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O ardil da Súmula 377 do STF ao contrato de casamento e à boa fé dos nubentes no regime da separação obrigatória de bens

O ardil da Súmula 377 do STF ao contrato de casamento e à boa fé dos nubentes no regime da separação obrigatória de bens

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A Súmula n. 377 foi desgrudada de um julgado específico de 1964 e ganhou vida própria. Desde então, com o apoio da Justiça, é invocada por herdeiros de olho esticado no bem alheio, a busca de um enriquecimento, sempre sem causa.

Introdução.

A exigência da boa-fé e sua correta operacionalidade são fundamentos essenciais a ancorar o contrato do regime de casamento. Porém, ambos colidem com Súmula 377, que introduz uma cláusula contratual ‘oculta’ cuja pretensão é alterar o regime dos bens já imposto aos cônjuges. Tal súmula algumas vezes acaba por gravar os bens pessoais do cônjuge supérstite, constituindo uma sucessão de ardis não visitados pela jurisprudência a justificar sua revogação, de resto imposta pelo novo Código Civil.

O fato do casamento ser tratado em legislação específica (Livro IV – Direito da Família – Subtítulo I – Do casamento), não afasta sua dimensão contratual, aspecto que mais e mais acolherá a doutrina, na medida em que divórcios e casamento de divorciados passem a ocorrer no país em crescente número, substituindo o velho conceito, ainda existente, da sacralidade e derivada indissolubilidade do casamento, um sacramento do ponto de vista religioso, mas um contrato laico do ponto de vista jurídico.  

Aliás, o casamento celebrado “mediante procuração, por instrumento público, com poderes especiais” – art. 1.542 do CC – acentua, ainda mais, seu aspecto contratual, palavra lamentavelmente ausente na definição filosófico-religiosa e, por tal razão, a demandar exegese jurídica do artigo 1.511: “O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direito e deveres dos cônjuges.” Interpole-se ao texto a expressão “contrato” e então teríamos o ingresso desta definição no mundo jurídico, ou “o casamento é um contrato que estabelece comunhão (plena) de vida, com base na igualdade de direito e deveres dos cônjuges”. Esta última expressão (“plena de vida”) constitui um radical pleonasmo.


1. Contrato de casamento: regime insculpido na Certidão. Cláusulas essenciais e boa-fé contratual.

Ao contrair núpcias pelo regime da separação obrigatória de bens, por força do anterior Código Civil, artigo 258, parágrafo único, II, o nubente recebe sua Certidão de Casamento, diploma legal, balizador e contrato solene a reger o regime matrimonial de seus bens, - o que lhe é fundamental em sua vida econômica - cuja cláusula única esclarece e impõe ter sido seu casamento:

Efetuado pelo Regime: Separação de bens, ex vi, artigo 258, § único. nº II do Código Civil ***.

 Ou, traduzindo o artigo:

“artigo 258: Não havendo convenção, ou sendo nula, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime de comunhão parcial.”

Parágrafo único: “É, porém, obrigatório o da separação de bens do casamento:

 ...

II – do maior de 60 (sessenta) anos e da maior de 50 (cinqüenta) anos.”

Portanto, seguindo a lei, a própria Certidão de Casamento – e não poderia ser diferente - transcreve aos nubentes o regime adotado ou imposto, este último o “capitis diminutio” da separação obrigatória; regime a gerir doravante suas vidas (plenas ou não): conjugal, econômica e patrimonial com sua aderente gestão.

Inerente e intrínseca ao instrumento da Certidão de Casamento é a boa fé contratual, contrato que é, e solene – o do casamento – axial desde o direito romano, e cuja celebração, diante de um oficial de justiça, exige, como em qualquer singelo contrato, que suas cláusulas fundamentais sejam ampla e exaustivamente conhecidas e transcritas, em benefício dos contraentes ou contratantes, os nubentes, bem como de sua futura família e da sociedade, contrato matrimonial necessário para assegurar a adequada segurança jurídica. O Capítulo VI do Livro do Direito da Família relaciona as solenidades requeridas para a celebração do casamento, notadamente os art. 1.534, e depois o 1.536, VII, cujo texto diz:

Art. 1.536. “Do casamento, logo depois de celebrado, lavrar-se-á o assento no livro de registro. ... serão exarados:

...

VII – o regime do casamento, com a declaração da data e do cartório em cujas notas foi lavrada a escritura antenupcial, quando o regime não for o da comunhão parcial, ou o obrigatoriamente estabelecido.”

Portanto, “a validade do negócio jurídico requer... III forma prescrita em lei” – art. 104 do CC; e o Código, ao conceituar até mesmo um aparentemente simples contrato preliminar, diz no art. 462: “exceto quanto à forma, deve conter todos os requisitos essenciais ao contrato a ser celebrado.”

Pois eis acima, no artigo 1.536 do CC a forma prescrita em lei para o contrato do casamento.

Princípios comezinhos, ultra conhecidos, a gravitarem em torno do conceito fundamental operacionalizador da lei e viabilizador parcial de sua aplicabilidade: “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.” (Art. 3º da Lei de Introdução ao Código Civil)

Aliás, princípio antigo, clássico adágio latino: “Ignorantia juris non excusat”  - "A ignorância da lei não é desculpa." Os romanos, espraiando-se por toda a Europa, necessitavam desta ficção jurídica para justificar a imposição de sua lei e a obrigatoriedade de seu cumprimento. Entretanto, ao tempo remoto de Moisés (1.300 AC) com sua menor comunidade, tal ficção ainda não existia: bastou-lhe exibir as tábuas da lei no Monte Sinai para que a comunidade as desse como conhecidas, descabendo então e derivadamente, a excusa da ignorância. A comunidade viu, com seus olhos, as tábuas da lei.

Aos nubentes, os dois sistemas são empregados: exibem-se as tábuas da lei, na forma do instrumento da certidão de casamento que vão assinar, concordando com o texto apresentado, dela portando cada qual e de pronto sua cópia, conforme dispõe o art. 1.512 do CC.

Assim, o regime da separação obrigatória de bens está insculpido no instrumento contratual desta solenidade matrimonial, na transcrição do art. 258, § único, II, supracitado, acolhido na boa fé desta celebração contratual valer agora e sempre – “hinc et nunc”.

Além desta solenidade, em que o regime de bens do casamento é trazido ao conhecimento e à concordância escrita dos nubentes, na remota hipótese de que não o tivessem lido, permaneceria ainda a presunção ou a ficção do artigo 3º da LICC, exigência ulterior ao cumprimento contratual da regência de seus bens, na mais absoluta boa-fé contratual.

Boa-fé contratual: em boa hora fundamento introduzido no novo CÓDIGO, princípio ético, segundo Miguel Reale[1]. Em seu Título V – Dos Contratos em Geral – diz o art. 422 do CC: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé.”

Mais adiante o art. 1.536 do CC dispõe o conteúdo do contrato matrimonial, exigindo que sua Certidão (de Casamento), quando da lavratura,  discrimine, conforme seu item VII “– o regime do casamento, com a declaração da data e do cartório em cujas notas foi lavrada a escritura antenupcial, quando o regime não for o da comunhão parcial, ou o obrigatoriamente estabelecido.”


2. Ética e Operacionalidade do novo Código, conforme Miguel Reale[2].

A ênfase é sempre no regime que irá comprometer os nubentes, dispondo, diretamente, como será a gestão patrimonial do contrato de casamento que celebram, obedecidos aqueles sagrados princípios da probidade e da boa-fé do art. 422, ou da “ETICIDADE”, princípios éticos do novo Código Civil, a cujo respeito enfatiza MIGUEL REALE:

"Freqüente é no Projeto (do novo Código Civil) a referência à probidade e à boa-fé, assim como à correção ('corretezza') ao contrário do que ocorre no Código vigente (então o de 1916), demasiado parcimonioso nessa matéria, como se tudo pudesse ser regido por determinações de caráter estritamente jurídicas."

E REALE cita ainda como exemplos desta busca de correção os artigos 113, 187[3] e o 422[4], este último já citado ao início deste texto. E acrescenta, enfatizando o princípio da ETICIDADE:

... "Não menos relevante é a resolução de lançar mão, sempre que necessário, de cláusulas gerais, como acontece nos casos em que se exige probidade, boa-fé ou correção (corretezza) por parte do titular do direito, ou quando é impossível determinar com precisão o alcance da regra jurídica."

Se, como sublinhado anteriormente, o art. 3º da LICC é dirigido ao comum dos cidadãos, os arts. 4º e 5º dirigem-se aos meritíssimos juízes, educados e treinados, ao longo de anos, para a aplicação e interpretação da lei, em cada “caso” concreto: “omissa” a “lei... o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”

Aqui se está diante de outro princípio que buscou nortear a elaboração do novo Código Civil, a OPERABILIDADE, assim explicada por REALE em seu artigo mencionado:

Busca "...estabelecer soluções normativas de modo a facilitar sua interpretação e aplicação pelo operador do Direito. Nessa ordem de idéias, o primeiro cuidado foi eliminar as dúvidas que haviam persistido durante a aplicação do Código anterior."

Pois bem, em sua Introdução, o Código Civil se dirige tanto ao cidadão comum, quanto aos juízes, buscando mostrar-lhes o caminho da utópica, mas sempre perseguida justiça, contratada ou aplicada.


3. A invasão da Súmula 377 de 1964. Cláusula oculta no contrato matrimonial.

A grande mudança intentada pela Súmula 377/64[5] no regime da separação obrigatória – em duas sintéticas linhas - não foi recepcionada pelos legisladores da Lei do Divórcio de 1977 – Lei nº 6.515, que já a conheciam.

   Esta Lei, em suas Disposições Transitórias e através do artigo 50 altera o antigo regime do caput do artigo 258 do CC de 1916, transformando a anterior regência da separação em comunhão parcial, em casos em que não tenha havido convenção, ou de nulidade.

Ora, quisesse, poderia o legislador de 1977 ter recepcionado a Súmula 377, - tão próxima de seu tempo histórico - alterando o então regime legal da separação obrigatória de bens para este novo e inusitado regime jurisprudencial e sumular, - o da comunicação dos aqüestos ‘pos-mortem’ -, regime que, aliás, somente hoje é admitido como regime próprio no novo Código Civil, em seu art. 1.672, mas mediante prévia escolha:

“Art. 1.672. No regime de participação final nos aqüestos, cada cônjuge possui patrimônio próprio, consoante disposto no artigo seguinte, e lhe cabe, à época da dissolução da sociedade conjugal, direito à metade dos bens adquiridos pelo casal, a título oneroso, na constância do casamento.”

Então, como poderia o nubente suspeitar que, além da lei – transcrita em seu contrato matrimonial e a não ser ignorada, força do artigo 3º da LICC -, deveria ainda, naquele ato contratual, preocupar-se com disciplina eventualmente imposta por remota jurisprudência, aliás, área restrita do poder judicante, força dos artigos subseqüentes - 4º e 5º - da referido LICC e supratranscritos?

Aquela nova Lei do Divórcio poderia - mas não o fez – tanto abrigar o regime matrimonial proposto pela Súmula editada 7 anos antes, alterando o artigo correspondente como alterou o art. 258, quanto instruir a que o texto da Súmula fosse incluído no corpo do próprio contrato matrimonial, de modo a facilitar sua operacionalização. Poderia, por exemplo, nas mesmas Disposições Transitórias, alterar a redação da Certidão do Casamento – contrato típico – exigindo-lhe, doravante que, em suas Observações fosse melhor tipificado o regime do casamento adotado, quer para os anos de vida do casal, quer para os do cônjuge sobrevivente, abrigando assim a ruptura contratual introduzida pela Súmula. O instrumento da Certidão possui em seu verso, no campo das Observações, mais de 20 linhas que poderiam abrigar, por exemplo, a transcrição desta controversa e sintética Súmula, cuja existência – oculta - não é trazida aos nubentes quando de seu arriscado e temerário enlace sob o regime da separação obrigatória dos bens.

Temerário e arriscado: pois ambos se casam com uma cláusula oculta e não sabida: a Súmula 377 de 1964, um absoluto escândalo em legislação e prática contratuais. A este respeito, considerando-se que o regime obrigatório do casamento se assemelha a um contrato de adesão por força de lei, poder-se-ia igualmente invocar o apoio corretivo do art. 423 do atual CC, que diz:

"Art. 423 do CC: Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente.”


4. O ardil da Súmula 377/64: alteração de fundamentos contratuais introduzindo os polêmicos aqüestos.

Certamente os Ministros do Supremo Tribunal Federal que editaram aquela Súmula, não imaginaram que estavam a adulterar e a rasgar o regime matrimonial da separação obrigatória de bens na doutrina e na aplicação da lei; e mais, rasgavam o significado legal de um contrato solene. Ou, então, se a tal alteração pretendessem, deveriam complementar seu ato, remetendo-lhe ao conhecimento dos nubentes via cartorial, de modo a não lhes esconder tal dispositivo fraudulento, ardil inesperado e inadmissível na jurisprudência.

Ardil sempre invocado pelos tribunais no arrolamento de bens do cônjuge sobrevivente no regime de separação obrigatória; ardil que retira a plena disponibilidade de seus bens, tão logo desfeita a união. Descobre o cônjuge sobrevivente que a Certidão de Casamento – seu contrato - lhe enganara e que não poderia dispor de seus bens - como ali lhe assegurara a lei - após o falecimento de seu parceiro. Dupla dor: perde seu parceiro de vida e depois perde seus bens pessoais.  Se na véspera do falecimento de um deles, o sobrevivente dispunha plenamente de seus bens – ao limite de poder fazê-los desaparecer -, tal poder cessa com o simples falecimento do outro cônjuge, convocando a Súmula seus bens pessoais ao monte, sob a singela e sutil, mas não menos impactante, denominação de aqüestos, intervenção de um terceiro contratualmente interessado, o Estado, na busca de impostos.   

Desgrudada a Súmula de um julgado específico de 1964, ganhou vida própria, sendo, deste então, e com o apoio da Justiça, invocada por herdeiros de olho esticado no bem alheio, à busca de um enriquecimento, sempre sem causa.

Bens mobiliários financeiros, por exemplo, se constituem em impasse para serem traduzidos em aqüestos. Aplicação financeira iniciada nos anos 70 e enfrentando hiperinflação nos 30 anos subseqüentes na casa do quatrilhão, conheceu exuberante correção monetária apenas para manter seu valor inicial. Mas agora, na interpretação da Súmula, eis aí todo um aqüesto, o da correção monetária, chamada ao monte para a partilha junto com a aplicação financeira inicial, desconsiderando-se a hiperinflação da história brasileira. Esforço comum aqui? Nem pensar.

Divorcia-se a justiça das regras econômicas, ignorando as regras do capitalismo, consubstanciadas no Constituição de 1988, e que ultrapassam conceitos anteriores provenientes de economias agrária ou urbana, quando os aqüestos eram manifestamente rendas de aluguel, da lavoura e do campo, época em que a renda mobiliária era inexpressiva, cingida quase que apenas, e para muito poucos, aos dividendos de ações.  Em artigo intitulado “Capital X Trabalho na Constituição e as Opções por Mercado” publicado neste ‘site’ sublinho a opção dos constituintes pelo capitalismo. (Outra impropriedade proveniente do desconhecimento dos fatores econômicos pelos juristas, mas igualmente expressiva, - cuja revisão bate à porta - foi a absorção do Código Comercial pelo Código Civil, que analisei em artigo publicado neste ‘site’: “Novo Código Civil e o Direito da Empresa: Fascismo tardio?”)

O fato econômico da hiperinflação na casa do quatrilhão dos anos 70 a 90, altera objetivamente a concepção de aqüesto financeiro e mobiliário, a exigir contabilização exaustiva para sua atualização e adequada resposta, domínio da contabilidade e não do direito. E aquela Súmula de 1964 ainda não conhecera a explosão inflacionária das décadas seguintes.


5. Outro ardil da Súmula 377/64: um inesperado gravame sobre os bens pessoais do cônjuge supérstite no regime da separação legal dos bens.

No domínio do direito, o que se pretende ao invocar a Súmula 377/64 é dizer que o bem patrimonial de um cônjuge em contrato matrimonial regido pela separação, de livre disposição, perde esta qualidade intrínseca pela simples morte do outro cônjuge. Esta perda da disponibilidade é ônus assemelhado ao de um gravame, tornando-o bem indisponível sob a denominação de aqüesto, a ser trazido ao monte da herança, ardil da Súmula ao legítimo contrato do casamento, ato de má fé contratual de terceiro interessado, o Estado cobrador de impostos, ato radical de insegurança jurídica na esfera contratual.

A rationália jurídica que suporta à Súmula 377 avança, em última análise, sobre o bem disponível, gravando-o e transformando herdeiros do cônjuge falecido em co-proprietários deste mesmo bem, cuja plena disponibilidade pelo cônjuge sobrevivente era a regra, até a véspera do falecimento do ‘de cujus’, evento que a abole subitamente, num ato de má fé contratual deste terceiro interveniente e interessado: o Estado.  

Em artigo[6] próprio sobre gravame (eis que a Súmula altera a livre disponibilidade do bem), assim se manifesta Leonardo Gomes de Aquino[7] em seu resumo:

“Resumo: Há várias situações que deixam os estudiosos perplexos diante da aparente interpretação conceitual de direito real e direito obrigacional, pois algumas situações jurídicas dispostas na lei ou imposto por contrato possuem características tanto de direito real com de direito obrigacional. Estas situações são denominadas de figuras intermediárias.”

Sublinha o Autor: “situações jurídicas dispostas na lei ou imposto por contrato”, fundamentos essenciais para gravar bens, diferente da hipótese da emergência de um gravame de origem jurisprudencial. Pois que não se perca o foco do problema: chamar bens livres ao monte sucessório, retirando-lhes a intrínseca liberdade que gozavam até o momento do falecimento de um cônjuge no regime em comento, é o estabelecimento de um gravame, ao arrepio da lei.

Ainda buscando conceituar o gravame, para pontuar como a referida Súmula também invade este campo, eis como o Autor supracitado invoca em seu artigo, definições de juristas de nomeada:

“Silvio Sálvio Venosa  conceitua ônus reais  “como o gravame que recai sobre  uma coisa, restringindo o direito do titular de direito real” Já Carlos Roberto Gonçalves afirma que “são obrigações que limitam o uso e gozo da propriedade constituindo gravames ou direitos oponíveis erga omnes” Maria Helena Diniz afirma que os ônus reais “são obrigações que limitam a fruição e a disposição da propriedade. Representam direitos sobre coisa alheia e prevalecem erga omnes” e exemplifica como ônus reais: a servidão predial, a enfiteuse, o usufruto, o uso, a habitação, a superfície, a hipoteca, o penhor e a anticrese. ”

Não nos enganemos: a Súmula grava o bem patrimonial plenamente disponível no contrato matrimonial da separação legal de bens, retirando-lhe sua plena disponibilidade ao cônjuge sobrevivente, após o falecimento do primeiro. O contrato matrimonial perde sua característica contratual para acolher dispositivos extracontratuais, gravando-se o bem patrimonial até então disponível, com uma “cláusula de indisponibilidade”, fruto desta nefasta interpretação de um Tribunal supremo, há quase 50 anos.

Os aspectos contratuais acima assinalados devem ser acrescidos à análise do tema, além dos estudos jurídicos que gravitam em torno da “mutabilidade do regime dos bens” sob o efeito da Súmula, seminal texto[8] do jurista Francisco Cahali, ou ainda do texto do Procurador Jorge Kuranaka[9]. Ou mergulhamos mais uma vez na insegurança contratual face aos tribunais.


6. Súmula 377/64: “... alçapão posto na lei para ludibriar a boa-fé dos nubentes” , segundo o Prof. Sílvio Rodrigues.

O texto do Professor Sílvio Rodrigues, transcrito no artigo do jurista Francisco José Cahali, - nota de rodapé nº 8 - aborda a questão do contrato matrimonial e da boa fé contratual, ao dizer que se segue:

“Ora, aplicando-se a regra do art. 259 (do CC de 1916) ocorre o seguinte absurdo: embora os nubentes hajam declarado, no pacto antenupcial, que escolhem o regime da separação de bens, na realidade estarão se casando pelo regime da comunhão parcial, a menos que reiterem que também os adquiridos não se comunicam. Portanto, na escolha do regime da separação absoluta se faz mister duas declarações: que os nubentes escolhem o regime da separação de bens; e que os bens aquestos também não se comunicarão.

Tal regra, que surge como um alçapão posto na lei para ludibriar a boa-fé dos nubentes e conduzi-los a um regime de bens não desejado, só encontra explicação na indisfarçável preferência do legislador de 1916 pelo regime da comunhão e na sua desmedida tutela do interesse particular, injustificável em assunto que não diz respeito à ordem pública. Esta crítica se endereça também ao legislador português, pois foi no preceito do art. 1.125 do Código lusitano (de 1847- economia agrária ) que o Código brasileiro[10] se abeberou.”

E Francisco Cahali continua a transcrever Sílvio Rodrigues:

“E após sustentar (Sílvio Rodrigues) sua convicção pela inadequada aplicação do artigo 259 ao regime da separação obrigatória de bens, conclui trazendo a prevalência da posição diversa:

“Todavia, a jurisprudência, ao que parece, não julgou suficientemente amplo o recurso ao esforço comum dos cônjuges, para justificar a comunhão dos aqüestos, no casamento realizado pelo regime obrigatório da separação de bens. E aquela idéia, já defendida alhures, de que o art. 259 do Código Civil se aplicava não só à separação convencional, como também à legal, passou a ser defendida com zelo e começou a aparecer em variado número de julgados.

A questão foi ventilada no Supremo Tribunal Federal, e embora sua jurisprudência não fosse firme, nem constante, gerou ela a Súmula n. 377 daquela Egrégia Corte... ”[11].

Oportuno registrar que o douto Prof. SÍLVIO RODRIGUES reviu seu entendimento anterior, como transcreveu o voto do Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, em REsp 9.938-0 – SP – 4ª Turma, cuja ementa, aliás faz menção ao “esforço comum do casal”:

“Nesta mesma direção, e com mais ênfase, após discorrer sobre o tema, escreve Sílvio Rodrigues na nota 126 da 14ª ed. (fls. 182 e 183)):

‘Na primeira edição deste livro muito aplaudi a solução pretoriana consignada na súmula e para meu desconsolo verifiquei que, embora houvesse, de há muito, desertado daquela opinião, não tive o cuidado de rever, com a devida profundidade as subseqüentes edições deste volume, de modo que tal ponto de vista foi defendido até a 13ª edição, que ora é apresentada ao público.

Com efeito, já de há muito censuro a amplitude da Súmula 377, pois entendo que ela deve ser restrita apenas aos bens adquiridos na vigência do matrimônio, pelo esforço comum dos cônjuges. Aliás, nesse sentido manifestei-me com bastante minúcia em trabalho publicado em 1985 (‘O Direito na Década de 80. Estudos Jurídicos em Homenagem a Hely Lopes Meirelles, artigo intitulado ‘A Súmula 377 do STF: necessidade de sua revogação’) e nele procuro demonstrar, de um lado que os acórdãos de onde se extraiu a súmula não são veementes, nem torrenciais ao acolher a tese nela constante; de outro lado que a finalidade protetiva almejada pela orientação jurisprudencial e consignada na súmula, já fora alcançada pelo usufruto vidual, concedido pelo art. 1.611, § 1º, do CC, na forma que lhe deu a Lei 4.121/62’”.

 Na preocupação descabida das Cortes em defender que bens de ‘de cujus’ dotado de recursos chegassem a seus herdeiros e não ao cônjuge sobrevivente, esqueceram-se igualmente de defender cônjuge sobrevivente e igualmente dotado de recursos contra herdeiros do “de cujus” desprovido de recursos, situação mais comum que a primeira, em que o sobrevivente, através de seu diuturno trabalho amealhou bens para os riscos da vida comum, quer do casal, quer de sua própria, tudo de acordo com a regra da separação de bens adotada.


7. “Superada a Súmula 377, pelo Novo Código Civil”: “passos da construção interpretativa”. Ou de uma reconstrução interpretativa.

O Procurador Jorge Kuranaka[12] em artigo sobre o tema, especifica no item 5.3.3 que está “Superada a Súmula 377, pelo Novo Código Civil”, dizendo:

“Eis os passos da construção interpretativa: (a) o art. 259 do Código de 1916, prescrevia que mesmo que o regime fosse o da separação de bens, deveriam prevalecer, no silêncio do contrato, os princípios dela, quanto à comunicação dos adquiridos na constância do casamento; (b) embora esse dispositivo devesse ser aplicado somente aos casamentos realizados pelo regime da separação convencional, teve ampliado seu alcance, injustamente, através da Súmula 377; (c) Essa súmula teve, portanto, sua origem no art. 259 do Código de 1916; (d) o novel legislador deixou de reproduzir a regra contida no mencionado artigo; (e) dessa forma, o enunciado do STF não foi recebido pelo novo Código Civil, estando a mesma superada, desaparecendo a incidência de seu comando no novo regramento e na vigente ordem civil, com o que não mais subsistem as regras da comunhão parcial quanto aos bens havidos na constância de matrimônio celebrado sob o regime da separação obrigatória.

Efeito prático desse entendimento, é que aos casamentos celebrados na vigência do Código atual, pelo regime da separação obrigatória, não mais há de se aplicar a Súmula 377 do STF, não se reconhecendo, de conseqüência, a comunicação de bens adquiridos na constância do matrimônio...”

Vê-se, pois que as Cortes, ao invocarem a Súmula 377/64 em seus julgados, estão a rasgar os princípios comezinhos do Direito e de seu axial fundamento contratual, - ato contratual e instrumentalização -, além, obviamente, dos princípios da boa-fé dos contratantes, como acima se aduziu.

Indubitavelmente, o contrato de casamento pelo regime da separação obrigatória dos bens, ora em comento, é uma espécie de contrato de adesão, já que seus aderentes não tem outra opção de vida em comum exceto a “união estável”, solução matrimonial melhor e mais conveniente, já que lhes assegura a “comunhão parcial”, ao contrário da pretensão sumular.

MIGUEL REALE[13],no artigo citado, ao comentar sobre as  “Inovações no Direito da Família” trazidas pelo novo Código Civil diz:

“Cabe lembrar que, aprovado o Projeto na Câmara dos Deputados e enviado ao Senado, foram neste apresentadas cerca de 400 emendas, a maior parte pertinentes ao Direito de Família, de autoria do saudoso senador  Nelson Carneiro.

Com a convocação da Assembléia Nacional Constituinte, entendeu o Senado de suspender a tramitação do Projeto do Código Civil, para aguardar  possíveis alterações nessa matéria. Na realidade, porém, ocorreram mudanças substanciais tão somente no Direito de Família, instaurando a igualdade absoluta dos cônjuges e dos filhos, com a supressão do pátrio poder, que, por sugestão minha, passou a denominar-se "poder familiar".

 ...

Mais importante, porém, foram as novas regras que vieram estabelecer efetiva igualdade entre os cônjuges e os filhos, inclusive no pertinente ao Direito das Sucessões.

Nesse sentido, o cônjuge passou a ser também herdeiro, em virtude da adoção de novo regime geral de bens no casamento, o da comunhão parcial, corrigindo-se omissão existente no Direito das Sucessões.”

Tantas inovações – como alçar o cônjuge supérstite à posição de herdeiro - têm o condão de superar a vigência da Súmula 377, como racionalmente apontou o Procurador Jorge Kuranaka no texto acima citado, em seus “passos da construção interpretativa” aos arts. 259 e 258 do anterior CC.

Com a Súmula 377 do STF de 1964, aquele Tribunal acrescentou importante capítulo à insegurança jurídica dos contratos, faltando coragem e cultura jurídica para a sua tão simples revogação, que se impõe, se é que já não perdeu sua validade.

Ademais, e lamentavelmente, é demonstração flagrante de má fé jurisprudencial contra as partes do contrato matrimonial merecendo ser eliminada do direito brasileiro, se ainda não foi, como sublinha o artigo do Procurador acima citado: invasão da vida privada, da liberdade de contratar, da livre disponibilidade dos bens que ilegalmente grava e da autonomia da vontade.

Assim, neste contraditório Brasil, mais vale permanecer em “união estável” e assegurar o regime da “comunhão parcial dos bens” do que casar pelo regime da separação obrigatória e cair, inadvertidamente, no regime da comunhão dos aqüestos, onde o supérstite nem é herdeiro e ainda por cima, pela Súmula, deveria perder seus bens pessoais, ao trazê-los para a divisão no monte sucessório.

Permanecer em “união estável” é hoje conselho mais prudente a casais que indagam sobre a alternativa de contraírem casamento sob o regime da separação obrigatória, regime que a Súmula invocada pode alterar ao ser a acolhida por alguns juízes e tribunais. Permanecendo em união estável e evitando o instituto do casamento, - absurdo derivado da presente legislação - conhecem, de antemão, qual o regime patrimonial de seus bens ‘post-mortem’, sem os riscos provenientes desta cultura jurídica que não logrou ainda assentar esta singela matéria contratual.


Notas

[1] Menção ao artigo de Miguel Reale adiante no presente texto.

[2] REALE, MIGUEL. VISÃO GERAL DO NOVO CÓDIGO CIVIL. Texto inserido no Jus Navigandi nº 54 (02.2002).Elaborado em 12.2001.

[3] CC “Art. 187: Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes"

[4] CC “Art. 422: Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé.”

[5] Súmula 377 de 1964: “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.”

[6]“Ônus reais. Figuras híbridas ou intermediárias: obrigações proptem rem. Obrigações com eficácia real. Sub-rogação real”.  

[7] Leonardo Gomes de Aquino, Advogado. Mestre em Ciências Jurídico-Empresariais, pós-graduado em Ciências Jurídico-Processuais e em Ciências Jurídico-Empresariais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal), e Pós Graduado em Direito Empresarial pela Fadom. Especialista em Docência do Ensino Superior pelo Centro Universitári Unieuro. Professor Universitário no IESB, no UniEuro.

[8] “A Súmula 377 e o Novo Código Civil e a Mutabilidade do Regime de Bens” – Prof. Dr. Francisco José Cahali. Artigo publicado na Revista do Advogado, n. 76, Ano XXIV da AASP, em homenagem ao Professor Sílvio Rodrigues.

[9] “Regime de Separação Obrigatória e Comunicação de Bens para fins de Incidência do Imposto de Transmissão ‘causa mortis’.”

[10] MIGUEL REALE, no texto citado acima (vide nota de rodapé nº 2), ao comentar o segundo princípio  fundamental do novo Código, a SOCIALIDADE diz: "É constante o objetivo do novo Código no sentido de superar o manifesto caráter individualista da Lei vigente, feita para um País ainda eminentemente agrícola, com cerca de 80% da população no campo."

[11] Curso de Direito Civil, Vol. 6, 26ª Edição, 2001, pp. 167-171.

[12] “Regime de Separação Obrigatória e Comunicação de Bens para fins de Incidência do Imposto de Transmissão ‘causa mortis’.”

[13] REALE, MIGUEL. VISÃO GERAL DO NOVO CÓDIGO CIVIL

Texto inserido no Jus Navigandi nº 54 (02.2002).Elaborado em 12.2001.


Autor

  • Paulo Guilherme Hostin Sämy

    Experiência anterior em bancos, RH, mercado financeiro, comércio exterior e marketing. Eleito Analista do Ano 2004 da Abamec/Apimec - Associação dos Analistas do Mercado de Capitais. Articulista do Monitor Mercantil desde 1998, com temas correlacionados à área financeira, economia e política. Publicação anterior de artigos na revista da ABAMEC,- sobre mercado financeiro - em 'Tendências do Trabalho', então da Editora Suma Econômica - sobre administração - e na revista "Engenho e Arte", sobre alguns aspectos iniciáticos. Vídeos de treinamento publicados através da Editora Suma Econômica: "Criatividade em Equipe" e "O Príncipe: Estratégias de Ataque e Defesa nas Disputas de Poder".

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SÄMY, Paulo Guilherme Hostin. O ardil da Súmula 377 do STF ao contrato de casamento e à boa fé dos nubentes no regime da separação obrigatória de bens. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3717, 4 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23159. Acesso em: 25 abr. 2024.