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Hermenêutica e o conceito jurídico de cidadão na ação popular no paradigma do Estado Democrático de Direito

Hermenêutica e o conceito jurídico de cidadão na ação popular no paradigma do Estado Democrático de Direito

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A participação nas decisões políticas do nosso Estado é um direito fundamental previsto constitucionalmente e, por isso, deve ser garantido a todo povo brasileiro, indistintamente. É imprescindível uma reformulação no conceito de cidadão para o fim de ajuizamento de ação popular.

Resumo: O objetivo do presente trabalho é discutir a atual interpretação sobre o conceito de cidadão estabelecido pelo § 3º do art. 1º da lei federal nº 4.717, de 29 de junho de 1965, à luz da jurisprudência e da doutrina constitucional, bem como a necessidade de uma nova interpretação do conceito jurídico de cidadão de acordo com os princípios fundamentais, como igualdade e participação no Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: ação popular; cidadão; Estado Democrático de Direito.

Sumário: Introdução. 1- Novas Leituras Sobre O Conceito Jurídico De Cidadão.  2- A Contribuição da Obra de Friedrich Müller na Construção de um Conceito Ideal de Povo. 3 - Ação Popular e o Exercício da Cidadania no Paradigma de Estado Democrático de Direito. 4- Conclusão. Referências.


INTRODUÇÃO

A ação popular – entendida como um dos remédios constitucionais estabelecidos pela Constituição da República de 1988 – se apresenta como um dos instrumentos mais relevantes para o exercício da cidadania em Estado Democrático de Direito, vez que visa proteção aos direitos fundamentais difusos, tais como o meio ambiente, moralidade administrativa, patrimônio histórico e cultural.

Entende-se atualmente que apenas o brasileiro eleitor, no exercício dos direitos políticos, pode utilizar-se da ação popular, prevista no art. 5º, LXXIII, da Constituição da República. Para tanto, deve o cidadão comprovar essa condição mediante apresentação do título de eleitor ou documento que a ele corresponda, como uma certidão negativa emitida pela Justiça Eleitoral. Conservam, pois, legitimação ativa, somente os cidadãos, brasileiro nato ou naturalizado – inclusive os entre 16 e 18 anos – e o português equiparado, no gozo de seus direitos políticos.

Todavia, esse posicionamento e o dispositivo legal que o embasa afrontam a Constituição da República, já que restringem o conceito de cidadão a um posicionamento extremamente legalista e formal, inviabilizando a utilização de um remédio constitucional como a ação popular e, em conseqüência, a participação política direita do povo.

Por esta razão, alguns autores, se insurgem contra essa definição, alegando que qualquer pessoa natural capaz poderia se valer da ação popular. O fato é que a noção de “cidadão” evoluiu ao longo dos anos, e atualmente o referido conceito não se encontra exclusivamente na dimensão que engloba unicamente os direitos políticos. 

A partir dessas premissas, pretendemos demonstrar, como hipótese do presente trabalho, que as atuais posições jurisprudências e doutrinárias brasileiras que sustentam uma interpretação restritiva do conceito de cidadão, apenas como aquele indivíduo dotado de direitos políticos, não se coadunam com os fundamentos e princípios de nossa ordem democrática constitucional.

O conceito de cidadania evoluiu ao longo do tempo, distante o momento em que os conceitos de nacionalidade e cidadania se confundiam, tal como se apresenta na visão de KELSEN (1998), segundo a qual a cidadania e a nacionalidade representam um “status pessoal” adquirida pelo nascimento nos limites territoriais do Estado-Nação.

A cidadania abraçada pela atual Constituição da República de 1988 teve seu conteúdo ampliado e não se restringe ao simples fato de possuir um título eleitoral, mas sim com o exercício da soberania popular, a democracia, a isonomia e a dignidade da pessoa humana.

O debate de cidadania em âmbito constitucional é mais amplo do que o simples fato de possuir um título eleitoral, para votar e ser votado. Ela não se restringe ao voto, o qual é apenas uma etapa do processo da cidadania (AGRA, 2002, p. 123). A atual Constituição amplia a cidadania, qualificando e valorizando os participantes da vida do Estado, e reconhecendo a pessoa humana como ser integrado na sociedade em que se vive (SILVA, 2003, p. 344-345).

A hipótese que pretendemos sustentar, se justifica exatamente pela persistência de nossa doutrina e jurisprudência em não adotar um conceito inclusivo, que abranja nacionais, estrangeiros, eleitores ou não, previsto no § 3º do art. 1º da lei federal nº 4.717, de 29 de junho de 1965, regulamentador do preceito constitucional, que estabeleceu como requisito para a legitimidade ativa a condição de cidadão, como apenas os eleitores que comprovem regularidade das obrigações eleitorais são partes legítimas para ajuizarem a ação popular.


1 - NOVAS LEITURAS SOBRE O CONCEITO JURÍDICO DE CIDADÃO

Especificamente em relação à ação popular, alguns doutrinadores já ousam questionar o tradicional conceito de cidadão, defendendo uma revisão no sentido de aumentar a abrangência do termo.

O posicionamento majoritário da doutrina e da jurisprudência segue uma linha argumentativa na qual prevalece o formalismo na qualificação de cidadão. Posicionamento problemático na medida em que reduz a possibilidade de participação direta na população no controle da atividade Administrativa.

A clássica idéia de “cidadania político-formal” não se coaduna com os princípios democráticos e garantidores dos direitos humanos. Do mesmo modo a definição restrita de cidadania não se adequa ao projeto democrático e emancipatório da Constituição da República de 1988, tendo como pilar o princípio da dignidade da pessoa humana, que assegura ao povo uma ordem jurídica e social democrática.

Não se pode admitir que apenas o exercício de direitos políticos seja considerado exercício da cidadania. A cidadania não se resume na pertinência a uma comunidade estatal ou à possibilidade de manifestar-se periodicamente por meio de eleições (MELO, 1998, p.78)

Ora, se o critério formal da lei não se alinha com os fundamentos do Estado Democrático de Direito – conforme pretendemos demonstrar ao final do trabalho - é necessário apresentar alternativas de argumentação constitucional que possibilite ao intérprete (re) construir o conceito jurídico de cidadão.

A proposta do presente trabalho consiste em apresentar uma re(construção) conteúdo normativo de povo a partir da contribuição de Friedrich Müller. Entendemos que a obra de Müller permite a uma nova interpretação do conceito de cidadão à luz dos princípios constitucionais da igualdade e da participação.


2- A CONTRIBUIÇÃO DA OBRA DE FRIEDRICH MÜLLER NA CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO IDEAL DE POVO

Na obra “Quem é o povo?” de FRIEDRICH MÜLLER (2000) - segundo afirma o próprio constitucionalista alemão – afirma que o objetivo traçado é investigar os modos pelos quais as Constituições modernas utilizam a expressão “povo” em seus textos normativos. Ou como afirma o autor: “de uma Constituição que quer justificar o seu aparelho de Estado e o exercício de sua violência/do poder enquanto ‘democráticos’.

De fato, Müller tem plena consciência que o emprego da expressão “povo” nas Constituições Modernas possui a função de legitimar o sistema político-jurídico de um Estado. É exatamente o que ocorre em nosso preâmbulo – “os representantes do povo brasileiro” e o parágrafo único do artigo 1º “todo poder emana do povo, que o exerce por meio dos seus representantes eleitos ou diretamente nos termos desta Constituição”. Torna-se claro, então, que Müller busca discutir o conceito de povo não apenas pelo viés do direito positivo (definição legal), mas principalmente pela dimensão da legitimidade.

Não é uma tarefa difícil compreender o motivo pelo qual a expressão “povo” é marcada por uma forte ambigüidade. Por um lado constitui a confirmação da superação de um paradigma no qual o exercício do poder do Estado se legitimava por razões teológicas. Por outro, foi – e continua sendo – utilizada como forma de legitimar a perpetuidade de pequenos grupos no controle do poder estatal. Nesse sentido, a expressão “o povo” seria o fino verniz democrático sob pequenos grupos de poder. A referida ambigüidade, no entanto, somente intensifica a necessidade de um debate sobre a construção conceitual da expressão “povo”.

Nesta empreitada, Müller busca analisar o conceito de “povo” a partir da seguinte divisão: a) “Povo” como povo ativo; b) “Povo” como instância global de atribuição de legitimidade; c) “Povo” como ícone; d) “Povo” como destinatário das prestações civilizatórias do Estado. Vejamos cada um deles.

Segundo Müller, entende-se como povo ativo aquele titular de nacionalidade de acordo com as prescrições normativas do texto constitucional. “Por força da prescrição expressa as constituições somente contabilizam como povo ativo os titulares de nacionalidade; (..)” Tal nacionalidade – estabelecida pelo direito positivo – consubstancia-se na totalidade dos eleitores de um Estado.

O constitucionalista alemão, ao analisar a limitação desta forma de compreensão do conceito de povo, recorda da situação dos estrangeiros na União Européia:

“Tradicionalmente esse dimensionamento para os titulares da nacionalidade é matéria de direito positivo, mas não se compreende por evidência. Estrangeiros, que vivem permanentemente aqui, trabalham e pagam seus impostos e contribuições pertencem à população. Eles são efetivamente cidadãos. (faktisch Inlander), são atingidos como cidadãos de direito (rechtliche Inlander) pelas mesmas prescrições ‘democraticamente’ legitimadas. A sua exclusão do povo ativo restringe a amplitude e a coerência da justificação democrática. Especialmente deficitário em termos de fundamentação é o princípio da ascendência (ius sanguinis), que representa uma construção de fantasia, não uma conclusão fundamentável pela empiria (sangue). Já que não se pode ter o autogoverno, na prática quase inexeqüível, pretende-se ter ao menos a autocodificação das prescrições vigentes com base na livre competição entre opniões e interesses, com alternativas manuseáveis e possibilidades eficazes de sancionamento político (p. 56).”

O autor é enfático ao afirmar que o conceito de “povo das constituições atuais” não deveria ser qualificado por meio das regulamentações do Direito Eleitoral e conclui: “O Povo ativo não pode sustentar sozinho um sistema tão repleto de pressupostos” (p.58).

Em seguida, Müller se propõe a analisar o conceito de “Povo” como instância global de atribuição de legitimidade. O referido conceito torna-se mais acessível a partir da compreensão da idéia de estrutura de legitimação. Segundo Müller, os Poderes Executivo e Judiciário estão fundamentalmente interligados com a noção de Estado de Direito e Democracia. Assim, o povo elege seus representantes no Parlamento que, por sua vez, são responsáveis pela elaboração de normas gerais e abstratas. As normas são publicadas e aplicam-se às relações entre o indivíduo e o Estado e entre os particulares de forma geral, ou seja, o povo ativo elege representantes que elaboram normas que, em regra, vinculam as ações e interesses do próprio povo.

“Tudo isso forma uma espécie de ciclo (Kreislauf) de atos de legitimação, que em nenhum lugar pode ser interrompido (de modo não-democrático). Esse é o lado democrático do que foi denominado estrutura de legitimação. (...) Parece plausível ver nesse caso o papel do povo de outra maneira, como instancia global de atribuição de legitimidade democrática. É nesse sentido que são proferidas e prolatadas decisões judiciais em ‘nome do povo’ (p. 60).”

Müller passa a avaliar a questão do povo “como ícone”.  Tem-se aí um “povo” intocável, uma imagem abstrata e discursivamente construída como una e indivisível. Não diz respeito a nenhum cidadão ou grupo de pessoas. Pelo contrário. É um povo que “não existe” na vida real. E é exatamente este povo – o povo ícone – a figura invocada pela minoria detentora do poder; historicamente as políticas xenófobas, discriminatórias e violentas são respaldadas por discursos como “em nome do povo”.

“O povo como ícone, erigido em sistema, induz a práticas extremadas. A iconização consiste em abandonar o povo a si mesmo; em ‘desrealizar’ (entrealisieren) a população, em mitificá-la (naturalmente já não se trata há muito tempo dessa população), em hipostasiá-la de forma pseudo-sacral em instituí-la assim, como padroeira tutelar abastrata, tornada inofensiva para o poder-violência – ‘notre bom peuple” (p. 67).”

Por fim, Müller ao elaborar um conceito ideal de povo, no sentido de mais democrático, por ele denominado “povo como destinatário de prestações civilizatórias do Estado” afirma:

“A função do “povo” que um Estado invoca, consiste sempre em legitimá-lo. A democracia é dispositivo de normas especialmente exigente, que diz respeito a todas as pessoas no seu âmbito de “demos” de categorias distintas (...) Não somente as liberdades civis, mas também os direitos humanos enquanto realizados são imprescindíveis para uma democracia legítima (...) Idéia do “povo” como totalidade dos efetivamente atingidos pelo direito vigente e pelos atos decisórios do poder estatal – totalidade entendida aqui como a das pessoas que se encontram no território do respectivo Estado (p.76).”

O fato de um indivíduo residir, trabalhar, estabelecer laços pessoais e materiais dentro do território de um Estado constitui um fenômeno capaz de originar obrigações (tributárias, civis, administrativas, e outras), mas também direitos subjetivos, ou seja, eleva-se o posicionamento deste indivíduo ao posto de cidadão.  “O mero fato de que as pessoas se encontram no território de um Estado é tudo menos irrelevante.” (p.75) E conclui Müller: “Podemos denominar essa camada funcional do problema ‘o povo como destinatário de prestações civilizatórias do Estado (zivilizatorische Staatsleistungen) como “povo-destinatário” (p.77).

Em Müller, a legitimidade do sistema democrático não está somente na busca de uma conceituação jurídica-polítca de povo, mas principalmente em levar o povo a sério; povo este considerado como uma realidade viva em um mundo concreto.  

A construção conceitual de povo tem, portanto, uma íntima ligação com o Estado de Direito que se define como democrático. De fato, em um Estado de Exceção ou com grande déficit democrático é o Estado – por meio do seu monopólio legiferente – é quem define os atributos objetivos para um sujeito qualificar-se como povo.

E, finalizando, Müller responde ao questionamento principal de sua pesquisa – “quem é o povo” - com as seguintes palavras: “Trata-se de “todo” o povo dos generosos documentos constitucionais; da população, de todas as pessoas inclusive das (até o momento) sobreintegradas e das (até o momento) excluídas.

Dessa forma, se o povo legitima um Estado e constitui a razão de ser desse Estado, não há como se ter um conceito restritivo de povo. Do mesmo modo, todo o povo, indistintamente, é detentor do poder constituinte, possuindo o direito de participar diretamente do governo, como preconiza o art. 1º da Constituição da República.


3- AÇÃO POPULAR E O EXERCÍCIO DA CIDADANIA NO PARADIGMA DE ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Com base na proposta teórica de Muller, perguntamos: há espaço de sobrevivência para o § 3º, do art. 1º da Lei nº 4.717/65, no atinente à exigência de que a prova da cidadania seja feita pela exibição do título de eleitor?

Entendemos que não, pois a discussão sobre a legitimidade para a propositura da ação popular tem como fundamento o princípio da igualdade – fundamento do Estado de Direito – na medida em que promove condições igualitárias de acesso ao Poder Judiciário.

O Estado Democrático de Direito deve ser compreendido como um projeto em permanente discussão e formação e nunca como uma preposição teórica previamente definida ou um projeto de Estado acabado.

Conforme afirma BAHIA (2004, p. 314-315):

“Para dar conta dessa nova demanda – que implica numa redefinição do que se entende, e.g., por Estado, soberania popular, democracia e cidadania, público e privado – e como uma alternativa a uma concepção (uma tentativa de volta) a um Estado Mínimo, consubstancia-se o paradigma de Estado Democrático de Direito. (...) Somente através de espaços de discussão públicas, formais ou não, em que se assegurem igual participação de diferentes grupos, agindo discursivamente é que se poderá lidar com as desigualdades. Cidadania é um processo (de participação política) e, tal qual a democracia, um aprendizado. Não há pré-requisito para a cidadania.”

A não exclusão, de indivíduos ou grupos do processo de discussão e formação do Estado Democrático de Direito, é condição sine qua non de existência deste permanente processo de construção de uma cidadania que reconheça no “Outro” um sujeito de direitos.  

Vimos, pois, que o princípio da igualdade é um fundamento basilar do Estado de Direito e, no caso do debate sobre a re (construção) do conceito de cidadão, possui uma relevância central no debate. Não se trata aqui da igualdade material. Busca-se sim promover igualdade de condições processuais para o exercício da titularidade de um remédio constitucional e, consequentemente, a defesa de direitos fundamentais.

Por outro lado, a efetivação do princípio constitucional da participação representa outro alicerce do Estado Democrático de Direito. Não há que se falar em Estado Democrático em um ambiente político-institucional de privação de direitos e liberdades individuais.

O princípio da participação possui a função de promover a visibilidade do Outro; de garantir que diferentes projetos, idéias e concepções de mundo possam se fazer ouvir de forma verdadeiramente republicana e democrática. Em um Estado de Exceção não há participação. Vige, neste tipo de Estado, um único projeto e uma leitura unidimensional das pessoas, dos grupos da sociedade e do mundo. Tal leitura é a do Estado, ou melhor dizendo, de uma elite dominante que se apropria de forma egoística e irresponsável da construção do significado de “interesse público”.   

Mas qual a melhor forma de garantir a participação em um Estado Democrático de Direito? Por meio de eleições periódicas, transparentes e universais? Absolutamente que não. As eleições – majoritárias ou proporcionais – são apenas uma das formas de exercício democrático. Um Estado Democrático de Direito reclama a institucionalização de instrumentos e espaços públicos nos quais os embates entre os projetos e interesses conflitantes possam ser realizados de forma livre e igual.

Os direitos fundamentais são hoje o parâmetro de aferição do grau de democracia de uma sociedade. Ao mesmo tempo, a sociedade democrática é condição imprescindível para a eficácia dos direitos fundamentais. Direitos fundamentais eficazes e democracia são conceitos indissociáveis, não subsistindo aqueles fora do contexto desse regime político.

A evolução dos direitos humanos foi fundamental para o surgimento dessa nova perspectiva da cidadania porque, segundo MELO (1998; p.78) constatou-se a ampliação evolutiva do conceito de cidadania que passou a compreender os direitos civis, políticos e sociais, e mais recentemente os direitos referentes a interesses coletivos e difusos.

ANDRADE (1998; p. 127) que ao analisar o conceito clássico de cidadão, constata a redução da política ao momento eleitoral e do poder ao poder estatal, o que se justifica,

“porque o conceito liberal de cidadania circunscreve-se ao âmbito da representação em detrimento da participação. (...) o que estamos a sustentar é que o Estado de Direito sedimentou um conceito também restritivo do poder, da política e da democracia. Identificando o poder com o poder político estatal, a política é vista como uma prática específica, cujo lugar de manifestação só pode ser o Estado e as instituições estatais e cujo objetivo só pode ser a ocupação do poder estatal (...)”

ANDRADE (1998; p. 132) propõe a construção de um novo horizonte para a cidadania contemporânea, o que significa, dentre outras coisas o deslocamento da cidadania como dimensão que engloba unicamente o conjunto de direitos políticos para uma dimensão que engloba o conjunto de direitos humanos instituído e instiuintes; da cidadania reduzida à representação ou nela esgotada, à cidadania centrada na participação como sua alavanca mobilizadora, o que envolve uma conscientização popular a respeito de sua importância ou, em outras palavras, uma pedagogia da cidadania.

Falar, portanto, em cidadania é reafirmar o direito pela realização do indivíduo, do cidadão, dos entes coletivos e de sua emancipação nos espaços definidos no interior da sociedade. Como ensina MELO (1998; p.81),

“Os conceitos de cidadania, democracia e direitos humanos estão intimamente ligados: a cidadania não é constatável sem a realização dos direitos Humanos, da mesma forma que os Direitos Humanos não se concretizam sem o exercício da democracia.”

A participação cidadã deve ser entendida como um direito fundamental de todo ser humano garantido pela Constituição, necessário ao aperfeiçoamento do regime democrático e apontado prioridade das políticas públicas do país, de acordo com esse enfoque, afirma CUNHA (1997; p.91/92):

“Participação popular é efetivamente um direito fundamental, tanto em forma, quanto em essência. Sua presença física esparramam-se em todo o corpo da Constituição(...) antes de ser um direito fundamental, é um direito fundante, ou seja, um direito do que decorre a própria significação dos modos de vida e convivência pelos quais optamos.” 

A noção de cidadania, hodiernamente, deve traduzir a observância dos princípios democráticos e, além disso, a concretização dos direitos humanos e fundamentais do Estado e não simplesmente a noção simplista de exercício de direitos políticos.

O instituto da Ação Popular, sendo direito individual garantido pela Constituição da República, deve ser interpretado o mais amplamente possível.

O Estado brasileiro assumiu compromisso de estimular o exercício da cidadania em seu grau máximo. Verdadeiro fundamento de nossa Constituição, a cidadania não pode ter suas formas de exercício restringidas por uma interpretação que relega a um segundo plano uma diretriz básica do sistema constitucional brasileiro. Não se pode partir de uma lei ordinária que há muito tempo necessita de reformulação, para contrariar a Constituição da República que, como já se disse, produziu um Estado comprometido, fundamentalmente, com o exercício da cidadania.

A efetivação dos direitos fundamentais é o traço principal do Estado Democrático brasileiro. É bem verdade que sua efetivação é um processo lento e não-linear, sujeito a avanços e retrocessos no interior das dinâmicas das relações sociais. Entretanto, promover uma interpretação do conceito de cidadão à luz dos princípios constitucionais da igualdade (de participação no processo) e participação (no controle da Administração Pública) constitui um passo essencial para reafirmação do nosso Estado Democrático de Direito.  


4 - CONCLUSÃO

A ação popular é um direito fundamental e constitui manifestação direta da soberania popular, é instrumento de participação política direta dos particulares no governo.

Atualmente, doutrina e a jurisprudência possuem um entendimento consolidado que apenas o brasileiro eleitor, no exercício dos direitos políticos, pode ser qualificado como cidadão para fins de ajuizamento da ação popular, prevista no art. 5º, LXXIII, da Constituição da República de 1988. Para tanto, deve o cidadão comprovar essa condição mediante apresentação do título de eleitor e de certidão negativa emitida pela Justiça eleitoral.

A corrente consolidada utiliza-se de um conceito estritamente formal do conceito de cidadão. Ora, qual a justificativa constitucional para considerar o analfabeto que não fez o alistamento eleitoral ou o condenado criminalmente ao status de “não-cidadão”? Considerar tais sujeitos de direitos carecedores de ação é aceitar – implicitamente - que uma lei ordinária promulgada antes da ordem democrática de 88 tem o efeito jurídico de limitar o exercício de um direito fundamental.  Na prática, o referido posicionamento é limitador do acesso ao judiciário e ao controle popular da Administração Publica. 

Assim, urge a necessidade de um aprofundamento da discussão sobre a matéria em análise. Uma discussão que deve se basear em uma hermenêutica constitucional que refute a aplicação de um silogismo clássico e formal conforme demonstramos. Uma práxis interpretativa que considera a posição do “Outro” como um elemento central na construção que cada um de nós pretende apresentar para um problema hermenêutico-jurídico como é o caso do conceito de cidadão.

Hodiernamente, exercer qualquer direito é exercer a cidadania, porque esta tem como requisito a efetivação dos direitos do homem. Se a participação política é um direito fundamental, refletido diretamente no princípio da dignidade da pessoa humana, qualquer posicionamento que inviabilize o exercício desse direito, é a nosso ver, uma afronta à Constituição da República.

A previsão do instituto da ação popular no art. 5º da Constituição da República é garantia fundamental, não pela simples razão de estar incluída no título referente aos direitos e garantias fundamentais, e sim por assegurar um dos princípios basilares do nosso Estado Democrático de Direito, o princípio da dignidade da pessoa humana. A participação do povo nas decisões políticas do nosso Estado é um direito fundamental previsto constitucionalmente e por isso, deve ser garantido a todo povo brasileiro, indistintamente.

Imprescindível e urgente, pois, uma reformulação no conceito de cidadão. Apenas um entendimento inclusivo do termo será uma noção compatível à vigente democracia participativa.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Carla Maia dos. Hermenêutica e o conceito jurídico de cidadão na ação popular no paradigma do Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3550, 21 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23979. Acesso em: 25 abr. 2024.