os árabes, mas eles nunca irão dizer que o querem" (in Allain, 2004, p. 84; tradução nossa). Este trecho deixa evidente o reconhecimento da existência da população local e o desprezo pela opinião desta mesma população. Juridicamente, a Liga das Nações recepcionou a Declaração de Balfour em contradição com a sua carta constitutiva, onde os mandatos deveriam apenas assegurar a criação de Estados independentes de acordo com a autodeterminação dos povos que ali habitavam.

  11. Em apenas um caso, o artigo 1º do Mandato Britânico para a Palestina diz que "O Mandatário terá plenos poderes de legislação e administração (...)". Se o Mandatário tem esta plenitude de poderes, fazendo o que lhe interessar, qual o espaço de atuação dos palestinos submetidos ao Mandato? A total autonomia do colonizador é a irrestrita subjugação do colonizado.

  12. A resolução foi aprovada em 29 de novembro de 1947, tendo o Mandato Britânico data de término para 15 de maio de 1948. A resolução tem pouco valor jurídico, uma vez que a ONU não pode usurpar funções de Estados e não possuía soberania sobre a região em questão. Não menos importante, uma resolução da Assembléia Geral não tem força vinculante obrigando sua observação pelos Estados-membros (Allain, 2004).

  13. O historiador judeu-israelense Ilan Pappé (2007) descreve claramente o processo de limpeza étnica/genocídio da Palestina e defaz o mito do pequeno Davi israelense enfrentando uma legião de Golias árabes. O cientista político judeu-estadunidense Norman Finkelstein (2003) também lida com os mitos da questão como o da inferioridade militar israelense ou suas ambições pacifistas.

  14. Israeli Ministry of Foreign Affairs. Responding to Hamas attacks from Gaza – Issues of Proportionality. Dezembro – 2008. Disponível em https://www.mfa.gov.il/NR/rdonlyres/A1D75D9F-ED9E-4203-A024-AF8398997029/0/Responding_to_Hamas_Attacks_from_Gaza_december_2008.pdf Acesso em 17.07.2009. O texto encontra-se em inglês, para facilitar a compreensão foi traduzido para o português.

  15. A resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU, considerando a impossibilidade de aquisição territorial pela força, clama pela retirada israelense para as fronteiras anteriores estabelecidas em armistício. A resolução nunca foi observada e Israel permanece ilegalmente ocupando territórios sírios e palestinos.

  16. Muro declarado ilegal pela Corte Internacional de Justiça em 2004, decisão ignorada pelo governo de Israel, que prossegue com sua arquitetura para a apartheid.

  17. Diretor-sênior do Instituto Judeu para Assuntos Nacionais de Segurança (Jewish Institute for National Security Affairs) nos EUA.

  18. Professor de Direito da Universidade Bar-Ilan e pára-quedista reservista das forças armadas de Israel na Guerra no Líbano em 2006.

  19. Professor de Direito na Universidade de Harvard.

  20. A tese do fim da ocupação israelense em Gaza é rejeitada por entidades de direitos humanos como a Human Rights Watch (2004), Gisha (2007) e mesmo por Richard Falk (2009), relator especial da ONU.

  21. Fato nunca provado e categoricamente negado pela ONU (Eldar, Harel et alli, 2009).

  22. Ex-embaixador israelense na ONU (1997-1999) e presidente do Centro Jerusalém para Assuntos Públicos (Jerusalem Center for Public Affairs ) em Israel.

  23. Foge do escopo deste trabalho apresentar as diferenças ou semelhanças entres os dois grupos. Por linhas gerais, o Hezbollah (Partido de Deus) é um partido político que aceita o processo político-democrático e de base shi’a no Líbano enquanto a Al’Qaeda (A Base ou A Rede) é um grupo de origem saudita, operando de forma desterritorializada, não-institucional e de um sunnismo declaradamente anti-shi’a. No campo religioso, há uma nítida disputa pela hegemonia ideológica da Arábia Saudita como patrocinador do sunismo radicalizado (salafismo/wahabismo) que vê o shiismo como o pior tipo de incrédulo contra o Irã promovendo o shiismo.

  24. A menção a ataques contra escolas israelenses é feita em Bryen, Dershowitz e Gold. Embora irrelevante do ponto de vista jurídico, sob a perspectiva política os três ignoram que Israel intencionalmente atacou (declarando que ali se abrigavam terroristas) a Universidade de Gaza e ao menos quatro outras escolas da ONU, uma em 6 de janeiro em Jabaliya, e em 17 de janeiro em Beit Lahiyah, assim como outras duas em Khan Yunis).

  25. Embora estas formas não sejam puro e claro reflexo de condições econômicas e expressão inconfundível da dominação de um grupo, estes fatores (i. e., as condições econômicas e dominação política de determinados atores) são vetores consideráveis na resultante jurídica e política (Engels, 1890; Marx, 1859).

  26. Se a ocupação não justifica o admitido direito à resistência para efetivação da autodeterminação de um povo, ao menos ajuda a compreender a indignação de uma população sujeita à esta e derivadas formas de opressão.


Abstract: The paper analyses Israeli legal discourse and its Orientalist representations of Arab-Palestinians. Using a postcolonial framework, it describes Israeli speech acts as a continuation of European Orientalism, where the Other (the Arab-Palestinian) is not simply held to be without values, but is the negation of all values. Thus, any violence used by this Other is immoral. Following this discursive structure, the violence of the Other is interpreted by the coloniser as a demonstration of its uncivilised bestiality. Consequently, the violence of the coloniser is always seen as a defensive act against the non-civilised. This paper then puts forward the hypothesis that International Law provides a sophisticated vocabulary for colonial powers to present the Others as subjects for colonial conquest and legitimise imperialist violence as "proportional" and "necessary" use of force. Thus, through International Law, these powers deploy symbolic power to dehumanise and criminalise the Other, interpellating them as war criminals for the use of any violence against the coloniser.

Key Words: International Law; Orientalism; Post-Colonialism; TWAIL; Gaza War; Middle East; Palestine.


Autor

  • Vinicius Valentin Raduan Miguel

    Vinicius Valentin Raduan Miguel

    Advogado. Mestre em Direitos Humanos e Política Internacional pela Universidade de Glasgow. Professor de Direitos Humanos e Hermenêutica Jurídica da Faculdade Católica de Rondônia. Professor Substituto/Auxiliar do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Rondônia, onde é coordenador da Pós-Graduação em Segurança Pública e Direitos Humanos. Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/RO. Representante da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED) no Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIGUEL, Vinicius Valentin Raduan. Orientalismo e o Direito Internacional. Relações internacionais, eurocentrismo, colonialismo e a imagem do árabe-palestino durante o conflito em Gaza (2008-2009). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2706, 28 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17938. Acesso em: 16 abr. 2024.