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Uma nova proposta de limites à aplicação do princípio “reformatio in pejus” no âmbito dos processos administrativos

Uma nova proposta de limites à aplicação do princípio “reformatio in pejus” no âmbito dos processos administrativos

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Propõem-se novos limites à aplicação do “reformatio in pejus” nos processos administrativos, valendo-se da técnica da “filtragem constitucional”, dando efetividade a uma “cidadania procedimental administrativa”.

Resumo: O estudo propõe a atribuição de novos limites à aplicação do princípio “reformatio in pejus” no âmbito dos processos administrativos, valendo-se da técnica da “filtragem constitucional”, interpretando as leis de processos administrativos federais, estaduais e municipais, a partir dos princípios constitucionais da cidadania, da dignidade da pessoa humana, do devido processo legal, da igualdade e da impessoalidade da Administração Pública, de modo a obter-se o máximo denominador comum de direitos e garantias como direitos públicos subjetivos dos administrativos, imediatamente alegáveis nos processos administrativos nos quais forem interessados, e independentemente das esferas de competências próprias de cada entidade política, assim dando efetividade a uma “cidadania procedimental administrativa”.

Palavras – chave: PROCESSOS ADMINISTRATIVOS – “REFORMATIO IN PEJUS” – PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS – DIREITOS E GARANTIAS – MÁXIMO DENOMINADOR COMUM – “FILTRAGEM CONSTITUCIONAL” – “CIDADANIA PROCEDIMENTAL ADMINISTRATIVA”


I – O PROCESSO ADMINISTRATIVO: CONCEITO E FINALIDADES. O PROCESSO ADMINISTRATIVO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E DA CIDADANIA NA ATIVIDADE ADMINISTRATIVA.

O processo administrativo é um instrumento através do qual os administrados formalizam suas pretensões, tenham estas por base interesses ou direitos, para que a Administração Pública, em resposta, pratique um ato, ou profira uma decisão, sempre movida pelo interesse público e de acordo com a Constituição Federal, as leis e regulamentos, e os direitos fundamentais.

O processo administrativo atende, assim, a várias finalidades: aumentar o grau de justiça e razoabilidade dos atos e decisões administrativos, favorecendo-se o intercâmbio de idéias, opiniões e conhecimentos, inclusive técnicos; fortalecer a segurança jurídica; dotar os atos e decisões administrativos de maior eficiência, reduzindo-lhes os custos econômico e social, na medida em que, através de uma participação devida, a tendência dos grupos sociais será a de colaborar com os atos praticados e a decisão final que houver sido dada.(1)

O processo administrativo é não só uma garantia de oportunidade de defesa de interesses ou direitos subjetivos, coletivos ou difusos, perante a Administração Pública (2), mas também um direito fundamental, ele mesmo, um direito - garantia (3), na medida em que serve de instrumento de controle do modo segundo o qual a Administração Pública decidiu, ou deixou de decidir, assim como do conteúdo da decisão, se observou o interesse público ou se foi arbitrário.

O processo administrativo, deste modo, é um instrumento de materialização cotidiana do Estado Democrático de Direito (4), quando não da própria cidadania (5), assim como de legitimação do caráter democrático da Administração Pública, especialmente em um sistema constitucional como o nosso, onde a Administração Pública encontra seus limites diretamente na Constituição Federal. (6)

Encontrando a Administração Pública diretamente na Constituição Federal seus limites, conforme os princípios, normas, regras e valores que a informam, e sendo o processo administrativo um de seus instrumentos de atuação que deve pautar-se no respeito ao princípio democrático e à busca de sua contínua ampliação de eficácia (7), segue-se já daí a conclusão de que os limites dos processos administrativos deverão ser descobertos e atualizados, sempre que necessário para uma maior efetivação daqueles princípios, normas, regras e valores constitucionais, realizando o intérprete e aplicador da lei e dos atos administrativos uma verdadeira e efetiva “filtragem constitucional”. (8)

É dentro desse espírito que este trabalho propõe uma rediscussão do princípio da aplicabilidade da “reformatio in pejus” no âmbito do processo administrativo.


II – A POSIÇÃO DOMINANTE DA DOUTRINA E DA JURISPRUDÊNCIA SOBRE A APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA “REFORMATIO IN PEJUS” NO PROCESSO ADMINISTRATIVO, ANTES E DEPOIS DA LEI FEDERAL NO. 9784/99.

Um entendimento – minoritário – que equipara as limitações à imposição de sanções nas esferas administrativa e processual penal veda a possibilidade da “reformatio in pejus” pela Administração Pública.

Assim, por exemplo, veja-se, na jurisprudência:

“ADMINISTRATIVO. SERVENTUÁRIO DE CARTORIO. PENA ADMINISTRATIVA. REFORMATIO IN PEJUS. MANDADO DE SEGURANÇA. PODER DISCIPLINAR DA ADMINISTRAÇÃO E PODER PUNITIVO DO ESTADO-SOCIEDADE. DIFERENÇAS E APROXIMAÇÕES. IMPOSSIBILIDADE, EM AMBAS AS HIPOTESES, DE SE APLICAR PENA NÃO MAIS CONTEMPLADA PELA LEI E AGRAVAR A SITUAÇÃO DO DISCIPLINADO. RECURSO ORDINARIO CONHECIDO E PROVIDO. I - O IMPETRANTE/RECORRENTE, QUE E ESCRIVÃO DA 3A. VARA DA COMARCA GAUCHA DE GRAVATAI, FOI PUNIDO COM A PENA DE 10 DIAS DE SUSPENSÃO PELO JUIZ DIRETOR DO FORO QUE, 'UNO ACTO', TRANSFORMOU A PENALIDADE EM PENA PECUNIARIA. FOI INTERPOSTO RECURSO, O QUAL NÃO FOI CONHECIDO. O ORGÃO RECURSAL (CORREGEDOR-GERAL), POREM, ATRAVES DE SUBTERFUGIO, VOLTOU, DE OFICIO, A PENALIDADE ANTIGA, JA NÃO MAIS CONTEMPLADA PELA LEGISLAÇÃO. II - O "PODER DISCIPLINAR", PROPRIO DO ESTADO-ADMINISTRAÇÃO, NÃO PODE SER EFETIVAMENTE CONFUNDIDO COM O "PODER PUNITIVO" PENAL, INERENTE AO ESTADO-SOCIEDADE. A PUNIÇÃO DO ULTIMO SE FAZ ATRAVES DO PODER JUDICIARIO; JA A DO PRIMEIRO, POR MEIO DE ORGÃOS DA PROPRIA ADMINISTRAÇÃO. AMBOS, POREM, NÃO ADMITEM A 'REFORMATIO IN PEJUS', E MUITO MENOS A APLICAÇÃO DE PENA NÃO MAIS CONTEMPLADA PELA LEI. III - RECURSO ORDINARIO CONHECIDO E PROVIDO.”

(ROMS 199300185519, STJ, 6ª. Turma, Rel. Min. Pedro Acioli, dec. p. maioria pub. DJU 06.02.1995, p. 1372)

Não obstante, e até o advento do art. 64 da Lei no. 9.784/99, com o argumento de que o processo administrativo objetiva um melhor e mais amplo controle de seus próprios atos pela Administração Pública, de modo a que tendam a respeitar a legalidade, a serem mais justos, a produzirem resultados mais eficientes e com menor custo, com a devida legitimação democrática dada a abertura das possibilidades de participação dos administrados nos procedimentos decisórios dos órgãos e entidades administrativos, e de que esse processo administrativo, ao fim e ao cabo, desenvolve-se na esfera do controle interno de seus atos pela Administração Pública, admitia-se predominantemente, que o recurso interposto unicamente pelo administrado em um processo administrativo pudesse resultar em uma decisão contrária a ele, e mais gravosa.

Na doutrina, por exemplo, JOSÉ MARIA PINHEIRO MADEIRA:

“A Administração possui, ainda, liberdade plena para reformar o ato além do pedido, independentemente de ser esta reforma mais benéfica ou maléfica ao requerente. Este poder decorre da hierarquia e finalidade corretiva dos atos inferiores ilegítimos ou inconvenientes.” (9)

 E DIÓGENES GASPARINI:

“Na decisão do recurso administrativo, o órgão ou autoridade competente tem amplo poder de revisão, podendo, em relação ao ato impugnado, confirma-lo, desfaze-lo ou modifica-lo, se o entender legal, ilegal, inoportuno, inconveniente ou ineficiente. A reforma pode ir além do pedido e, em certas circunstâncias, impor ao recorrente um maior gravame (reformatio in pejus). Não se admite, no entanto, reforma gravosa em razão de recurso de ofício, consoante têm decidido os nossos Tribunais (...). Essa decisão, uma vez proferida, é, para a Administração Pública, vinculante e caracteriza-se como definitiva. É a coisa julgada administrativa, se proferida em última instância administrativa.” (10)

Na mesma linha de entendimento, a jurisprudência, como ilustrado:

“ADMINISTRATIVO. PENA DE SUSPENSÃO. "REFORMATIO IN PEJUS". PROCEDIMENTO DISCIPLINAR. - NÃO SE APLICA AO PROCEDIMENTO DISCIPLINAR A VEDAÇÃO DA "REFORMATIO IN PEJUS", PELO QUE PODE A AUTORIDADE HIERARQUICAMENTE SUPERIOR APLICAR PENA MAIS GRAVOSA DO QUE A IMPOSTA PELO INFERIOR.”

(ROMS 198900092600, STJ, 2ª Tuma, Rel. Min. Américo Luz, dec. um. pub. DJU 21.11.1994, p. 31.742)

“CONCURSO PÚBLICO - SERVIÇO NOTARIAL E REGISTRAL - AVALIAÇÃO EQUIVOCADA DOS TÍTULOS - REAVALIAÇÃO PARA ADEQUAÇÃO DOS TÍTULOS À ESTRITAS DETERMINAÇÕES DO EDITAL - POSSIBILIDADE - VINCULAÇÃO AO EDITAL - AUTOTUTELA DA ADMINISTRAÇÃO - NÃO-DEMONSTRAÇÃO DO DIREITO LÍQUIDO E CERTO. 1. Constatando a Administração o equívoco na análise de todos os títulos apresentados, é seu dever exercer o poder de autotutela para reavaliar os atos eivados de nulidade, adequando e vinculando publicamente a análise dos títulos de todos os candidatos aos estritos limites do Edital. Se assim procedeu, não existe ilegalidade ou violação do devido processo legal. 2. Também não se há falar em violação dos princípios da impessoalidade e isonomia, ou mesmo no descabido princípio da proibição do reformatio in pejus na seara administrativa, pois a revisão dos títulos era medida que se impunha para todos os participantes. 3. Os efeitos da invalidação, como regra, dão-se ex tunc, ou seja, "fulmina o que já ocorreu, no sentido de que são negados hoje os efeitos de ontem" (cf. CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO; Curso de Direito Administrativo; 20ª ed., p. 434). Recurso ordinário improvido.”

(ROMS 200601382901, STJ, 2ª. Turma, Rel. Min. Humberto Martins, dec. un. pub. DJE 18.09.2008)

“ADMINISTRATIVO - MANDADO DE SEGURANÇA - ATO DE SECRETÁRIO DE ESTADO - MULTA POR INFRAÇÃO AO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - VALOR FIXADO NO MÁXIMO LEGAL - REEXAME DE PROVAS - IMPOSSIBILIDADE - SÚMULA 07/STJ - DIREITO LÍQUIDO E CERTO NÃO CONFIGURADO - PROCESSO ADMINISTRATIVO - "REFORMATIO IN PEJUS" - POSSIBILIDADE - PRECEDENTES. (...)No âmbito do processo administrativo, a autoridade superior pode aplicar pena mais gravosa do que a imposta pela autoridade inferior. (...)”

(ROMS 200302183076, STJ, 2ª. Turma, Rel. Min. Peçanha Martins, dec. pub. DJU 26.09.2005, p. 270)

“ADMINISTRATIVO - FUNCIONAMENTO DOS BANCOS - EXIGÊNCIAS CONTIDAS EM LEI ESTADUAL E MUNICIPAL - LEGALIDADE. (...) 3. Em processo administrativo não se observa o princípio da "non reformatio in pejus" como corolário do poder de auto tutela da administração, traduzido no princípio de que a administração pode anular os seus próprios atos. As exceções devem vir expressas em lei. (...)”

(ROMS 200601017292, STJ, 2ª. Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, dec. un. pub. DJE 05.08.2010)

Não se podendo esquecer as Súmulas STF nos. 346 e 473:

“A Administração Pública pode declarar a nulidade de seus próprios atos.” (Súmula 346)

“A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.” (STF, Súmula 473)

 Com o advento do art. 64 da Lei no. 9.784/99, passou-se a uma posição intermediária, ou seja, admitindo-se a “reformatio in pejus” no processo administrativo, mas condicionando-a à prévia oportunidade de o administrativo expor as suas razões, em contraditório.

 Assim, por exemplo, CÁSSIO SCARPINELLA BUENO:

“Por outras palavras, é possível que o julgamento da instância ad quem na esfera administrativa resulte em prejuízo ao recorrente, vale dizer, que se opere em seu desfavor o que usualmente é denominado de reformatio in pejus. A única exigência legal para que isto se concretize (refere-se à Lei no. 9.784/99) é que o recorrente seja ouvido previamente sobre a possibilidade de piora na sua esfera jurídica. Neste sentido, as Súmulas ns. 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal, que já autorizavam o “poder-dever” da Administração Pública em declarar a ilegitimidade de seus atos mesmo de ofício devem ser relidas – ou revisitadas, como se procura afirmar – assegurando-se a necessidade da prévia oitiva do particular antes do proferimento da nova decisão administrativa.” (11)

 E na jurisprudência, com eficácia de repercussão geral:

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. ADMINISTRATIVO.ATENDIMENTO BANCÁRIO. REGULAMENTAÇÃO POR NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS LOCAIS. POSSIBILIDADE. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA PARA RATIFICAR A JURISPRUDÊNCIA DA CORTE.PROCESSO ADMINISTRATIVO. RECRUDESCIMENTO DA SANÇÃO ADMINISTRATIVA EM RECURSO DO ADMINISTRADO. PRINCÍPIO DA AUTOTUTELA. POSSIBILIDADE. (...) 3. A possibilidade da administração pública, em fase de recurso administrativo,anular, modificar ou extinguir os atos administrativos em razão de legalidade, conveniência e oportunidade, é corolário dos princípios da hierarquia e da finalidade, não havendo se falar em reformatio in pejus no âmbito administrativo, desde que seja dada a oportunidade de ampla defesa e o contraditório ao administrado e sejam observados os prazos prescricionais. (...)”

(ARE-AgR 641054, STF, 1ª. Turma, Rel. Min. Luís Fux, julg.: 22.05.2012)

Registre-se, não obstante, entendimento no sentido de que, mesmo assim, não se deve admitir a “reformatio in pejus” uma vez que acabaria por resultar em desestímulo ao exercício do direito de ampla defesa através da interposição de recurso administrativo. (12)


III - A “CIDADANIA PROCEDIMENTAL ADMINISTRATIVA” E A APLICAÇÃO DO MÁXIMO DE DIREITOS E GARANTIAS RECONHECIDOS PELAS LEIS DE PROCESSOS ADMINISTRATIVOS, INDEPENDENTEMENTE DAS COMPETÊNCIAS PRÓPRIAS DAS ADMINISTRAÇÕES PÚBLICAS DOS TRÊS NÍVEIS POLÍTICOS

O processo administrativo é um meio através do qual se busca conciliar a intervenção da Administração Pública na esfera jurídica dos particulares com critérios jurídicos de decisão, assim colimando-se alcançar uma atuação administrativa justa. (13)

Mas não quaisquer critérios jurídicos de decisão e, sim, critérios que principiem, sejam orientados e concretizem, com as máximas abrangência e eficiência possíveis, os princípios, normas e valores constitucionais, materializando-os em cada situação individualizada.

E todas as Administrações Públicas estão constitucionalmente vinculadas a esse desiderato, uma vez que, “ao se referir expressamente o Constituinte, no mencionado art. 5º., incisos LIV e LV, ao “devido processo legal” “em processo judicial ou administrativo”, tornou imperiosa a estruturação, também no âmbito da Administração, de um instrumento que assegure a garantia do due process of law”. (14)

Todas as Administrações Públicas, diretas e indiretas, nos três níveis políticos, assim como os Poderes, encontram-se constitucionalmente vinculados aos princípios da legalidade e do devido processo legal (art.37, “caput” da CF/88).

Também estão constitucionalmente vinculadas à promoção da cidadania e da dignidade da pessoa humana, já que são fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1º., II da CF/88).

O processo administrativo é um meio através do qual a Administração Pública busca conciliar a sua atuação no espaço público, inclusive intervindo nas liberdades e autonomias privadas, ou quando serve como agente mediador dos vários interesses coletivos e sociais conflitantes, seguindo critérios de justiça – devido processo legal – respeitando e incrementando aqueles princípios, inclusive daí se podendo falar na existência de uma cidadania procedimental (15).

Não é possível a um indivíduo ser mais cidadão do que outro, já que a impessoalidade da Administração Pública também é um princípio constitucional (art. 37, “caput” da CF/88).

A Lei Federal no. 9.784/99 objetivou “dar aplicação a princípios constitucionais pertinentes aos direitos do cidadão perante a Administração Pública” e, assim tendo feito, entrou “na esfera de temas de interesse nacional e, portanto, de competência da União”. (16)

E o fez instituindo “exigências mínimas essenciais aos princípios constitucionais”, daí porque “devem ser aplicadas em âmbito nacional”. (17)

Contudo, é possível dar um passo além, e, já que é possível, é imperativo fazê-lo.

E isso por que, se uma legislação – federal, estadual ou municipal – instituir garantias mais amplas aos administrados a serem observadas nos processos administrativos de suas respectivas competências, tais garantias poderão ser invocadas por administrados que se encontrarem em situações semelhantes, inclusive em processos administrativos de outras esferas políticas de competência, sem que isso venha a resultar em usurpação de competências.

O caráter “subsidiário” da aplicação da Lei no. 9.784/99, “da mesma forma que ocorre com relação às leis federais sobre procedimentos específicos”, lembrado por MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO (18), será válido desde que omissa aquela legislação estadual ou municipal.

No entanto – e aqui o passo adiante que se está a propor – se as garantias e direitos dos administrados, nos processos administrativos de algum daqueles entes políticos, ou de suas entidades administrativas, forem mais amplas e fortalecerem a cidadania e a dignidade da pessoa humana, melhorando a posição jurídica do administrado, então a aplicação daqueles direitos e garantias terá que ser feita no âmbito federal; o contrário também é verdadeiro – se as garantias e direitos reconhecidos ao administrado forem mais e melhores no processo administrativo federal, então terão que ser aplicadas nas esferas estadual e municipal, com isso se atingindo um máximo denominador comum aos direitos e garantias fundamentais dos administrados nos processos administrativos em geral, uma verdadeira “cidadania procedimental administrativa”.

O mesmo raciocínio aplica-se, a fortiori, entre os órgãos e entidades administrativos e Poderes integrantes de uma mesma entidade política, os últimos não apenas quando estiverem a desempenhar função administrativa, mas também a legislativa ou a judiciária, conforme o caso.


IV - UMA PROPOSTA DE RECONHECIMENTO DE NOVOS LIMITES À APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA “REFORMATIO IN PEJUS” NO PROCESSO ADMINISTRATIVO A PARTIR DA ÓTICA DA “CIDADANIA PROCEDIMENTAL ADMINISTRATIVA” – EXEMPLOS

O art. 64 da Lei no. 9.784/99 dispõe:

“ Art. 64. O órgão competente para decidir o recurso poderá confirmar, modificar, anular ou revogar, total ou parcialmente, a decisão recorrida, se a matéria for de sua competência.

Parágrafo único. Se da aplicação do disposto neste artigo puder decorrer gravame à situação do recorrente, este deverá ser cientificado para que formule suas alegações antes da decisão.

O único obstáculo à aplicação do princípio da “reformatio in pejus”,

no sistema da Lei Federal no. 9.784/99, assim, é a obrigação de prévia cientificação ao interessado para que ele tenha a oportunidade de expor suas alegações, em contraditório.

Mas, como dito por IRENE PATRÍCIA NOHARA e THIAGO MARRARA:

“(...) A função dessa regra contida no art. 64, parágrafo único da LPA é clara, mas sua realização prática é razoavelmente obscura. Quando deverá, afinal, o recorrente apresentar alegações? Como poderá apresentar alegações se a autoridade ainda não decidiu nem agravou a pena?

“(...) Uma solução para a pergunta, como já dito, seria obrigar a autoridade a indicar, ao recorrente, os elementos que considera suficientes para o agravamento da decisão recorrida. Não se trata de prejulgamento ou de julgamento provisório, mas sim da divulgação dos elementos fáticos e jurídicos que possam levar ao agravamento da situação do recorrente.” (19)

A Lei Paulista no. 10.177/98, em seu art. 49, estabelece que:

“Art. 49 – A decisão de recurso não poderá, no mesmo procedimento, agravar a restrição produzida pelo ato ao interesse do recorrente, salvo em casos de invalidação.”

Não há dúvida de que essa norma é mais benigna ao administrado do que a contida no art. 64, parágrafo único da Lei Federal no. 9.784/99.

Logo, e na linha do que vem sendo defendido até aqui, é direito constitucional subjetivo do administrativo, com base nos arts. 5º., LIV e LV e 37, “caput”, a aplicação daquela norma estadual procedimental administrativa também em processo administrativo federal sancionador a que estiver respondendo.

A “cidadania procedimental administrativa” pode também ser ampliada dentro de uma mesma esfera política, tomando-se em comparação regulamentos administrativos ou, mesmo, decisões administrativas e judiciais sobre o alcance de certos direitos do administrado.

Indaga-se, como exemplo: é possível que o recorrente seja cientificado da possibilidade de agravamento da sua situação jurídica; talvez, quando desse ato, tenha sido dada publicidade a decisão mais desfavorável proferida pela autoridade julgadora em caso semelhante. Indaga-se: poderá o recorrente desistir do recurso, a fim de evitar a provável decisão que contra ele será tomada para pior?

O art. 51, “caput” da Lei no. 9.784/99 autoriza a desistência do recurso interposto pelo administrado, no todo ou em parte, ou, ainda, a renúncia dele a direitos disponíveis, enquanto que o parágrafo 2º. deste mesmo dispositivo faculta à Administração Pública prosseguir com o processo administrativo, se considerar que o interesse público assim o exige.

Observam IRENE PATRÍCIA NOHARA e THIAGO MARRARA que:

“Conforme visto, a desistência e a renúncia apenas extinguem o processo administrativo quando for ampliativo da esfera jurídica do particular, contudo, se houver interesse público que justifique a sua continuidade deve a Administração prosseguir com o processo para que ele atinja o melhor cumprimento dos fins públicos, tendo em vista o princípio da indisponibilidade dos interesses públicos.

“(...) Na realidade, esse dispositivo do parágrafo 2º. do art.51 da LPA apenas objetiva ressalvar o fato de que o particular jamais terá domínio do transcurso do processo administrativo, à medida que este é manifestação do desempenho de função administrativa que tradicionalmente o submete a regime jurídico público.” (20)

Porém, até que momento o administrado poderá manifestar sua vontade de desistir?

CÁSSIO SCARPINELLA BUENO, inspirando-se na doutrina e na jurisprudência processualística civil, entende ser inadmissível a desistência do recurso, pelo interessado, “após o início do julgamento”, ou seja, conforme NELSON NERY JR e ROSA MARIA ANDRADE NERY, invocados pelo mesmo autor, “até o momento imediatamente anterior ao julgamento do recurso, inclusive deduzida oralmente na sessão de julgamento”. (20)

Para o Superior Tribunal de Justiça, contudo, se o recurso for daqueles a que se houver atribuído eficácia de – “repetitivo” -, esse momento será o da publicação da pauta de julgamentos do recurso selecionado para servir de paradigma. (21)

Sendo mais favorável ao administrativo o critério seguido pela norma do art. 51 da Lei no. 9.784/99, deve este prevalecer, embora a desvalorização do conteúdo garantístico do art. 501 do CPC que serviu de modelo para a seara processual administrativa.

Por último: ao contrário da proibição expressa contida no art. 5º. da Lei no. 9.868/99, o art. 57 da Lei no. 9.784/99 não contém semelhante norma, apenas determina que o recurso administrativo tenha seguimento, já que a decisão interessará à coletividade em geral.

Haverá que se ter por excluído da abrangência da decisão mais gravosa que porventura vier a ser prolatada pelo órgão julgador o interessado que desistiu do recurso, sem prejuízo da efetividade do julgamento meritório para a coletividade, na linha, por sinal, do que chegou a ser aventado pela Corte Especial do STJ quando do julgamento da QORESP 200801289049, Rel. Min. Nancy Andrighi, julg.: 17.12.2008.


 NOTAS DE REFERÊNCIA

(1) NÉLSON NERY COSTA. Processo Administrativo e suas Espécies. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2000, 2ª.ed.,

p. 22: “Odete Medauar elaborou uma relação das finalidades, que podem ser cumulativas, sem que se excluam, formando um conjunto entrelaçado, com vínculos recíprocos. Podem ter a finalidade de garantia, entendido o processo administrativo como uma função complementar da função jurisdicional dos administrativos. Propicia condições, ainda, para que haja o correto desempenho da função administrativa, pois leva ao equilíbrio entre a autoridade do sujeito público e os direitos dos particulares. Possibilita o encontro de pontos de vista e interesses diversos do que inicialmente assumido pela Administração e, ainda, suscita o afloramento de várias posições jurídicas, argumentos, provas, dados técnicos que obrigam as decisões a serem tomadas da forma mais correta possível. Cria Justiça na Administração, ao atribuir a esta responsabilidade sobre aquela, através de um processo o mais isento possível. Tais cuidados permitem, ainda, que haja uma aproximação entre a Administração e os cidadãos. Para a autora acima, o processo administrativo tem, ainda, a finalidade de sistematizar as atuações administrativas, implicando a organização racional da edição dos atos administrativos, inclusive com a aplicação dos princípios e regras comuns da atividade administrativa. Tudo isso permite um controle administrativo mais facilitado, tanto por parte da sociedade quanto do Poder Judiciário e da própria Administração”.

(2) MEDAUAR, Odete et alii. Bases do Processo Administrativo, in Processo Administrativo – Aspectos Atuais.São Paulo: Cultural Paulista. 1998, p. 23: “O processo administrativo representa garantia de direitos, tanto no atinente ao indivíduo considerado isoladamente quanto sob o prisma dos direitos coletivos e difusos. Além do mais, associa-se à concepção do Estado Democrático de Direito e aos princípios constitucionais da Administração, como corolário e veículo de sua expressão”.

(3) MEDAUAR, Direito Administrativo Moderno. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1996, p. 191: “O preceito acima está inserido no título dedicado aos direitos e garantias fundamentais. Nem sempre, na teoria e na prática, se torna possível a separação nítida entre direitos e garantias. José Afonso da Silva, ao tratar do confronto entre direitos e garantais, menciona a conotação destas como direitos instrumentais, porque destinadas a tutelar um direito principal. (...) O inciso LV do art. 5º. Apresenta-se precipuamente como garantia, porque se destina a tutelar direitos, porque representa meio para que sejam preservados, reconhecidos ou cumpridos direitos dos indivíduos na atuação administrativa. Deve ser enfocado também como garantia de direitos difusos, do que fornece exemplo o licenciamento ambiental com a participação, em contraditório, de entidades ambientalistas direcionadas à defesa de interesses difusos.” Contra a “confusão” entre “direitos” e “garantias”, BONAVIDES, Paulo. São Paulo: Malheiros Editores. Curso de Direito Constitucional. 26ª. ed., 2011, p. 525/528, inclusive lembrando as doutrinas de RUI BARBOSA e de JORGE MIRANDA neste sentido. Sem embargo, à p. 532, o mesmo autor reconhece que: “Em razão precisamente desse relacionamento tão íntimo com os direitos fundamentais do indivíduo ou com a liberdade de feição e teor individualista, é que as garantias constitucionais se tornaram uma espécie de escudo da personalidade contra os desvios do poder do Estado ou se converteram historicamente no símbolo mais positivo e prestigioso de caracterização jurídica do Estado liberal. Tornou-se a concretização de tais garantias num certo sentido mais importante ou tão importante quanto os próprios direitos contidos na Constituição ou por esta enunciados.” (destaque meu)

(4)MOREIRA, Egon Bockmann. Processo Administrativo – princípios constitucionais e a Lei no. 9.784/99. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 57: “A existência e a celebração do processo administrativo fazem parte da busca por um Estado Democrático de Direito.

É atividade pela qual o particular contribui com a formação da “vontade” estatal, de forma direta e imediata. Talvez seja a maneira mais democrática de se chegar à prolação de um ato administrativo. Então, o processo caracteriza-se como instrumento de garantia dos direitos individuais. Ao administrado não será apenas dado o dever de submeter-se aos atos estatais, pois o caminho processual prestar-se-á a proteger o direito material dos particulares. (...) O processo é instrumento de participação, proteção e garantia dos direitos individuais. Caso prestigiado, o cidadão terá convicção de que o ato administrativo é legítimo e perfeito.”

(5) NOHARA, Irene Patrícia; MARRARA, Thiago. Processo Administrativo – Lei no. 9.784/99 comentada. São Paulo: Ed. Atlas, 2009, p. 02: “A lei geral de processo administrativo, que doravante chamaremos de LPA, nos dizeres inspirados e precisos de Paulo Modesto, trata do modo de agir da Administração Pública, sendo considerada em todo o mundo: a carta de identidade da Administração Pública; o núcleo do ordenamento jurídico administrativo; ou o estatuto fundamental da cidadania administrativa.”

(6) OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Constitucionalização do Direito Administrativo – o princípio da juridicidade, a releitura da legalidade administrativa e a legitimidade das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Juris, 2010, 2ª. ed., p. 111: “A idéia de legitimidade do Direito passa, indubitavelmente, pela compreensão do princípio democrático em sede administrativa. A legitimidade do Direito Administrativo, além de exigir o respeito aos direitos fundamentais, relaciona-se com a democratização da atuação administrativa.”

(7) MOREIRA, Egon Bockmann. Op.cit., p. 65/66: “Essa ampla significação do processo administrativo faz avultar a importância do enfoque de um regime democrático, tal como assinalado por Celso Antônio Bandeira de Mello: “Na esfera administrativa, ganha relevo crescente o procedimento administrativo, obrigando-se a Administração a formalizar cuidadosamente todo o itinerário que conduz ao processo decisório. Passou-se a falar na “jurisdicionalização” do procedimento administrativo (ou processo, como mais adequadamente o denominam outros), com a ampliação crescente da participação do administrado no iter preparatório das decisões que possam afeta-lo. Em suma: a contrapartida do progressivo condicionamento da liberdade individual é o progressivo condicionamento do modus procedendi da Administração.”; SILVA, José Afonso da. São Paulo: Malheiros Editores. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19ª. ed., 2001, p. 128, “fine”/129: “(...) Segundo Xifras, a atual situação dos regimes políticos resume-se na dicotomia autocracia-democracia: diante dos regimes autocráticos, estruturados de cima para baixo (soberania do governante; princípio do chefe), existem os regimes democráticos, organizados de baixo para cima (soberania do povo). E aí já se percebe a relação entre regime político e direitos humanos fundamentais. Regimes há que lhes são garantias – os democráticos – instrumentos de realização no plano prático; outros – os autocráticos – ao contrário, lhes recusam guardiã, tolhem-lhes a realização.”

(8) OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Op. cit., p. 28 “Pode-se afirmar, por derradeiro, que a constitucionalização do ordenamento jurídico obriga o operador do Direito a interpretar a legislação à luz da Constituição. Esse fenômeno, segundo Paulo Ricardo Schier, é denominado de “filtragem constitucional”: ““Filtragem Constitucional” (...) denota a idéia de um processo em que toda a ordem jurídica, sob a perspectiva formal e material, e assim, de seus procedimentos e valores, devem passar sempre e necessariamente pelo filtro axiológico da Constituição Federal, impondo, a cada momento de aplicação do Direito, uma releitura e atualização de suas normas.”

(9) MADEIRA, José Maria Pinheiro. Rio de Janeiro: Elsevier. Administração Pública, Tomo II, 11ª. ed., 2010, p. 499.

(10) GASPARINI, Diógenes. São Paulo: Ed. Saraiva, 4ª. ed., 1995, p. 538.

(11) BUENO, Cássio Scarpinella. Os Recursos nas Leis de Processo Administrativo federal e paulista: uma primeira aproximação, in As Leis de Processo Administrativo – Lei Federal 9.784/99 e Lei Paulista 10.177/98, SUNDFELD, Carlos Ari; MUÑOZ, Guillermo Andrés (coord.) et alii. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 212, “fine”/213.

(12) JUNQUEIRA, Helena Marques. A reformatio in pejus no processo administrativo. In: Lucia Valle Figueiredo (Coord.). Processo administrativo tributário e previdenciário. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 111-112, apud José Daniel de Jesus Santana. Abordagem constitucional da reformatio in pejus no âmbito administrativo, texto disponível em http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11676&revista_caderno=4:, acesso em 08.09.2012: “Acerca do art. 64 da Lei dos Processos Administrativos Federais, há quem entenda que a simples oportunidade de o recorrente produzir novas alegações finais não exclui o óbice da reforma para piorar sua situação, uma vez que: “a mera oportunidade para que o administrado seja ouvido antes da decisão de agravamento não é suficiente para garantir o direito de ampla defesa e tem o sério inconveniente de, ao permitir a reformatio in pejus, poderá causar um desestímulo à utilização do constitucional direito de recurso.” 

(13) CAETANO, Marcelo. Princípios Fundamentais do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1989, 2ª. ed., p. 513: “Assim, nos países anglo-saxônicos o processo administrativo gracioso desenvolveu-se por duas razões: pela necessidade de impor a falta de autoridade da Administração para impor aos particulares decisões obrigatórias com caráter executório, e, nos Estados Unidos da América, também porque a Constituição faz depender qualquer decisão do Poder que toque na vida, na liberdade e na propriedade dos cidadãos, da observância de um processo jurídico regular – due process of law.”; e à p. 517: “Enquanto nos países onde a Administração tem que intervir numa zona de livre atividade individual ou como árbitro de interesses particulares diversos, prevalece a preocupação do legislação de assegurar a justiça relativa mediante a imposição de critérios jurídicos de decisão, nos países socialistas os interesses individuais só assumem expressão através do interesse coletivo. Por isso as leis sublinham o sentido funcional ou instrumental da legalidade socialista e acentuam que direitos ou interesses individuais tem de ser atendidos de acordo com os interesses do Estado socialista e do povo trabalhador, devendo as decisões administrativas cumprir um papel educativo dos cidadãos.”

(14) NOGUEIRA, Alberto. O Devido Processo Legal Tributário. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 3ª. ed., 2002, p. 88.

(15) NOGUEIRA JÚNIOR, Alberto. Segurança – Nacional, Pública e Nuclear – e o Direito à Informação. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, 2006, p. 18/19: “É clássica a definição da cidadania segundo três dimensões – a civil, representada pelas garantias necessárias às liberdades individuais: faculdade de expressão, pensamento e crença; asseguramento à propriedade e ao estabelecimento de contratos válidos; e o direito à justiça; à política, referente ao voto universal, ao acesso ao poder e aos cargos públicos; e a social, de acordo com os padrões de bem – estar adequados ao meio, estabelecidos pela redução das desigualdades materiais. Mas também pode-se entender a cidadania como um referencial às idéias de “inclusão” versus “exclusão”; “a tensão permanente entre uma visão de cidadania como “status” e uma visão de cidadania como identidade”; e “entre a idéia de virtude cívica e direito ou prerrogativa”. Ou, ainda, ter-se o cidadão como um “consumidor de serviços”, mediando-se a qualidade da cidadania pela qualidade com que os serviços públicos ou de utilidade pública são prestados. Sob outro prisma, pode-se distinguir uma “cidadania procedimental” de uma “substancial” ou “material”. Seja como for, o significado estará sempre em contínua expansão; começa-se a se falar, assm, em uma “cidadania planetária””.

(16) DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. A Lei de Processo Administrativo: sua idéia matriz e âmbito de aplicação, in Processo Administrativo – temas polêmicos da Lei no. 9.784/99. Irene Patrícia Nohara e Marco Antônio Praxedes de Moraes Filho (org.). São Paulo: Ed. Atlas, 2011, p. 190, comentando a possibilidade de aplicação da Lei no. 9.784/99 também no âmbito dos Estados e Municípios, embora os arts. 22 e 24 da Constituição Federal de 1988: “No entanto, surgiram alguns posicionamentos dando maior amplitude a alguns dispositivos, que têm sido aplicados em âmbito nacional. Tal entendimento merece ser acatado. Note-se que a Lei não estabeleceu procedimento específico a ser adotado pelos órgãos administrativos. Ela estabeleceu normas básicas sobre os processos administrativos em geral. O objetivo da Lei não foi apenas estabelecer normas sobre processo; se fosse o caso, a Lei poderia ser considerada de âmbito federal apenas. Ocorre que ela não se limitou a isso. Ela foi além. O seu principal objetivo foi o de dar aplicação a princípios constitucionais pertinentes aos direitos do cidadão perante a Administração Pública. Ora, quando se fala em princípios constitucionais e em direitos do cidadão, entra-se na esfera de temas de interesse nacional e, portanto, de competência da União.”

(17) DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p. 191: “na realidade, as normas da lei que se limitam a fazer exigências mínimas essenciais aos princípios constitucionais devem ser aplicadas em âmbito nacional.”

(18) DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Idem, p. 191.

(19) NOHARA, Irene Patrícia; MARRARA, Thiago. Op.cit., p. 409.

(20) BUENO, Cássio Scarpinella. Op.cit., p. 231 e nota 44.

(21) RESP 200901213612, STJ, 1ª. Seção, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, dec. un. pub. DJE 10.03.2010: “PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. Recurso Especial representativo de controvérsia (art. 543-C, § 1º, do CPC). pedido de desistência. Indeferimento. violação ao art. 535, do CPC. INOCORRÊNCIA. ALÍNEA “C”. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE DISSÍDIO. IPI. CRÉDITO-PRÊMIO. DECRETO-LEI 491/69 (ART. 1º). VIGÊNCIA. PRAZO. EXTINÇÃO. PRESCRIÇÃO. 1. É inviável o acolhimento de pedido de desistência recursal formulado quando já iniciado o procedimento de julgamento do Recurso Especial representativo da controvérsia, na forma do art. 543-C do CPC c/c Resolução n.º 08/08 do STJ. Precedente: QO no REsp. n. 1.063.343-RS, Corte Especial, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 17.12.2008. (...)”. Criticando esse entendimento, sob o viés da garantia constitucional da autonomia privada e do autoritarismo decorrente da objetivação do recurso especial, exercido em nome de um vago “interesse público”, LÊNIO LUIZ STRECK. Decisão sobre desistência de recurso é inadequada. Texto disponível em http://www.conjur.com.br/2008-dez-25/decisao_desistencia_recurso_inadequada, acesso em 08.09.2012: “(...)Reitere-se: a desistência do recurso, nos moldes do artigo 501, CPC, constitui ato unilateral do recorrente que independe da anuência da parte contrária ou do juízo, e sua realização constitui um fato impeditivo do poder de recorrer, requisito extrínseco de admissibilidade recursal. Seu exercício é uma clara manifestação da autonomia privada das partes no processo (princípio dispositivo),assegurada constitucionalmente. Frise-se: essa autonomia privada vem sendo flexibilizada pela tendência de ativismo judicial, mas que, ordinariamente, é fruto de uma autorização legal (v.g.: artigo 461, parágrafo 4º, CPC). Não podemos esquecer que a técnica de “abdução de processos” ( artigo 543 do CPC) não permite uma participação efetiva dos interessados, eis que os “recursos representativos da controvérsia” serão escolhidos (pinçados) pelo órgão a quo ou ad quem, sem qualquer garantia de que todos os argumentos relevantes para o deslinde da causa, suscitados por todos os interessados, sejam levados em conta no momento da decisão. A participação se limita às partes dos recursos afetados, que podem ou não ter apresentado uma argumentação idônea e técnica. Mais ainda – e isso parece mais grave – a partir dessa técnica de “abduzimento” os Tribunais Superiores já não julgam todos os recursos (quer dizer, causas); na verdade, examinam a pertinência de “temas”, uma vez que as causas são transformadas em “conceitos”. (...)Mas, acrescente-se, não se está aqui a fazer uma ode formalista em favor de uma lei (no caso, o CPC). A questão é bem mais complexa, porque diz respeito ao debate contemporâneo entre democracia e constitucionalismo e ao dilema que dele se extrai: como controlar o poder de quem decide, para, com isso, evitar que o Judiciário atropele as decisões da vontade geral. Isso significa dizer que não é apenas a lei que “segura” o direito de as partes desistirem do recurso; é o papel do processo civil (e das partes) no Estado Democrático de Direito que aponta na direção dessa autonomia de desistir a qualquer momento. Ou seja, mesmo que se faça uma lei “incorporando” a nova decisão do STJ, ainda assim será difícil compatibilizá-la com a Constituição. “Legalidade” significa, assim, nesse caso, “constitucionalidade. (...)Mas, apesar de tudo isso, penso que a decisão em tela assume ainda maior relevância em face de seu conteúdo simbólico (no sentido de Castoriadis e Lacan). A pergunta que fica é: quais são os limites da interpretação do direito? E quais são os limites dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade? Seriam tais princípios álibis para o exercício de arbitrariedades hermenêuticas?”


BIBLIOGRAFIA

BUENO, Cássio Scarpinella. Os Recursos nas Leis de Processo Administrativo federal e paulista: uma primeira aproximação, in As Leis de Processo Administrativo – Lei Federal 9.784/99 e Lei Paulista 10.177/98, SUNDFELD, Carlos Ari; MUÑOZ, Guillermo Andrés (coord.) et alii. São Paulo: Malheiros Editores, 2000;

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Resúmen: El estudio propone la atribución de nuevos límites a la aplicación del princípio “reformatio in pejus” en el ámbito de los procesos administrativos,valendose de la técnica del “filtro constitucional”, a efecto de que, interpretandose las leyes de los procesos administrativos federales, estaduales y municipales, con base en los princípios constitucionales de la ciudadania, de la dignidad de la persona humana, del debido proceso legal, de la igualdad y de la impersonalidad de la Administración Pública, se logre obtenerse el máximo denominador común de derechos y garantías como derechos públicos subjetivos de los administrados, inmediatamente alegables en los procesos administrativos en los cuales sean interesados, sin embargo las esferas de competencia de los órganos e entidades administrativos, así haciendo efectiva una “ciudadania procedimental administrativa’.

Palabras - clave: PROCESOS ADMINISTRATIVOS – “REFORMATIO IN PEJUS” – PRINCÍPIOS CONSTITUCIONALES – DERECHOS Y GARANTÍAS – MÁXIMO DENOMINADOR COMÚN – “FILTRO CONSTITUCIONAL” – “CIUDADANIA PROCEDIMENTAL ADMINISTRATIVA”


Autor

  • Alberto Nogueira Júnior

    juiz federal no Rio de Janeiro (RJ), mestre e doutor em Direito pela Universidade Gama Filho, professor adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF), autor dos livros: "Medidas Cautelares Inominadas Satisfativas ou Justiça Cautelar" (LTr, São Paulo, 1998), "Cidadania e Direito de Acesso aos Documentos Administrativos" (Renovar, Rio de Janeiro, 2003) e "Segurança - Nacional, Pública e Nuclear - e o direito à informação" (UniverCidade/Citibooks, 2006); "Tutelas de Urgência em Matéria Tributária" (Forum/2011, em coautoria); "Dignidade da Pessoa Humana e Processo" (Biblioteca 24horas, 2014); "Comentários à Lei da Segurança Jurídica e Eficiência" (Lumen Juris, 2019).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA JÚNIOR, Alberto. Uma nova proposta de limites à aplicação do princípio “reformatio in pejus” no âmbito dos processos administrativos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3387, 9 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22771. Acesso em: 25 abr. 2024.